O admirável campo dos girassóis

A luz dos meus olhos falhos,  assoberbados pela tristeza, escala um resto da estrada desviada; pegadas marcantes, rastros nítidos, a cabeça baixa, contando o que sobrou.
A tempestade se formou bem antes, mas pensamos que sequer choveria.
Sobra a brisa quente do vento e o buraco oco no qual a água da chuva balança, como um tremor.
Sinto o bafo quente da melancolia e quase choro.
O meu ideal seria escrever sobre flores, mas qual flor se pode desenhar nesse momento tão amargo?
Pensei na rosa, mas a rosa é meiga, não traduz o lamento em forma de chama sem pavio.
Em momentos assim, permito a estranheza de perfumes me conduzir a lugares distantes.
Perto da grande cidade, existe um enorme campo de girassóis. Muitas pessoas já foram lá e eu, incorrigível preguiçoso, fui adiando a viagem.
Fecho os olhos e imagino o lugar…
Logo, dou de frente com o admirável campo dos girassóis, o verde e o amarelo espalhados a cada palmo de terra. Uma senhora do semblante faceiro acena para mim e devolvo o sorriso da cor dos seus cabelos de algodão.
Para onde o sol obriga que os olhos dos girassóis se encaminhem?
Após alguns passos, um homem do campo caminha carregando pela rédea o velho cavalo, passa por mim num aceno de puxar a ponta do chapéu.
Será que ele sabe a novidade?
Pressinto num respirar a resposta, ainda tenho boca para sentir e olhos para comer: o pasto por onde cavalgam os girassóis é admirável, é um novo lugar.
Vou tirar uma foto e ir embora depressa – penso – mas não me agrada a ideia de juntar minha imagem a uma flor,sou bruto, nada fotogênico, o rosto grande demais para caber engalfinhado às pétalas dos girassóis.
Aqui dentro terra batida, lá fora a febril oração: Nietzsche errou, a arca de Noé se move acelerada, mostrando a inquietante verdade: Deus está mais vivo do que nunca.
O sol ordena, o girassol nem se espanta, prossegue cego, singrando a terra, embora os calos nas mãos resmunguem que é preciso dar muito mais do que receber.
A página atual não tem cheiro, mas quando esmurrada, se transforma em perfume francês.
Um grupo de jovens passa por mim – eles não sabem o que eu sei –, os braços erguidos para cima, seus olhos de escuridão não percebem que a iracunda engrenagem, aos poucos, será tomada pela ferrugem do novo.
Numa visão turva, eu vi a fome em meio a plantação e larguei no ar um suspiro de lamento, serão quatro as estações ouvindo este prolongado eco do trovão.
O calor insuportável de fim de tarde me sufoca, enquanto os vitoriosos se afastam, sem perceber que os raios do sol podem matar.
Na fineza dos detalhes, observo – escondido em algumas pétalas amarelas – besouros dos chifres pontiagudos e um estranho brilho de seda nos cascos escuros.
Nesse calor insuportável, é preciso desatar o nó que não tem ponta. Abraço a esperança: se um dia lá atrás, resistimos sem medo, novamente assim haverá de ser.
No momento de abrir os olhos e ir embora, ouço com nitidez o resistente som das flores diferentes, elas me prendem um pouco mais, seguram firmes as minhas mãos, o verde musgo desprendendo do caule, envergando o pé da planta.
Sinto um sufoco de nó de gravata, o calor faz escorrer pela minha testa o suor quente, mesmo que eu ande descamisado e sem nenhuma gravata.
Tentando se achar, o dia se fecha no horizonte e um desejo final me ocorre: se o ar não nos sufocar, nascerão nesse mesmo chão, outros girassóis e deles desprenderão raízes que escalarão os muros, até dar com as vistas numa longa campina, desprezando a quentura do sol.
Abro os olhos e enfrento o início da escuridão, somente as flores diferentes na retina, aos poucos escalando o muro, desviando dos espinhos, seguindo o voar rouco dos inquietantes pirilampos a iluminar o caminho.

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