O chato

Andava muito nervoso naquele ano, que muitos só se lembram de setembro, quando as torres gêmeas caíram.

Nada dava certo e os planos desmoronavam.

Assim como na canção da Cássia Eller, eu trocava cheques para sobreviver.

Num dia que uma chuva repentina me pegou, e me fez perceber que meus sapatos estavam furados, ao procurar abrigo num ponto de ônibus, dei de cara com aquele rosto ligeiramente conhecido, que se abriu em contentamentos.

Tentei recuar, mas os pingos da chuva foram mais fortes.

Um aperto de mãos, leve de minha parte, dele entusiasmada de um tanto que quase me quebrou um dedo. Meus olhos cerraram e se abriram várias vezes em torno da sua figura, tentando lembrar o seu nome.

Nunca fomos próximos, ainda assim, ele danou a falar do seu casamento, que não deu certo, porque a Rosinha – e eu tive que mentir que conhecia a Rosinha, mesmo que depois de todas as descrições eu continuasse a pensar na namorada do Chico Bento – queria riquezas que ele não podia lhe dar, mas que resultou na garota tímida, do rosto redondo e cabelos mal penteados, que naquele instante tentava se esconder no meio das suas pernas.

Contou também do desemprego, da falta de oportunidades para um profissional como ele – motorista, pintor, garçom, algo assim, não sei definir ao certo -.

O arco Iris no horizonte foi a desculpa que eu precisava para me despedir.

Na saída, o convidei para aparecer na minha casa um dia qualquer, dessas coisas que a gente fala mais por educação e cordialidade do que sinceridade.

Quando alguém bateu palmas no portão de casa no domingo pela manhã, sequer me preocupei em trocar a roupa de mendigo que costumo vestir nos finais de semana.

Pensei se tratar de algum religioso, que eu ouviria sem escutar, fingiria ler o panfleto e logo o despacharia.

Para minha surpresa, era ele, vestido com a mesma calça e camisa da última vez, sorrindo enquanto tentava equilibrar a filha no meio das pernas.

Ele entrou e fiquei com raiva do meu cachorro, que balançou o rabo, todo contente, quando ele passou as mãos na sua cabeça.

E danou a falar da ingratidão da Rosinha, o corpo aos poucos se esparramando pelo sofá, sem se importar com o tédio da filha, e eu só pensava no que faria para arranjar um cheque emprestado para trocar no dia seguinte.

Para disfarçar, servi um vinho cheirando a vinagre, que estava jogado na geladeira desde o último natal.

Bebemos e o álcool relaxou meus pensamentos, as contas a pagar aos poucos foram se apagando.

A bebida acabou no exato instante que ele recordou de um jogo do Operário, de um gol de letra do Arthuzinho e eu comecei a considerar razoável aquela nossa conversa.

O gosto do vinho nos cantos da boca foi o combustível para comprar fiado cinco cervejas e, de repente, o chato já era meu melhor amigo.

Rimos, quase choramos, recordamos de tudo um pouco, dos outros vizinhos e de namoradas que inventamos, porque sequer sabiam da nossa existência e até afirmamos que “no nosso tempo”, o ar era mais puro.

”Tem aí um violão?” perguntou e eu respondi faceiro que o vizinho tinha e fui lá buscar, enfrentando a cara feia do vizinho, que era um chato que também não gostava de visitas sem avisar e se vestia de mendigo aos domingos, mas que gostou da idéia de ouvir violão, se auto convidou, levando junto uma garrafa de 51 e uma penca de limões.

Vinho, cerveja e caipirinha.

Naqueles tempos eu bebia sem apagar, hoje, só de lembrar, sinto náuseas.

O amigo chato tocou violão e cantou maravilhosamente, um pouco de MPB, um tanto de sertanejo de raiz, e o dia passou tão ligeiro que nem percebemos.

Quando ele foi embora, acompanhei seu vulto virando à esquina, um tanto trôpego, as mãos que dançavam pelas costas da filha.

Controlei a custos o impulso de correr até ele, perguntar-lhe o nome e pedir para que voltasse outra vez.

Mas fiquei preso ao meu silêncio, à minha falta de ternura, restando apenas essa lembrança, que traduzo num suspiro dolorido, que me deixa melancólico, tomado pela certeza que fui um completo chato e insensível naquele difícil ano de 2001.

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