CRÔNICA DE UM DIA DISTANTE

Hoje é um típico dia de verão do ano de dois mil e cinquenta. Verão tem coisas que as outras estações não têm. É o tempo que muda de repente, a chuva que cai e logo se vai na enxurrada, transformando o pó em barro. Meus olhos cediços percebem o movimento do tempo, que insiste me contar os casos de ontem. Já vivi mais do que poderia supor, oitenta e cinco anos que hoje completo e até agora ninguém me cumprimentou. Talvez mais tarde, quem sabe. Como sempre acordei cedo e os outros estão dormindo, esticados nas conchas. O sonho de ontem me faz recordar coisas do passado: amigos que se foram, um tucano comendo jatobá. Tucano não existe mais, nem jatobá. O tempo voa e não volta. Uma canção do saudoso Milton Nascimento dizia: “os sonhos não envelhecem”.  É verdade, prossigo jovem na ilusão de meus sonhos, nos quais caminho e revejo a cidade quando tinha obelisco e no mercadão as índias vendiam sopa paraguaia. Um leve tremor me percorre todas as vezes que estaciono os olhos num determinado lugar, que é branco, cinza, nem sei. Será o fim que se aproxima? Existirá um fim? Deus existe? Religiosos ainda brigam, cada um defendendo seu Deus. Insistem por um lugar no céu, enquanto outros, como eu, esperam que Ele se mostre entre nuvens douradas e diga: “aqui estou, parem de brigar!”. Nem tudo foi melhor que agora, a substituição dos políticos por computadores, por exemplo, foi um grande avanço. A máquina é mais justa que os homens, não roubam, não se locupletam. Aos poucos os de casa despertam. Minha neta estranha que eu continue digitando no computador e se mostra assombrada quando encontra um dos livros da minha coleção. Papel é para ela algo muito estranho e, desatinada, desconhece Gabo e Rubem Braga. Que pena. Fica sobrevoando em volta de mim com seu tênis planador, às vezes balançando a cabeça, como se estivesse diante de um museu ambulante. Sei que meu modo de vestir; calça jeans, camiseta e tênis, é para ela coisa de gente velha, mas por mais que insista, jamais usarei suas roupas de acrílico. As pessoas precisam entender que eu sou de muito antes do terremoto.  Uma luz piscou e não sei se é real. Às vezes confundo o concreto com o virtual, não uso nature sensation porque prefiro ir até a montanha para sentir o cheiro da cânfora e insisto ignorar o tal transmutador: entrar numa caixa e sair do outro lado do mundo, não me causa sossego. Outro neto se aproxima e me faz um carinho. A irmã se junta a ele e no aperto de um botão se ligam ao mundo que surge na parede, fazendo com que figuras adentrem a nossa casa e misture de vez o real com o virtual. Fico quieto, abraçando o passado, sedento em lhes mostrar que o dia já foi mais azul e a noite mais estrelada, porque o céu de hoje sente falta das estrelas que morreram e dos passarinhos de antes, mas eles não escutam os gritos do meu silêncio, prosseguem tateando o nada, sequer desconfiam que eu já vi um tucano comer jatobá.

Benzedeiras, espelhos e temporais

Minha bisavó se chamava Luciana e era benzedeira.

Sua filha mais nova contava que ela a ensinou a enfrentar os temporais, afirmando que o perigo está na luz dos raios, “que já passou”, e o trovão era apenas um barulho.

Tinha olhos azuis bem claros, que não conheci porque ela morreu pouco depois que nasci e não restou nenhum retrato.

Deixou ensinamentos que foram passando de geração, alguns ainda sobrevivem, causando enlevo:

Quando caía chuva forte, minha mãe corria por toda casa com pedaços de pano para tapar os espelhos, que afirmava atrair os relâmpagos.

“Sua bisavó me ensinou” contava séria, fixando seus olhos grandes nos meus de criança, sem deixar rastros de dúvidas.

Talvez por isso, não gosto de espelhos, e só não torcia para a chuva continuar caindo, mantendo os espelhos tapados, porque tinha medo de chuva.

Acho que ainda tenho, só não demonstro.

Logo que terminava de jogar os lençóis nos espelhos, dona Dalva fechava o guarda roupas, que tinha um espelho na parte de dentro da porta, que ela também cobria com lençol, e retirava de dentro da gaveta alguns chinelos de borracha que nos obrigava usar, porque sabia que tapar os espelhos era um dever de respeito aos costumes, enquanto que os pés nos chão, uma ameaçadora realidade que de fato atraí os relâmpagos.

Depois se aquietava, olhando a claridade efêmera que escapava das nuvens e deixando um conselho com o olhar, para que, depois que a tempestade se fosse, não deixássemos os chinelos emborcados

Ainda hoje, quando chove, sinto uma estranha vontade de cobrir os espelhos de casa.

Resisto porque sei que muitos consideram bobagem, da mesma forma que sei que muitos estranham que não deixo calçados virados, porque minha avó, ao se dar com calçados emborcados, tratava de desvirá-los, senão, alguém haveria de morrer.

Lolinha levava aquilo tão a sério, que se culpava porque não percebeu o chinelo da mãe revirado no quintal, poucos dias antes dela morrer.

E pra esconder a tristeza, escrevia cartas de letras cursivas, que pareciam dançar suavemente na folha rota de papel, representando a dor da saudade.

Ah, quanta falta eu sinto da minha avó, que era a filha mais nova de Luciana e carregava seus ensinamentos de benzedeira, embora não os usasse porque, diante das proezas da mãe, se considerava incapaz.

Lembro que minha avó decifrava o cantar das aves.
Assim, sabíamos o mau agouro do pio estridente da coruja e a melodia do bem-te-vi, o primeiro anunciava notícias ruins, o outro, a vida através da gravidez.

Num tempo que as lamparinas clareavam a sala, Lolinha contava histórias com a voz pausada e terna; contos fantásticos, repletos de magia, embora muitas vezes causasse desconforto, como quando afirmava que o espelho não refletia a nossa imagem, mas a de outra pessoa, que, noves fora a aparência idêntica, era completamente contrária à pessoa real, tanto que vivia presa num mundo paralelo.

Lolinha foi de encontro a Luciana no começo de 2004 e, desde então, voltou em torno de mim a antiga desconfiança quando as nuvens escurecem o dia.
Sinto falta da força misteriosa que a sua presença me causava.

Tendo-a ao meu lado eu perdia o medo dos temporais e enfrentava os espelhos.

Minha mãe não sabe responder se morreram todas as benzedeiras.
Quando pergunto, vejo novamente nos olhos de dona Dalva aquele mesmo espanto dos dias de trovão, como se procurasse algum espelho para tapar, enquanto navega na mente à procura da cura de quebranto nas mãos de uma benzedeira

E a pergunta retorna mais forte: Será que morreram todas as benzedeiras?

Antigamente elas viviam espalhadas em casas de quintais floridos, e nada cobravam. Tinham noção daquele exercício de divino dom, que de tão raro e bom, não tinha preço.

Ventre virado e quebrante eram males que somente as benzedeiras sabiam curar.

Certa feita me surgiu uma ferida no braço, “mijada de aranha” – disseram – que nenhum mertiolate, pomada ou algo do gênero foi capaz de curar, mas que sumiu, de um dia para outro, levada pelos murmúrios em forma de oração de uma senhora dos cabelos bem brancos e ligeiramente desgrenhados, que enquanto tentava controlar a tremura, passava no meu braço uma folha de alecrim que exalava um inesquecível cheiro bom.

O mundo anda precisando de benzedeiras.

Talvez elas ainda existam e estejam por ai, se escondendo da intolerância dos dias de hoje, em cantos de quintais floridos, curando, caladas, as feridas que o homem não consegue lidar, tapando os espelhos em dia de chuva, desvirando os calçados e espalhando pelo ar o doce cheiro de alecrim.

O HOMEM QUE COCHILA

Na sala de espera da oficina mecânica, me vejo sentado de frente a um casal. 
A mulher está aflita. É o que dizem os joelhos que tremem e as mãos que a cada minuto passeiam pelo rosto de pele clara. 
O marido, ao contrário, é daqueles que sabem esperar. 
Consigo perceber toda a calma do mundo em seu rosto redondo. 
Depois de me lançar um breve olhar de aceno, ele ajeitou o corpo obeso no sofá e no instante seguinte já estava cochilando. 
Sou uma pessoa de invejas tolas, de coisas sem muita importância, como essa capacidade que algumas pessoas têm de simplesmente fechar os olhos e cair num sono leve. 
Sou incapaz disso. 
Só consigo dormir com o corpo esticado e a cabeça pousada num travesseiro, se tiver outro travesseiro que eu possa colocar em meio às pernas, melhor. 
Indiferente ao meu pensamento navegante, o homem consegue roncar, para desassossego da mulher, que olha para ele de um jeito sem palavras, acostumada com a cena. 
Ela balança a cabeça negativamente, como se para aquele mal, não houvesse solução que não fosse se conformar. 
O cochilo foi breve, de repente ele acordou, olhou para os lados, com olhos murchos dos recém acordados e baixou a cabeça ao perceber que tinha dormido sem sentir e que o sono breve lhe trouxe o conforto do sonho leve, daqueles que desejamos a todo custo dormir novamente e retornar no exato ponto onde parou. 
O barulho do ronco dá uma esticada no exato instante que a mulher lhe deu um cutucão de desaprovação. 
Os olhos se abrem lentamente, caindo aos poucos da pestana pesada. 
Ele novamente não se mostrou nem um pouco incomodado, já ajeitando novamente o corpanzil no sofá. 
Bocejou, olhou para mim e logo depois desviou o olhar. 
Retirou do bolso o frasco de um colírio. 
Não se incomodando com as pessoas à sua volta, muito menos com meu olhar de surpresa, arregalou os olhos vermelhos o quanto pode e neles pingou diversas gotas do colírio. 
Sem perceber, acabara de executar outra tarefa que sou incapaz de realizar: jamais consegui usar colírio sem o auxílio de outra pessoa, e sempre pisco na hora que a gota está prestes a cair. 
E desabou para o lado num novo cochilo, dessa vez completamente relaxado, as pernas esticadas, a barriga que tentava escapar entre os botões da camisa. 
A mulher ficou minutos olhando para ele, sem mexer sequer um músculo do rosto. 
Quando olhou para mim, fez sinais de desaprovação com a cabeça e se levantou para se servir de café. 
O sujeito que cochilava percebeu o caminhar da mulher. Era uma espécie de sinal de alerta, assim que ela deu os primeiros passos, ele acordou, dessa vez disposto a abandonar o cochilo. 
Sorriu para mim, despachado. 
Era um rosto inchado, repleto de riscos de cansaço. 
A mulher colocou algumas gotas de adoçante no café que bebeu, em seguida, num gesto automático, encheu outro copo com açúcar e café e trouxe até o marido, que bebeu tudo em poucos segundos. 
Era a terceira tarefa que o homem que cochilava realizara e que eu não posso fazer, já que açúcar é, para mim, sinônimo de veneno. 
O atendente chamou meu nome e fui buscar meu carro. 
Ao sair, voltei meus olhos para a sala de espera, só para constatar, só para ter certeza: com os braços cruzados sobre a barriga, o homem novamente cochilava num descabido impudor. 

NO SINAL FECHADO

No cruzamento da avenida, o enorme painel marcava 35 graus.

Dava para ver a bruma de calor que subia entre os vãos do asfalto.

De repente o sinal fechou e um motoqueiro parou ao meu lado.

Trazia na garupa uma moça magra.  Danaram a falar tão alto que dava para ouvir de dentro do carro.

Quanto tempo dura um sinal fechado?

Firmei o rosto para frente e encarnei Simeão Estilita, aquele santo que viveu meditando, imóvel e calado, no cimo de uma coluna de pedra. Mas meus ouvidos permaneceram atentos. Nunca gostei de ouvir conversas alheias, mas não tive escolhas, era como se o casal estivesse sentado no banco traseiro do meu carro.

Discutiam a relação.  Sinal fechado lá é lugar de discutir a relação?

Tenho a habilidade nata da visão lateral, consigo enxergar as coisas do meu lado como se estivessem de frente. Pude perceber que a moça tinha os olhos amendoados e os cabelos finos, ligeiramente castanhos, que escapavam na testa e desfilavam no sopro do vento.

Dele só percebi a gota de suor escorrendo pela testa ampla.

A moça reclamava de traição, enquanto ele retrucava a chamando de ciumenta.

Num dado instante, ela ameaçou descer da moto.

Conteve-se, ergueu a cintura, ajustou o corpo para trás e mordeu o dedinho róseo; meio brejeira, um tanto encabulada.

Depois prendeu as pernas perto do escapamento e se segurou no banco da moto. Os braços finos e frágeis ganharam um estranho vigor.

O vento bateu mais forte e ela soprou com raiva a mecha de cabelo do canto da boca. Manteve o corpo ligeiramente jogado para trás, não queria mais abraçar o companheiro.

E nada do sinal abrir.

Retomaram a discussão no exato instante que uma chuva repentina caiu de fininho, e eu, que nunca rezo, rezei para chuva aumentar, no desejo de mais nada ouvir que não fosse o barulho da chuva.  Para meu desalento, era nuvem passageira e logo a discussão retornou.

Um malabarista passou perto deles jogando ao ar sete bolas coloridas e tentei prestar atenção apenas no malabarista, mas o motoqueiro estava tão enfezado, que gritou um impropério, fazendo o malabarista perder a concentração.

As bolas se esparramaram pelo asfalto.

“Ciumenta!” gritou o motoqueiro enfezado em meio a gestos descompassados. Depois respirou fundo, afrouxou os ombros e num ato repentino, acelerou a moto sem sair do lugar.

O semáforo prosseguia fechado.

Os olhos crispados da moça ganharam um vermelho de cólera.

A luz do sol brilhou, mostrando parte do rosto do rapaz zangado, que coçava a barba rala enquanto mantinha o pé apoiado no asfalto, novamente acelerando a moto sem sair do lugar.

Dela só se ouvia o leve murmúrio, salgado feito a lágrima que ela se esforçava reter, perdida na imaginação de atitudes e decisões que não poderia adiar.

Então olharam para mim, os dois, ao mesmo tempo.

Congelei por instantes.

O sinal finalmente abriu.

Apertei o acelerador permitindo que um som imaginário, bem próximo da quinta sinfonia de Beethoven, me invadisse como se fosse a trilha sonora de um filme de suspense.

Sina de escritor: O sinal verde foi a deixa para que na minha cabeça personagens começassem a caminhar: a moça ciumenta, o jovem enfezado que acelera a moto sem sair do lugar, fazendo marcas no asfalto, ligeiramente molhado por águas de uma chuvinha passageira, espalhando no ar luzes coloridas, que formaram um pequeno arco-íris.

Virei na outra esquina, o casal seguiu em frente.

Restou no retrovisor traseiro do meu carro a imagem do pequeno arco-íris subindo ao céu,  formando um mosaico de cores tão fantasticamente belo que nem toda a ira do mundo foi capaz de apagar.

Depois prendeu as pernas perto do escapamento e se segurou no banco da moto. Os braços finos e frágeis ganharam um estranho vigor.

O vento bateu mais forte e ela soprou com raiva a mecha de cabelo do canto da boca. Manteve o corpo ligeiramente jogado para trás, não queria mais abraçar o companheiro.

E nada do sinal abrir.

Retomaram a discussão no exato instante que uma chuva repentina caiu de fininho, e eu, que nunca rezo, rezei para chuva aumentar, no desejo de mais nada ouvir que não fosse o barulho da chuva.  Para meu desalento, era nuvem passageira e logo a discussão retornou.

Um malabarista passou perto deles jogando ao ar sete bolas coloridas e tentei prestar atenção apenas no malabarista, mas o motoqueiro estava tão enfezado, que gritou um impropério, fazendo o malabarista perder a concentração.

As bolas se esparramaram pelo asfalto.

“Ciumenta!” gritou o motoqueiro enfezado em meio a gestos descompassados. Depois respirou fundo, afrouxou os ombros e num ato repentino, acelerou a moto sem sair do lugar.

O semáforo prosseguia fechado.

Os olhos crispados da moça ganharam um vermelho de cólera.

A luz do sol brilhou, mostrando parte do rosto do rapaz zangado, que coçava a barba rala enquanto mantinha o pé apoiado no asfalto, novamente acelerando a moto sem sair do lugar.

Dela só se ouvia o leve murmúrio, salgado feito a lágrima que ela se esforçava reter, perdida na imaginação de atitudes e decisões que não poderia adiar.

Então olharam para mim, os dois, ao mesmo tempo.

Congelei por instantes.

O sinal finalmente abriu.

Apertei o acelerador permitindo que um som imaginário, bem próximo da quinta sinfonia de Beethoven, me invadisse como se fosse a trilha sonora de um filme de suspense.

Sina de escritor: O sinal verde foi a deixa para que na minha cabeça personagens começassem a caminhar: a moça ciumenta, o jovem enfezado que acelera a moto sem sair do lugar, fazendo marcas no asfalto, ligeiramente molhado por águas de uma chuvinha passageira, espalhando no ar luzes coloridas, que formaram um pequeno arco-íris.

Virei na outra esquina, o casal seguiu em frente.

Restou no retrovisor traseiro do meu carro a imagem do pequeno arco-íris subindo ao céu, formando um mosaico de cores tão fantasticamente belo que nem toda a ira do mundo foi capaz de apagar. 

ATRÁS DA JANELA, CANTOU O PASSARINHO

Quanto mais o tempo passa, mais tenho a certeza que logo me transformarei num velho resmungão. 
Piu, piu, tirim, tiririm, cantou o passarinho atrás da janela do meu quarto. 
Era o anuncio da chegada da primavera. 
A cidade não havia despertado, dava para ouvir o silêncio lá fora, entrecortado pelo canto do passarinho. 
Abri a janela e dei de frente com ele, na galhada mais alta do pé de limão, um sabiá laranjeira, estufando o peito e cantando sem parar. 
É assim que os pássaros namoram, me contou mister Google. 
Piu, piu, tirim, tiririm, o bicho prosseguia piando enquanto eu passava manteiga no pão, a faca que deslizava, leve no início, movimento que fui aumentando conforme a cantoria invadia minha cabeça: piu, piu, tirim, tiririm. 
Notei que o sabiá desafinou na última nota, o que me fez recordar um amigo que criava passarinhos e tinha um curió que cantava um som mavioso, mas que quando eu prestava mais atenção, parecia sobradar tristes soluços. 
Curió é triste e encantador ao mesmo tempo. 
De novo ouço o piu, piu, tirim, tiririm e a irritação toma conta de mim; que diabo de surda é a fêmea deste bicho que não lhe atende o chamado? 
No outro dia a cena se repete atrás da janela e prossegue toda a manhã, indo até o fecho da tarde, se confundindo com o canto das cigarras, entrando à noitinha e desafiando os gatos vadios. 
Se ao menos fosse um curió – pensei – enquanto ajeitava o sapato no pé, apagando a vontade de jogá-lo no bicho que não se calava; piu, piu, tirim, tiririm, o dia todo assim. 
E na mania que não desgrudo de dar nome aos bichos, resolvi chamá-lo de Zezé de Camargo, que é outro cantor que me irrita facilmente. 
E não encontrando o silêncio em parte alguma, decidi fazer uns serviços de rua, ir pra bem longe da cantoria. 
Mas a cidade e seus tormentos não conseguiram tirar da minha cabeça aquele piu, piu, tirim, tiririm. 
Na ânsia de resolver o problema, pensei comprar uma fêmea sabiá, dá-la de presente ao danado do Zezé e restaurar o silêncio. 
O Google me salva novamente, ensina que não é assim que as coisas funcionam; o macho tem que atrair a fêmea e a arma que usa é o canto. 
Num breve momento de sensatez, faço uma autocrítica: que sujeito estressado estou me transformando, enfezado com o som de passarinho! 
De repente estalo os dedos ao lembrar que no meio das minhas coisas velhas, que guardo até hoje, tem um estilingue. 
Balanço a cabeça e me nego seguir adiante, perplexo com minha própria crueldade, logo desistindo da ideia, até porque sempre fui ruim de mira e nem quando era garoto conseguia acertar a estilingada; apontava, esticava e atirava, sempre longe do alvo. 
Hoje pela manhã, mais atento, percebi que não se trata de um único pássaro, são vários. 
Corro até o Google e descubro que há uma disputa entre eles: aquele que cantar mais alto e forte, ganha o amor da fêmea. 
Piu, piu, tirim, tiririm, um bando emplumado prossegue assobiando sem parar, logo atrás da janela do meu quarto. 
“se não pode com ele, junte-se a ele”. 
Assim pensando, coloquei um banco perto da janela e fiquei escutando a cantoria dos bichos. 
O curió canta melhor que vocês, eu disse, sorrindo para eles. 
Piu, piu, tirim, tiririm, responderam os sabiás. 

O QUE VOCÊ VAI SER QUANDO CRESCER?

Dias atrás, observando meu filho, senti vontade de lhe fazer uma pergunta ao percebê-lo perdido num jogo de computador, mas que acabei abortando, para não provocar nele a mesma sensação estranha que tive tempos atrás, quando uma pessoa que não recordo o rosto, mas não esqueço da voz, me perguntou de chofre: o quê você vai ser quando crescer? No alto dos meus dez anos de então, respondi sem pestanejar que seria astronauta. O tempo, esse malvado, foi passando e logo descobri que tinha medo de altura, fazendo com que o astronauta morresse numa nave que se perdeu no espaço. A pergunta continuou latejando em minha cabeça. Quando encontrei um pássaro ferido e dele cuidei até que conseguisse novamente voar, imaginei que poderia ser um ótimo veterinário. Mas numa viagem a um sitio, assisti pálido e sem reação, o nascimento de uma novilha. Naquela mesma manhã, o bom veterinário que eu poderia vir a ser, partiu numa estrada de chão, aos poucos se perdendo mata adentro, seguido por diversos pássaros das asas quebradas, feitos bêbados em fim de noite.  Pensei então que poderia ser médico, mas tão logo me dei de frente com alguém sangrando, descobri que jamais poderia socorrê-lo e fui sepultando o médico, que sumiu sem se despedir, dando lugar ao advogado.  Não tardou para que eu me convencesse que não daria certo; não suporto ternos, sapatos apertados e gravatas, além do mais importante: sou daqueles que acredita fácil nas pessoas, seria um advogado anticético, preenchendo o mundo de inocentes, ainda que culpados fossem. Tão logo me apeguei ao raciocínio lógico, fiz com que o advogado viajasse para lugar distante e desconhecido do qual nunca mais retornou. Depois, não sei o que me deu, permiti que um relâmpago insano me levasse a crer que eu poderia ser engenheiro, que, coitado, acabou caindo da ponte que ergueu e era fraca, porque sempre foi ruim de cálculo e nunca mais foi visto, levado pela enxurrada. O tempo prosseguiu com suas pernas largas, enquanto eu continuava sonhando, sem me decidir o que seria ao crescer.  Outros destinos escaparam sem que eu me queixasse, por exemplo, nunca quis ser dentista, porque o barulho daquele motor me incomodou bastante na primeira vez que enfrentei uma obturação, mesmo incômodo causado pelo giz deslizando no quadro negro, que apagou a ideia de me transformar num professor. Já desejei ser motorista de caminhão, garçom, cantor de boate. Hoje sou publicitário, sem, no entanto, por destino ou fraqueza, desempenhar as funções para as quais estudei. Restou o murmúrio de dúvidas que faço a mim mesmo, nos momentos que me vejo sozinho e revejo o menino acanhado que fui e que não tinha respostas para nada. Sinto alívio ao perceber que sou feito de sonhos, e sonhos não são concretos, possuem asas de delírios, desses que só alguns conseguem enxergar, me trazendo a doce sensação de certeza; até hoje não sei o que vou ser quando crescer.

TEOREMA DA CALVÍCIE

O título dessa crônica tem a ver com a teoria do físico americano Jonh Wheller na qual afirma que os buracos negros não têm cabelo.

Mas não é disso que quero falar.

Semana passada, a crônica da Tereza Hilcar nos brindou com as atribulações que a escritora enfrenta com os cabelos.

 Li o texto no deleite do contraponto: sofro do mesmo mal, mas pela ausência.

 Eu tinha uma cabeleira enorme, tipo cachopa, que cuidava com carinho.

 Num dia de muito calor, à beira de uma piscina, contei os passos, fechei os olhos e pulei.

 Quando voltei à tona, os amigos riam e eu não sabia o porquê, até que um deles, apontando para a minha cabeça, exclamou: você está ficando careca! Fingi que não liguei, mas assim que se aquietaram, fui até o banheiro e constatei o estrago. 

Em contato com a água, a cachopa abriu uma cratera bem ao meio e restou um vão claro que tentei ocultar.

 Daquele dia em diante, eu já sabia que meus cabelos não resistiriam ao tempo.

 Lutei com diversas armas, de bosta de galinha preta a xampu importado, tudo em vão.

Aos trinta anos já ostentava a falha nos cabelos, restando o estilo moicano às avessas, que me acompanha até hoje.  

O mais estranho é que meu pai não era careca, nem meus irmãos.

A teoria do castigo às vezes passa pela minha cabeça; talvez seja carma, a paga de algum pecado terrível.

Costumo dizer que não sinto falta dos meus cabelos, mas minto, gostaria sim de ter cabelos, só pra poder cortá-los e mudar o visual, me transformar numa espécie de David Bowie pantaneiro, pintar de ruivo, loiro, o escambau, ou apenas para sentir o prazer de entrar numa barbearia e pedir: Jonas corte americano, por favor!

Hoje assumi a falha, mas não hesito comprar chapéus, que depois não uso, porque incomoda e me sinto ridículo.

Teve um momento que ameacei usar bandana, que estava na moda, Romário e o cara do Guns N´ Roses a estavam usando; comprei uma azul com detalhes dourados, coloquei na cabeça, me olhei no espelho e o sentimento de completa aniquilação tomou conta de mim: nunca me senti tão ordinariamente ridículo.

Certa vez, logo que a calvície surgiu, sofri um grande constrangimento num ônibus, quando passei pela catraca e segui em frente, distraído, até o cobrador me chamar: “ei careca, você se esqueceu de pegar o troco” e todo mundo olhou para mim. Senti-me uma espécie de gnomo.

Recentemente fiquei sabendo que os japoneses criaram um produto que faz os cabelos renascerem.

Estou no aguardo que a novidade chegue logo ao Brasil, mesmo que pulse a dúvida: se depois de tanto tempo irei me acostumar com a cabeleira.

Talvez finalmente eu chegue à conclusão que melhor mesmo é a calvície e de pronto tenha em mãos navalha e tesoura.

Se nem os buracos negros, que são os buracos negros, não os têm, porque eu, um simples humano, haveria de ter cabelos?

Certo está um amigo que sofre do mesmo mal e bate no peito ao afirmar: “se cabelo fosse bom, não nascia no sovaco”.  

É isso, o resto é teoria.

PUTZ GRILA!

Estava com os pés esticados por sobre uma almofada e a cabeça refestelada num travesseiro quando tive a ideia de escrever essa crônica diferente, com elementos de escrita que não usamos mais, inspirado no diálogo que ouvi na noite anterior, num daqueles restaurantes da feira central.  Um casal, que pela aparência julguei que se conheceram nos anos oitenta, tentava escolher o que comer no cardápio. O homem, um grandalhão desajeitado que mal cabia na cadeira, de repente exclamou: “Putz grila, broto!”. Não pude evitar a alegria que se formou em meu rosto. Adoro palavras que não usamos mais. Então fui para casa assistir um filme antigo que, de borococho, a história ficou supimpa e me interessei pelo quiprocó que se formou quando um cara cafona, ao lado de uma sirigaita, tomou vários goles no bico da garrafa e ignorando a amiga lambisgóia, lançou olhares prafrentex em direção à loira de farmácia que sequer lhe deu bola. Com a cara cheia de manguaça e chateado pelo fora, pegou no volante do carro chumbrega fazendo ziguezagues até provocar uma trombada. Restou o abacaxi para o sujeito resolver. O dono do outro carro surgiu de repente: “Putz grila, olha o que você fez com a minha caranga!”, gritou desesperado, porque gostava mais do carro que da gata que lhe acompanhava e foi juntando com as duas mãos o pescoço do bebum. Logo surgiu uma patota que tentou manter tudo nos trinques. Era um grupo jovem e unido que imediatamente me remeteu à minha antiga curriola.  Ah, os amigos de antes, que fim levaram? A turma era batuta, fazíamos o que nos vinha na veneta. Quando as coisas ficavam difíceis, dizíamos: tá russo, na dúvida, o escambau, na raiva, chispa daqui. Senti uma pontada de fossa das antigas, aquela leve dor de cotovelo que logo passava, bastava arrumar outra paquera. Certa vez, a amiga de uma amiga, pediu para ela me dizer que me achava um pão. Fiquei envaidecido. É que ser pão era tudo de bom. Minha tia namorou um sujeito porque, segundo ela, dito cujo era um pão. Podes crer, ela estava gamada. Caramba, gamada! Quem é que fica gamada hoje em dia? O tímido era mocorongo e quando as coisas caminhavam para o brejo, parece que ainda ouço o mais ponderado falar: podes crer, isso vai dar bode. Aquele amigo que dizia que eu era um barato, existe em tons cinzas na minha memória, porque tanto tempo de ausência, fez com que me esquecesse o seu rosto, a voz e tudo o mais. Esqueci até o nome desse amigo, mas me recordo da frase que ele mais gostava: “Chocrível tudo isso, saca cara?” Dizia quando se dava com as mocinhas que passeavam na calçada com medo de ouvir um assovio constrangedor. Quando o filme acabou, restaram saudades e palavras mortas na minha cabeça. Fui à geladeira, peguei um grapete e bebi tentando sossegar a alma que insistia lembrar que eu já fui careta, cafona, bicho grilo. Minha nossa! Será que continuo sendo bicho grilo? Em homenagem às palavras mortas que não voltam mais, deixo nesse epílogo reticências ao invés da frieza de um ponto-final…

HÃO DE CHORAR POR ELA OS CINAMOMOS

No final da tarde, peguei um livro na estante e fiquei um bom tempo com os olhos pregados na estrofe inicial: “hão de chorar por ela os cinamomos”. É um trecho de um poema de Alphonsus de Guimaraens, poeta devastado pela morte da noiva, que, amargurado, cantou em versos a tristeza. Não gosto de tristeza, prefiro o sorriso. Ainda há pouco, um tucano solitário rasgou o céu do meu quintal e se meteu entre as nuvens. Bicho solitário é bicho triste. É o mesmo cenário de um ano antes e eu ainda fumava. Lembro da fumaça subindo ao céu, como se pretendesse voar junto com o tucano. Foi um dia triste, eu estava tentando concluir o final de um personagem, iria matá-lo e já sentia saudades. A arte de escrever requer tristeza, todo escritor, quando em processo de criação, é um ser triste e solitário. Afinal, quem haverá de entender o sujeito que se tranca num mundo que caminha unicamente pela sua cabeça e vai criando situações e personagens?  E lá estava de novo o tucano rompendo o céu e o dia também é triste, não sei por que, mas é. Tudo parece um estranho ritual, o pássaro solitário, o poema triste, o dia que está frio. Antes que a tristeza me devasse, lembro que sorrir sempre foi do meu feitio. E a imagem do tucano volta à minha mente. Seria o mesmo pássaro do ano passado? Entro em casa e esbarro numa revista que abre na página com a figura da Frida Kahlo, que me encara na sobrancelha severa, o olhar penetrante do rosto sério e contemplativo da mulher que nunca sorriu. Provavelmente uma das pessoas mais tristes que se tem conhecimento: “Bebia para afogar as mágoas, mas as malditas aprenderam a nadar”. Tento fugir da cena busco um copo de café, que um dia me disseram que café afugenta a tristeza, mas que, desastrado, derrubei na revista, cobrindo o rosto de Frida que se mostrou ainda mais triste, agora em tons marrons, essa cor sem graça, que representa a tristeza. Os olhos de Frida se apagam de vez.Sempre existiram pessoas assim, naturalmente tristes. Tive um amigo na adolescência que para espantar a tristeza, assoviava. Tudo seria normal se ele não vivesse assoviando. Por causa disso, durante um bom tempo eu sentia tristeza todas as vezes que ouvia vida cigana. É que ele adorava essa música eterna do Geraldo Espíndola. Não sei se esse amigo conseguiu retirar o carvão que plantou no peito e espantou a tristeza. Nem sei afinal porque estou escrevendo sobre a tristeza. Talvez por causa do tucano, ou é obra da foto da Frida Kahlo, pode ser esse vento gelado que não quer ir embora, só sei que não me sai da cabeça a poesia de Alphonsus de Guimaraens, como se de alguma forma pudesse caminhar entre cores roxas e virgens mortas. Limpo com as costas das mãos a foto de Frida e a encaro, assovio vida cigana sem sentir tristeza e deixo escapar um singelo conselho: saiba sorrir o que chorar não soube. E o tucano retorna do horizonte mostrando a plumagem mais brilhante.

O INCRÉU

O assunto é espinhoso. Estava vendo futebol com amigos e reclamei quando um jogador comemorou a feitura de um gol com os dedos erguidos para o céu. Aproveitei e reclamei do excesso de religiosidade, dos aproveitadores que usam recursos da fé em benefício próprio e de grupos que se formam aos montes em torno da religião, inclusive os perigosos políticos. Bastou para que um amigo me acusasse: “Você é um incréu”. Na hora nada respondi, mas depois fiquei conversando com a manga da minha camisa, perguntando se sou mesmo um descrente. Não posso negar o incomodo que a acusação me causa, é espinho que me arranha a alma. Não condeno quem segue uma religião, sei dos bons propósitos da maioria, o que me incomoda é a histeria coletiva que assusta e forma o corporativismo: “só é bom e decente aquele que comunga da minha fé”, resultando num perigoso preconceito contra outras religiões e os sem religião, como é o meu caso. “Quem não tem tempo para Deus, vive perdendo tempo” eles afirmam. Mas será que não basta uma simples oração antes de dormir? Torno a pisar no campo de espinhos. Fui batizado numa igreja católica, com nome espírita, que minha família tinha disso, um pouco de cá, outro tanto de lá e até hoje permanece assim, sem definição. Na juventude, fui solipsista, hoje me considero deísta e uma das certezas que tenho é que colhemos aquilo que plantamos.  Só sei que nada sei, e do pouco que consigo pensar, luto para que o niilismo seja esmagado. É estupidez imaginar o nada, que tudo foi criado pelo acaso. Certa vez, estive no interior do Ceará, em Jericoacoara. Lá, à noite, o céu se transforma num imenso lume de estrelas, que se aproxima, mostrando nossa total insignificância. Aquele lugar é uma das provas daquilo que Shakespeare escreveu: “mais mistérios entre o céu e a terra do que possa duvidar nossa vã filosofia”. Enquanto Kant afirma que a existência de Deus só pode ser provada a partir das exigências morais da razão prática e não da razão teórica, Nietzsche decretava: “Deus está morto”.  Se vivesse nos dias atuais, o filósofo alemão se convenceria facilmente que, na mente dos homens, Deus prossegue cada vez mais vivo. Resta a razão prática que Kant evocou. Na prática, sinto Deus quando ando de bicicleta e o vento sopra meu rosto, pressinto que está no Rinoceronte, que era o rascunho do cavalo e Ele teve piedade de apagar, está na graciosidade da girafa, que não possui voz e se comunica pelo pescoço e naquele inseto que consegue mudar de cor para fugir do predador. Nos momentos de lirismo, assopra confidências na cabeça dos poetas, como fez com Leandro Gomes de Barros “Fui temperar o choro e acabei salgando o pranto”. Deus está no focinho suado do meu cachorro que agora fareja o assoalho, está nas coisas que não sabemos, como as vinte e sete dimensões que um amigo afirma existir e nas coisas que vemos; a teia da aranha, a seda feita por um bicho, a lagarta que entra num casulo e de lá sai voando em asas coloridas de borboleta. Se pudesse voltar àquele bar, responderia ao meu amigo: não, eu não sou incréu, acredito em Deus, mas duvido muito dos homens.

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