Relatos da hipocondria

A moça do rosto redondo se aproxima dos carros parados em fila dupla no sinal fechado.

Os vidros de fumê, que protegem o ar condicionado, são fortalezas instransponíveis, mas ela é perseverante, insiste com um leve toque de dedos, enquanto enxuga da testa as gotas de suor que se espalha pela testa ampla, resultado do costumeiro calorão campo-grandense de quatro e meia da tarde.

Estou na quinta posição na fila da esquerda.

Ela se aproxima lentamente, busca o meu rosto e instintivamente tento desviar meus olhos, em vão.

Um tanto sem jeito, abaixo o vidro do carro e ela me entrega um santinho de um candidato a vereador, desses que lá está há décadas, nada fez de relevante, mas tenta voltar.

Será que o candidato a vereador imagina que conseguirá votos distribuindo santinhos no sinal fechado?

Penso ligeiro, ao mesmo tempo em que busco usar de cortesia – compreendo que ela ali está para ganhar honestamente algum trocado – pego o santinho sem demonstrar desgostos e devolvo o sorriso, já me preparando para o aceno de despedida, no exato momento que ela faz uma careta, tenta se afastar, mas o corpo pesado a impede e então ela espirra, com força, numa inesperada e irresistível vontade.

Aflita, desajeitada, tenta limpar o meu rosto com a manga da camisa suada, mal tenho tempo de impedi-la, desenhando no meu rosto um riso forçado e já sentindo o inicio da febre, a hipocondria que me invade, sem permitir consertos.

Cheguei em casa com os olhos ardendo e numa vontade louca de tomar um banho, daqueles demorados, de espumas de xampu e esfregões de escovas.

Agora, depois de horas, ainda sinto a chuva de perdigotos que atingiu o meu rosto sem que eu pudesse escapar, encolhido entre o volante e o banco do carro.

Sei que é um defeito, que tento evitar, mas é mais forte que eu, simplesmente não posso ler nem ouvir, relatos de doenças.

Muito antes de aparecer de fato em terras tupiniquins, eu já consultava todos os efeitos da síndrome de Guillain-Barré, entre outras doenças graves.

E no ápice da loucura (ou seria frescura?), sentia absolutamente todos os sintomas.

Nem sei quando foi a primeira vez que li algo a respeito de parasitas, vírus e bactérias, mas deve ter acontecido lá pelos quinze anos, quando admiti como doença grave todas aquelas misteriosas mudanças hormonais.

Desde então, não consigo evitar o receio de contágios.

Com o passar do tempo, até melhorei, já não consulto bulas e dicionários em busca de sintomas e curas e desprezo o uso de álcool gel.

Sei, não sou o único, aqui em casa a Graziela, as crianças, somos todos incorrigíveis hipocondríacos, além de muita gente famosa: assisti a uma reportagem na qual o Ringo Starr cumprimenta as pessoas usando os cotovelos, Michael Jackson usava luvas e máscaras para respirar, até Darwin era hipocondríaco.

Entretanto, devo ter uma saúde de ferro, nunca desmaiei, nenhuma operação, nada grave, embora ainda há pouco, tenha largado três espirros seguidos e, incomodado, percebi que não tinha ninguém por perto para me desejar saúde…

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