O beija-flor do mundo paralelo

E a cidade amanheceu coberta de névoa.

O dia para mim não começa antes do café da manhã, mas faltou manteiga para passar no pão e lá fui eu ao supermercado, enfrentando o trânsito e a névoa.

Há mistérios intrínsecos em cada palmo daquele lugar.

Ao descer do carro, um beija flor resolveu me acompanhar.

O bicho foi e voltou, na velocidade da luz e fiquei envolto a perguntas: Será que só eu estou vendo o passarinho? Por que uma ave tão bela não sabe cantar? Beija flor não tem cor definida, é um prisma, uma mistura de água e luz, um arco-íris voador, mas esse meu beija-flor, claramente, é preto.

Bem próximo da porta de entrada, o beija-flor sumiu como o diabo fugindo da cruz.

Dois passos após a risca de entrada, tal qual Alice ao cair no buraco, vou de encontro a um hospício repleto de loucos livres.

Um velhinho contando notas olha para mim num angelical riso de Quintana.

 Atrasei alguns passos diante do olhar seco do segurança, um homem de aspecto rude, parecido a um personagem de romance não identificado no momento.

Uma senhora dos cabelos curtos passa por mim, trás no colo uma sacola amarfanhada e os olhos cobertos numa aura de tristeza. Florbela agarrada a uma sacola de versos – imaginei.

Ouvi murmúrios da quase certeza de que estava diante do mundo paralelo.

A imensa fila do caixa fez aflorar os meus sentidos.

Um casal se posicionou ao meu lado.

Identifiquei-os em poucos segundos: Bukowski e Hilda Hilst.

Falavam mal da neblina e anotavam os defeitos dos vizinhos.

Imaginei um quadro diferente, bucólico, uma mesa de bar, Bukowski num canto, Hilda num outro, a fumaça do cigarro como se fosse o néctar das flores e o beija flor voando entre os dois. Logo entrariam em conflito, no exato instante no qual se dariam com a minha presença; e enquanto o velho Burka proferisse algum palavrão, Hilda lançaria sobre mim um olhar sepulcral, daqueles de tormentos, diria sem muito pensar: “por que você não manda embora esse velho beberrão?”

A imagem sumiu, restou o casal e os olhos arregalados para mim. Balancei a cabeça, ficaram sem graça no mundo paralelo, um Bukowski abstêmio e uma Hilda sem cigarros.

Devo ter falado alguma coisa.

Riram um riso sem graça, trocaram olhares, como se estivessem enxergando o diabo. Timóteo alguma coisa, disse a mulher. O homem concordou, sorriram novamente e depois me ignoraram para sempre.

Na outra fila, uma conversa de pai com filho, embora a figura, um careca de barba ao lado do rapaz loiro dos olhos verdes, evocava Verlaine e Rimbaud.

A fila andou um pouco e ainda restava em minha boca o solitário desejo por um gole de café.

Enfim a minha vez.

A moça do caixa se abriu num sorriso estranho, de segredos.

Um dia ela sonhou que seria psicóloga – imaginei.

Sempre acho que toda moça do caixa queria ser psicóloga quando criança.

“O senhor aceita participar do troco solidário?”

Sim, ok, respondo, e a custo contenho a vontade de lhe dizer que ainda há tempo para ser psicóloga.

E o velhinho ressurge, galopando o mesmo sorriso angelical, olha para mim e para a moça do caixa, nada diz, mas sei que pensa o complemento: “Cuidado, quando se vê passaram cinqüenta anos!”.

Caminho para a saída, dou de frente com o segurança, ele tem a cara do Heathcliff, descubro afinal e sinto até a poeira espalhada na capa do Morro dos ventos uivantes, guardado com carinho na minha estante. Nunca soube definir se Heathcliff é herói ou vilão.

Ao sair, o beija-flor estava lá fora, esperando por mim, rodeando meus ombros, sumindo às vezes, aparecendo mais à frente, e eu, feito um louco em devaneio, conversei com ele antes de bater a porta do carro: não sou flor que se cheire, vejo escritores mortos!

E o bicho sumiu de vez ao roncar do motor do carro, se perdendo entre a névoa.

Não olhei para trás. O mundo paralelo às vezes desaparece…

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