Turbulências

A primeira vez que voei ocorreu na semana seguinte ao atentado às torres gêmeas.

Antes eu não tinha medo de quase nada, só de fantasmas, lobisomem e ratos.

É bem provável que essa lista seja mais extensa, mas voltemos ao avião: o primeiro desconforto foi perceber que aeroporto é um lugar fácil de se perder.

Em meio a setas, monitores e gente estranha, me senti um vencedor quando encontrei o portão de embarque.

Eu estava um pouco ansioso, mas o meu queixo danou a bater quando uma voz feminina anunciou o embarque do vôo 6666 com destino a Campo Grande.

As escadas de alumínio refletiram alguns rostos e senti uma vontade enorme de fugir, recuar, mas nem tive muito tempo de pensar, já arrastado pelos passageiros que vinham atrás.

Meu lugar era na poltrona do meio e me lembro com detalhes o senhor enorme ocupando a janela e uma senhora muito magra que ficou na poltrona do corredor.

Exprimido entre eles, tentei mentalizar a quinta de Beethoven , embora o momento pedisse um rock pauleira.

A voz do piloto ecoou pela nave e bateu de vez o desespero.

Será que ficaria muito chato se eu pedisse para descer?

A comissária se postou ereta à nossa frente, fazendo gestos com os braços, aumentando minha aflição.

O suor quente escorreu por minha testa após o último aviso: em caso de queda no mar, as poltronas serviriam de canoa, ou algo assim: danou tudo, pensei, eu não sei nadar.

Tentei conversar com o sujeito da janela, mas ele estava entretido fazendo palavras cruzadas.

Olhei com olhar de filhote de cachorro para a dona magra no outro lado, mas ela estava em meio a uma oração.

A imagem das torres gêmeas era tudo o que eu conseguia pensar.

A voz do piloto me pareceu grave demais: “tripulação, preparar para decolagem”, e não disse mais nada, o bicho rugiu feio, os motores explodiram e eu percebi o quanto a vida não vale nada, bastava uma faísca errada e todos viraríamos carvão.

Joguei novamente as vistas para o lado da senhora magra e percebi, abismado, que ela simplesmente fechou os olhos e dormiu.

Como alguém consegue dormir estando próximo do fim de tudo?

Veio então o primeiro solavanco e meu olho esquerdo afundou.

Só o esquerdo, o direito permaneceu aberto mais que o normal, em constante vigília.

Novos solavancos se seguiram e tive ímpetos de gritar para que a dona magra do corredor acordasse ou o infeliz da janela parasse com as palavras cruzadas.

As luzes acenderam e a voz grave do comandante avisou que havíamos passado por uma zona de turbulência, garantindo tranqüilidade dali adiante; quanta maldade podia ter avisado antes, talvez eu não tivesse trocado o fígado de lugar com a garganta.

Quando enfim pousamos, abri no rosto o sorriso igual ao gato de Cheshire.

Meus pés tocaram o solo moreno da minha cidade e ainda que os ouvidos zunissem, senti um alívio tão grande que quis dançar a galopeira.

Nesse troço “num munto mais”, pensei, juntando restos de palavras misturadas ao suspiro de alívio.

Muitos vôos depois, já não sinto medo, apenas me entupo de calmantes e durmo a viagem inteira.

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on print
Imprimir

Loja Virtual

Busca

Está com dificuldades para encontrar? Utilize os filtros abaixo para aprimorar a sua busca.

Categorias