Ismália, a lagartixa e o vendedor de biju.

Acordei com a Ismália de Alphonsus Guimaraens caminhando no meu pensamento. A virgem quase morta, semienlouquecida, sem saber se queria a lua do céu ou a lua do mar, os pés fincados nos últimos torrões de terra de um despenhadeiro, observando lá embaixo a luz opaca de um vilarejo distante, restos de mundo apagado no qual um rapaz caminha apressado, empunhando sua jaqueta amarela contra o vento.

Alphonsus Guimaraens preenche uma lacuna inexplicável no meu gosto mortiço pela poesia. São ecos de dor rimando assombros e exclamações. Desde quando eu era jovem, Ismália aparece nos meus sonhos e nunca consegui espantar para longe a dor do poeta.

Em mim, Ismália vive e se mistura a outros personagens, como agora, com o Jonas da série Dark, navegando em perturbadoras idas e vindas ao futuro e ao passado.

Dark é tão fascinante que me fez pregar a atenção na televisão e maratonar durante três dias seguidos os episódios da terceira e última temporada, resultando nuns pensamentos estranhos que me apanharam na forma de inquietantes interrogações:  e se tudo for mesmo efeito de uma Matrix? E se ocorrer alguma falha na Matrix, conforme Jonas alertou em diversos episódios da série?

Penso nisso nessa manhã fria de julho, os olhos passeando sobre uma lagartixa grudada na parede, enquanto minha mulher coa o café.

Sou um solipsista convicto quando estou bebendo café. Nesse instante divino, que o paladar e o olfato se chocam, nem sou eu, sou Bob Dylan e Cortázar desvendando o homem que vendia biju e passava em frente de casa todos os dias, exatamente às quatro da tarde, há muito tempo atrás. Eu tinha cinco anos e jamais me esqueci daquele rosto: os olhos azuis enormes, a boca de dentes pontiagudos e separados, cabelos ralos dos fios longos e da pele cor de garapa, bem parecido ao Golum de Senhor dos anéis.

A lagartixa pisca e Ismália sussurra no meu ouvido: “E como um anjo pendeu, as asas para voar…Queria a lua do céu, queria a lua do mar…” faço um pedido calado, num morder de lábios: dê dois passos para trás Ismália, fuja enquanto é tempo, se afaste do despenhadeiro, não encare o abismo, suas asas são apenas estrofes utópicas de um poeta atormentado.

Alphonsus, pobre Alphonsus…

Talvez o retrato real do vendedor de biju fosse mais ameno –  Golum é muito apavorante – era na verdade um senhorzinho cansado da lida, dos cabelos finos, suados e espigados, escapando pelo chapéu de palha, até se esparramar na testa, a pele castigada pelo sol, fazendo arder os olhos grandes de tanto sofrer, as mãos ardentes de empurrar o carrinho do biju, os pés dos sapatos furados buscando a paz de uma sombra na árvore. Talvez… Mas o desenho na minha mente é o de Golum e não consigo consertar.  

Se existe a Matrix, o antigo vendedor de biju é o sujeito que a mantém ativa.

Um calafrio percorre meu corpo quando penso nisso. E se ele se cansar de vez e deletar tudo?

Anos depois, tive um professor de matemática bem parecido fisicamente com o vendedor de bijus. Terças e quintas – pontualmente às sete horas da noite – os dias das aulas de matemática, palco de um dos meus tantos tormentos.

O barulho de giz riscando a lousa de números e sinais, a voz cansada, o olhar repentino para trás, indo de encontro aos meus olhos escondidos de medo no canto esquerdo da sala de aula.

– Entendeu? – perguntava o professor, assim mesmo, no singular, olhando diretamente para mim.

Falha na Matrix…

Eu olhava para ele que me devolvia o olhar, parecendo ler meus pensamentos.

Aprendi o teorema de Bhaskara movido pelo medo.   

O tempo passou e o vendedor de biju, depois professor de matemática, se transformou no motorista do ônibus 157 que fazia a linha centro – Cophavila II e passava pontualmente as cinco e meia da tarde, descendo a Rua Maracaju, completamente lotado, virando a Calógeras, depois a Afonso Pena, atravessando os trilhos, esparramando os corpos, mas pelo menos dessa vez o seu olhar era reto, as mãos no volante, às vezes cambiando a marcha num esforço de estalar as veias.

– Quero mais café – digo e já apanho o bule para perto de mim.

A Graziela me olha atravessado:

– Já estamos atrasados.

Desfaço do aviso num riso de canto de boca: já podemos nos permitir alguns atrasos.

– Você já notou como são enigmáticas as lagartixas?

– Lagartixas? O que tem elas?

– Estava pensando, e se tudo for uma falha na Matrix?

– Ah pronto! Eu falei para você não assistir Dark…

Sorrimos, mas continuei pensando: e se a lagartixa for parte real do universo e nós apenas um quadro na parede que ela observa enquanto espera, pacientemente, surgir um bicho apetitoso para lhe saciar a fome?

Graziela balança a cabeça e come a torrada. O barulho me irrita e tento conversar em pensamentos com a lagartixa: olá, eu sou humano, consegue entender a minha fala? Abane o rabo se sim.

Por incrível que pareça, o bicho fez um leve balançar de rabo.

– Você viu isso?

– Não vi nada.

– A lagartixa! Ela entende o que eu penso.

– Pronto, lá vem você…

– É sério, ela mexeu o rabo.

– Deixa o bicho em paz e por favor, não comece com aquela estória do vendedor de biju parecido com o Golum.

– Vou tentar de novo. Observe: lagartixa, existe a Matrix? Se sim, mexa o rabo.

Graziela mantém o olhar preso na lagartixa por dez segundos.

Nada. Completamente imóvel. Ela ri e balança a cabeça negativamente.

Fiquei quase dois minutos esperando e nada. Maldita lagartixa!

– Não esquece a máscara e vamos indo.

Um último gole de café e a pressa acelera os nossos passos.

O barulho da garagem subindo é a trilha sonora ideal do mundo real se abrindo em cortinas.

E o corpo de Ismália perdeu as asas que Deus lhe deu, subiu ao céu e depois caiu no mar e eu…eu conduzo o carro terra abaixo, sem asas para voar. Máscaras, óculos embaçados. Esse vírus maldito anda levando embora as pessoas erradas: mal me recuperei do Aldir Blanc, agora foi o Antônio Bivar. 

Essa pandemia só pode ser uma falha da Matrix.

Sigo dirigindo enquanto o pensamento borbulha: Ismália sou eu, diria Alphonsus Guimarães, tal e qual Flaubert bebendo veneno na intenção de salvar Emma Bovary.

Peguei cinco sinais abertos e fiquei aborrecido, desejava um sinal fechado para digitar rapidamente no celular um pensamento que me ocorreu de repente, um conto narrado em primeira pessoa, eu transformado numa lagartixa, passeando pela parede à espera de uma mosca descuidada:  que bichos estranhos são aqueles bebendo café e comendo torradas?

Deus é o tempo, definiu Jonas nos momentos finais de Dark. O tempo, logo ele, um túnel sem fim…

Venha Ismália, pegue nas minhas mãos, não encare o abismo, siga o alerta de Friedrich, o bigodudo:  “Se ficar muito tempo olhando para o abismo, o abismo também olhará para você”.

Enfim, chegamos ao nosso destino.

– Vamos entrar logo, antes que apareça o senhorzinho vendedor de biju – diz a Graziela em meio a um sorriso.

Na mesa do escritório, finalmente os pensamentos vão embora, levados pelo sossego de um gato vadio que aparece de vez em quando e sequer lhe demos um nome.

Eu o desprezo, mas ele gosta de mim, quer me chamar de seu dono.

Se for fêmea será Ismália, se macho, Jonas.

Depois levanto-lhe o rabo e verifico – penso e sorrio – enquanto o bicho rosna, deitado nos meus pés.

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