O diabo debaixo da árvore num dia frio

Machado de Assis, o pilar da literatura nacional, disse: “ Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! “
Mas acontece que estamos no inverno e faz um frio dos diabos lá fora. Sempre achei essa frase descabida: um ser do inferno como o diabo, não deve gostar do frio.
O sopro louco dos ventos frios, se tem algo de bom, é aguçar a imaginação.
Otto Lara Resende, certa vez escreveu sobre o alívio de nunca ter sido apresentado ao diabo: “é que, assim como André Gide, depois de uma boa conversa, sofro a tentação de entender as razões do adversário”.  Desconfio que também sofro desse mal.
Em tempos de frio, os olhos embaçados pelo nevoeiro, todos os seres são gatos pardos. Está tudo tão certo e calmo, o casaco, um copo de chocolate, a quentura do meu quarto. Mas alguma coisa me chama até a janela e consigo ver: na esquina, duas árvores em meio à neblina, entre elas, caída ao chão, uma figura de traços humanos tremendo de frio. Eu devia voltar para debaixo das cobertas, ainda é muito cedo, o sábado mal começou, mas não existe sujeito mais curioso que escritor. Desço a escada, caminho firme e as palavras de André Gide se misturam a uma espécie de grito na minha cabeça: que escritor nunca quis conversar com o diabo?
Chego sem disfarçar, um sorriso falso na cara: Que nome devo chama-lo? Tem tantos. Ele me olha, parece ler pensamentos, mesmo quieto, ouço a sua voz: “mania boba dos humanos dar vários nomes à mesma coisa, um rio é água que corre, o mar é água que se levanta e todos os homens são filhos de Deus”.
Balancei a cabeça, optei pelo mais usual:
– Olá, senhor diabo!
Ele me olha com olhos brilhantes, os lábios cortados pelo frio e a boca de sede.
– Oi, como vai? Frio demais, não é mesmo?
– Ah sim, detesto. Saudades do sol.
– E eu, das labaredas.
– Mas existe inverno no inferno?
– O inferno é aqui.
– Entendi.
Silêncio. Não me chega assunto. Ele sorri. Anoto na mente os detalhes para escrever mais tarde:  o diabo não tem chifres, nem rabo, de perto não é vermelho, é branco, olhos azuis, um furo no queixo, bastante alto, embora encolhido por causa do frio. Ele pousa o cotovelo no tronco da árvore, num sorriso sem fim, como se soubesse que eu estava analisando a sua aparência:
– Vocês escritores, bah! Cada um me vê de um jeito diferente.
Tarde demais para recuos, prossigo atento aos detalhes:  O bigode fino, do tipo Dick Vigarista e a barba por fazer, a queda dos cabelos disfarçada num chapéu cinza das abas largas, enfiado até quase as grossas sobrancelhas. Tremia, fazendo balançar o casaco de pele de raposa. Um desassossego me passou pela cabeça, eu não creio no diabo, por que diabo então ficar dando conversa para ele? Tentei sair de perto, voltar para casa, mas existia uma expressão de inquietante curiosidade no olhar do diabo. Será que ele também está me analisando friamente?
Ele gira o dedo no ar, se faz sério:
– Viu o que eles estão fazendo? Depois, a culpa será minha.
Pensei responder, mas ele faz com as mãos gestos de armas, uma quase ordem para que eu me calasse. Obedeci, quieto e atento ao desabafo do diabo.
– O ruim para mim é que o tempo não passa, os ponteiros do relógio estão sempre marcando quinze para as nove e o som que escuto é o mesmo turbilhão de lamentos, a bomba a explodir dentro da minha cabeça não cessa…
– Será que é correto sentir pena do diabo? Falei sem pensar. Ele largou os ombros após o suspiro:
– Sim, eu criei a fome, a miséria, o ódio. Mas o homem aperfeiçoou todos os meus inventos.
Assenti com a cabeça.
– Tem um cigarro? – Me pediu, ameaçando tossir, a mão direita fechada se aproximando da boca. Cheiro de enxofre. –
– Parei de fumar, mas na divagação da escrita, tenho sempre por perto uma carteira de cigarros, daqueles que solta fumaça com menta ao apertar uma bolinha no filtro.
Os olhos do diabo se tornaram sedentos. Acendi o cigarro, dei duas tragadas e passei para ele.
– Não fique com pena de mim, não pense que sou um pobre diabo, eu sou o mal que caminha. Embora os humanos tenham feito de tudo para me acompanhar, eu prossigo sendo o maldito, o inimigo, o capeta.
Largou um suspiro, tragou o cigarro duas vezes seguidas. Reparei que seus olhos, de perto, possuem bordas amarelas. Baixou os olhos por instantes, mas logo se ergueu, numa voz de lamento:
– Eu escuto todas aquelas orações…
O dia nublado, os olhos do diabo também nublados e eu pensando no que se passaria pela cabeça da minha mãe, devota de Nossa Senhora Aparecida, se me visse ali, naquele dia frio, entre duas árvores, conversando e fumando um cigarro com o diabo.
Um pensamento me assomou: e se ele pedisse perdão? O diabo sorriu, armou no rosto o desdenho daqueles que ouvem os pensamentos:
– Perdão é para quem peca. Eu inventei o pecado!
Pensei dizer algum consolo, os fantasmas de André Gide e Otto Lara Resende me cercando num abraço. O diabo balançou a cabeça e me calei, sem me importar com a fumaça de frio que engoliu os dois fantasmas.
 –  O que eu não daria por um pão com manteiga, um pingado bem quente e um minuto de silêncio? Quando penso no homem que deseja ser imortal, chego a sorrir. Recentemente, um humano retardado disse que eu inventei os Beatles. Os Beatles? Pode algo tão estúpido e descabido? E Beethoven, fui eu também? Então, se assim for, sou Deus.
Uma ligeira comoção me assomou, ergui os braços e tentei tocá-lo nos ombros. Ele me olhou enfezado, jogou com a ponta do dedo indicador a bituca do cigarro longe e sua voz era outra, forte, determinada, quase um trovão:
– Não se apegue a mim. Aleister Crowley tentou e se deu mal.
Sorriu ligeiro, depois baforou nas mãos o frio em forma de um jato de fumaça.
– Ultimamente me sinto um tanto ultrapassado, como um velho aposentado, dando milhos aos pombos, sem perceber que os pombos aprenderam a voar para longe, tempos atrás. Não consigo pensar em outras maldades, sou como o compositor que já não consegue entender as cifras das canções.
– Mas essas desgraças que se vê por ai… – O diabo não me permitiu concluir.  –
– É tudo ideia dos homens, coisas que lhes ensinei enquanto tocava saxofone e aprenderam rapidinho, entenderam perfeitamente o meu sopro, muitas vezes desafinado e construíram uma orquestra tão perfeita que dispensa a batuta do maestro. Sou um pobre diabo, vivo de pequenas artimanhas, meu passatempo predileto atualmente é perturbar os poetas, chego perto e sugiro num sussurro: borboleta. E o poeta começa a pensar no casulo, na lagarta, na metamorfose e na cor das asas que dará à sua borboleta. Então dou um jeito de derrubar alguma coisa, faço o barulho de um inseto voando, desenho no ar uma conta a pagar, acendo o pavio da ira da vingança, o faço recordar do amargo pecado de outrem, daquele que não se consegue perdoar, lhe mostro o rosto distante de uma mulher, ou de um homem, lindos, perfeitos,  cuja conquista nunca ousou tentar e o poeta titubeia. E hora de apertar a buzina de um carro, algo assim, e o poeta coça a cabeça, se esquece da luz brilhante do início do poema e começa tudo de novo, a borboleta já não terá asas e o casulo será uma casa de portas trancadas a trinco do lado de fora. O poeta insiste, ele precisa escrever, a febre lhe escorre pela testa, então vou lá e assopro uma palavra sem graça, sem sentido: abajur. Então o poeta pensa numa mesa de lençol esticado, o beiral de uma cama, uma linda mulher, ou um lindo homem se aproximando…Novamente faço barulho, revivo o inseto voando num aterrador zumbido  e ele não pensa em mais nada, vai dormir aborrecido, certo de ter perdido algo que estava entre os dedos, os mesmos dedos que esmagaram a linda borboleta com uma certeira pancada de abajur.
Coço a cabeça, falo sem sentir:
– Hoje eu pensei algo assim… A lagarta saindo de um casulo, qual cor darei à borboleta, azul talvez, mas depois o celular tocou e esqueci tudo.
– O celular…Talvez seja a minha melhor invenção.
Meu rosto ameaçou um sorriso, ele se fez sério:
– Você é ingênuo, pensa que me vê, mas isso é coisa de escritor, vê o que ninguém mais enxerga, finge sentir dor, como disse aquele bardo português, mas na verdade, bem lá no fundo, não está vendo nada, sabe que não passo de um galho de árvore que o vento frio derrubou em meio a duas árvores frias.
E um sopro repentino e gelado envermelhou meu rosto. Esfreguei os olhos, girei os calcanhares e voltei para casa sem olhar para trás.
Um galho de árvore…
Quantos dias ainda teremos desses dias delirantes de frio?
Se eu acreditasse em alguma coisa, juraria que no último instante, pelos cantos dos olhos, vi um bodezinho campeiro correndo ladeira abaixo, assim que o vento gelado voltou a soprar.

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