O cheiro do piche no pedregulho

Sobre a sua cidade natal, Drummond escreveu: “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”.
Reconheço essa dor no caminho apressado entre as obras da Rua 14 de julho, uma artéria aberta da qual desprende o inconfundível cheiro de piche grudado no pedregulho, o mesmo de quando asfaltaram a Avenida Bandeirantes tempos atrás, tingindo de negro a terra vermelha.
Recordações me abraçam.
A 14 de julho desce e a 13 de maio sobe.
Minhas tias usavam bobes presos aos cabelos e davam ordens para eu não me afastar, nem me perder entre as enormes manilhas de concreto que os homens fincavam na terra.
Quase consigo ver algumas mulheres com os cabelos presos a bobes.
Guardei nos bolsos diversos pedregulhos cheirando a piche.
A Dom Aquino vai, a Barão vem. É triste perceber, não existe mais o trem.
O cheiro de piche se confunde com a imagem de uma árvore coberta de espinhos, na risca do meio fio.
A Quinze desce, a Sete sobe, a Vinte e seis, não sei bem o porquê, sobe também.
Nasci quatro quadras acima do Portão de Ferro, no bairro Amambaí e de lá fomos expulsos, por conta de assuntos escabrosos que nunca soube ao certo.
Andamos assoprados pela tempestade, morando de favor, numa varanda até, ou nas casas de paredes mal erguidas, tortas, iguais à árvore de espinhos.
A figura magra da minha mãe tinge meus olhos enquanto escrevo. Ela era a única realmente forte entre todos.
A Dom Aquino segue, descortinando o Amambaí.
Mergulho no chão da minha terra, despenca em torno de mim uma avalanche de sentimentos: o medo de rever antigos males; há rumores dos que não me encontraram e ainda me caçam.
Roço as costas das mãos, depois rodopio e retorno, deixando lá embaixo a vila, os casebres, os homens cheirando a pinga e as mulheres de bobes na cabeça.
A antiga rodoviária é um mausoléu mal assombrado.
A cabeça de boi surge estupenda e eu a reverencio num gesto de baixar a cabeça. Ali repousa um dos meus pedregulhos. Os antigos ainda se lembram da mata fechada logo acima, onde surgiam uns riscos d’água, como lágrimas quentes, correndo até despencar no Segredo.
A Marechal Rondon vai e a Antonio Maria Coelho vem.
Retorno e a luz quase me cega.
A Calógeras corre para a direita, a Rui Barbosa segue para a esquerda. Embaixo de frondosa árvore, repousa o poeta. Ele sorri. Ali guardei outro pedregulho tempos atrás.
No sinal fechado, o malabarista atira três facas para cima e as apanha em pleno vôo, formando um círculo de luz.  Vale os dois reais. Recebo de volta um sorriso e o agradecimento em espanhol. Eles nem desconfiam que naquela esquina, embaixo da calçada, existe um pedregulho cheirando a piche. Um homem fala de Deus com o livro sagrado preso às mãos. Ele olha o nada e enxerga o tudo, cita profecias, sem se importar que perto dali, mal a noite chega, as prostitutas, os travestis e loucos de diversas camisas de força fazem parte do mesmo esqueleto, se juntam na esquina na qual uma senhora vende cachorro quente, indiferente à neblina encobrindo a praça que já foi cemitério, fechada a sete chaves à noite, para não incomodar os defuntos, nem entupir os vasos sanitários.
Já não existem os trilhos, o trem parou de passar, mas o casarão resiste, repleto de história. O meu eterno colégio, envolto numa nuvem de abandono, parece conversar com o Mercado Municipal, num pedido de socorro, mas quem grita sou eu: não desabe, não se acabe, não desmorone, me permita sentir o encontro final, a prosa esparramando segredos, o piche arrancado pelos meus dedos, tingindo de negro a parede amarela, mantendo o alicerce no chão vermelho, meu chão, a raiz presa para sempre em meus pés.
A cidade cresceu acima de uma montanha de pedregulhos. Mas a essência está no centro, é ali que pulsa mais forte o coração do seu filho.
A Avenida Afonso Pena vai e vem e eu sigo também, tentando rever as andorinhas; a sobrancelha hirta, o nariz erguido rumo ao céu, cheirando o piche que sai da terra e despenca em torno de uma árvore torta, repleta de espinhos.

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