Cenas do bar – Deus, o baseado e eu.

Meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista.
Recentemente, por causa do confinamento, descobri que solidão é um bicho maldito. Andei caçando coisas para fazer aqui no apê e até descobri cinco ou seis baseados antigos, enrolado num papel reciclável, guardados no vão do colchão.
O troço é da hora, extremamente relaxante e das asas leves como plumas. Mas fez bater uma pequena insônia, talvez fruto do medo da solidão. Ah, para com isso, eu só tenho medo de dentistas.
Onde deixei o vidro de rivotril?
Tinha um resto e eu precisava tomar. Ou será que já tinha tomado antes de deitar?
Fiquei buscando imagens, tentando dormir, pensei numa moça que vi usando máscara vermelha, passeando pela calçada sem se preocupar com os meus olhos de lince. Parece a Joana Prado, a Feiticeira, uma mulher linda do passado que usava máscara num programa de tevê.
Bons tempos.
Adormeci levemente e acordei num repente, um barulho de coisas se mexendo. Como a diarista não está vindo e eu sofro do mal da preguiça, o apartamento está uma bagunça, com restos de pizzas pelos cantos.
Tenho me alimentado mal, geralmente restos de pizza e vinho morno, amanhecido fora da geladeira.
O barulho prosseguiu e pensei na morte. Pensar positivo é sempre importante nessas horas: deve ser um rato.
Semana passada armei uma ratoeira bem perto da cama, gosto de ouvir quando dispara e o bicho dá aquele último grito de desespero.
Apurei os ouvidos e de longe veio a voz, que foi aumentando:
– Socorro, me tire daqui! Gritou o rato preso pelo rabo.
Levantei no susto e pensei sair correndo. Uma força sobrenatural me prendeu. Resolvi falar com o bicho:
– Porra, que merda é essa, você fala?
Ele me encarou como nunca um rato havia me encarado:
– Claro que falo, eu sou o criador.
– Oi? Como é?
E então surgiu a primeira intimidade:
– Me tire daqui, Vladimir.
– Você me conhece?
– Claro que conheço, você e todo mundo, já disse, eu sou o criador.
Ri com o canto dos olhos.
– O criador?…Tipo…Deus?
O rato balançou a cabeça num início de irritação:
– Tenho vários nomes. Mas é isso, eu sou Deus.
Deixei o ombro cair e busquei com os olhos o baseado ainda aceso no criado mudo.
– Ah, num fode, você é um rato.
– Vladimir, não quero dar explicações, me tire daqui!
– Uai, se você é Deus virado num rato, tem poder, então é só desvirar.
– Não consigo, a mágica do rato é pelo rabo e você armou essa porcaria dessa ratoeira que arregaçou exatamente o rabo.
Ah, será que ainda sobrou vinho? O rivotril secou?
Pensei um pouco, ele tinha os olhos bondosos e um jeito franco de me encarar. Na literatura, geralmente, ratos são bonzinhos. Preciso consultar aquele meu amigo.
– Rápido Vladimir, está doendo!
Balancei a cabeça, agachei e tirei o rabo do bicho da armadilha. Puft! Uma nuvem branca se formou após uma pequena explosão. Então o rato se transformou em um senhor bem velhinho, dos cabelos brancos esticados, os olhos meigos e usando óculos. Achei estranho, por que Deus usaria óculos? Ele pareceu ler o meu pensamento:
– Charme…
Não quis discutir, nem mesmo levantar suspeitas, coisas implicantes, como o fato de que os óculos estavam embaçados. Ele me encarou como um mendigo agradece uma moeda.
Devo confessar que ele pisca demais e nunca gostei de gente que pisca demais. O danado lê pensamentos:
– É um tique nervoso apenas, não ligue.
– Entendi…
– Bom, você fez uma boa ação e merece uma recompensa.
Estou pensando dar uma ressetada na raça humana e é bom você escolher um lugar porque vou dar uma regaçada geral e…
– Ah, esse vírus ai, foi coisa sua?
– O corona? Cara, você acredita na Globo? O vírus corona é coisa dos chineses. Comigo o negócio é mais embaixo, já mando um meteoro, um dilúvio, uma chuva de gafanhotos… Dessa vez estava pensando dar uma balançada no mar, criar um tsunami, virar tudo do avesso, inclusive aqui onde você mora, o Mato Grosso.
– Do sul.
– Oi?
– Não, nada. Bobagem…
– Mas já que você me salvou, posso te enviar para um lugar seguro.
Meu olhos brilharam.
– Posso levar alguém?
– Claro, claro, viver sozinho ninguém merece… Escolha ai cinco pessoas.
– É tipo uma ilha?
– Ilha? É, pode ser.
– Vai ter chope?
– Daremos um jeito.
– Bom, então eu quero levar a Jenifer Lopez, a Fernanda Paes Lemes, a Flávia Alessandra, a Jéssica Alba e a Sandy.
– Sandy?
– É…eu tenho um assunto mal resolvido com ela desde os anos noventa, sabe.
– Sei…eu sei, eu vejo tudo – e ergueu as lentes dos óculos fazendo um rosto sacana. E depois os olhos danaram a piscar. Acho que é nesse momento que ele lê os pensamentos e descobre segredos, aquelas coisas que a gente quer esconder para sempre.
Ele piscou cinco vezes seguidas.

Fiquei com um medo danado que ele se lembrasse de mim criança, quando eu matava as galinhas da vizinhança para fazer um penacho e imitar o índio do Village People. Eu não sabia que ele era gay, pensei e ele escutou, fez cara de enfezo, sem abrir a boca me chamou de homofóbico.

 – Maluquice essa sua ideia.

– Maluquice?

– Você quer mesmo levar cinco mulheres para uma ilha deserta? Tem ideia do inferno que elas vão transformar o lugar logo nos primeiros dias?

– Você acha?

– Cara, eu não acho, tenho certeza. Ah até hoje, quando me lembro do pobre Adão…E olha que ele estava só com uma.

– Eva né?

– Não, Eva veio depois. Adão estava com Lilith… cara, que inferno! Pobre Adão…

Fiz cara de compreensão, mesmo não sabendo nada sobre a tal Lilith. Sempre tive curiosidade de saber se Adão e Eva tinham umbigo. Cheguei a abrir a boca para perguntar, mas ele falou primeiro.

– Tédio é uma das minhas piores invenções. Sim, sim, eu também sinto tédio. A sorte que sou Deus e daí posso criar umas fugas. Hoje por exemplo, pensei, estou com vontade de ser um rato ladrão de restos de pizzas…

– Bom, o senhor…

– Não precisa me chamar de senhor, pode ser você…

– Tá…então o senhor, digo, você acha que eu devia levar homens também?

– Sim, pelo menos dois, para dar uma equilibrada sabe?

– Bom, tem aquele meu amigo escritor.

– Não, não…aquele não.

– Mas…

– Não gosto dele, muito metido a querer saber demais, sempre duvidando, perguntando coisas, qualquer motivozinho já escreve um texto me questionando….ele não.

– Ele não?

– Escolha outros dois.

– Eu gosto do Bruno e Marrone.

– Bruno sim, Marrone não.

– Ah?

– Bruno bebe, fica bêbado, é legal. Marrone é mudo e chato.

– Tá…Tô aqui pensando outro…

– Eu não tenho o dia todo…

Nesse momento me ocorreu uma ideia e olhei para o canto da casa, a velha bateria repleta de pó, as baquetas segurando a trava da janela. Sonho antigo que deu em nada, eu e meus amigos formamos uma banda, a “Junta do cabeçote” nome de duplo sentido, porque tal e qual o motor de um carro, as mulheres não nos entediam, também porque achamos o máximo tirar onda com a foto que seria da capa,  homens juntos e coçando os cabeçotes.

As mulheres odiaram, “ideia podre’ disseram, rogaram pragas e a banda não decolou de vez.

A pretensão era desbancar a banda RPM, fizemos até uma música “Morena quente”, em contraponto às Loiras geladas deles. Já no início descobrimos que não sabíamos tocar bem nenhum instrumento e muito menos cantar.

O sonho foi para o saco, com cabeçotes e tudo.

Deus piscou os olhos duas, três vezes…Hummm, recriar a Junta do cabeçote…Boa ideia!

E continuou pensando e piscando, apanhou o baseado ainda pela metade no canto da cama, deu duas tragadas longas e depois me encarou.

– Vou para casa pensar nessa sua ideia. O acordo do Paulo Ricardo com Lúcifer sempre me incomodou, preciso dar o troco. Volto quando tiver com tudo pronto.

Acordo do Paulo Ricardo com Lúcifer? Mas é claro, pensei, por isso o filho da puta nunca envelhece. 

Sorri meio sem jeito enquanto Deus dava mais uma tragada no baseado, chupando até o final sem queimar os dedos.

Resolvi aproveitar para uma última questão:

– Ah, uma coisa, o meu amigo escritor, sabe, era ele que escrevia as músicas…

– Ele escreve inspirado em mim e nem desconfia. É um chato…Tudo bem, pode levar ele e os outros três amigos.

– E as mulheres?

– Só a Fernanda Paes Leme e a Lidia Brondi.

– Eu nem pedi a Lidia Brondi.

– Mas pensou. E eu gosto mais dela, sempre recatada, certinha, afastada há quanto tempo? Nem eu sei. Está na hora dela dar umas sacudidas.

– E a ilha, posso saber onde é?

– Ilha? Ah, não vou mais acabar com o mundo.

– Não?

– Eu estava entediado, mas essa ideia de recriar a Junta do cabeçote foi demais, já estou até vendo as manchetes.

– Mas…Deus, é que nós não sabemos direito…

Ele piscou no mínimo dez vezes, vi os brilhos escaparem do seu olhar.

– Seremos um quinteto. Eu serei o guitarrista e vocal principal.Foi assim com aqueles rapazes de Liverpool …

Meu olhos não parava na cara. Liverpool, Beatles, o quinto Beatle era Deus? Ou será que ele era um deles?

– Me chamavam de Johnn…Daí Lúcifer mandou um dos seus capangas acabar com a brincadeira…

Fiquei pasmo, sem palavras.

– Mas e as meninas, elas serão parte da banda?

– Sim, claro, no começo backing vocal e bailarinas, depois eu penso em algo mais.

E nem falei mais nada, ele fez um gesto com os dedos, tipo despedida, se transformou numa mosca e voou até o vão da janela.  Bateu no vidro, escapou para o canto fechado, zumbiu desesperado, bateu as asas freneticamente até finalmente encontrar a saída e desapareceu no céu aberto.

– Danado, por isso ele usa óculos…

Achei o vidro do rivotril, bebi dezoito gotas e cai num sono absurdamente pesado.

Quem sabe amanhã Deus volta, quem sabe…

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