A SANTA, O RELÓGIO E OUTRAS CENAS

André Luiz

O dia vai terminando, quente em pleno inverno. Campo Grande é assim, ou faz muito frio ou calor, sem se importar com a estação vigente. E lá vou eu, de tênis, camiseta e munido de uma enorme força de vontade que desconhecia existir em mim.

Preciso queimar calorias, simplesmente detesto academias de musculação e nunca na vida ergui pesos. Andar é muito mais prazeroso, guarda surpresas, apresenta rostos. De repente, imagino que a figura à minha frente é um antigo amigo, o mesmo jeito de andar, o olhar murcho para o chão, quase chamei pelo nome, nome que esqueci, ainda bem, porque não era o antigo amigo, embora muito parecido fisicamente, talvez um filho, ou parente.

Um pássaro de voo torto risca o céu enquanto contemplo seu desajeitado jeito de voar. Tenho a mania de olhar pra cima, busco nuvens com formas de gente, animal ou árvore. E lá estava o pássaro desajeitado, que some rapidamente no horizonte. Era um animal solitário, por conta disso, tive pena dele.

Passo perto da antiga rodoviária e a tristeza me invade ao constatar o completo abandono daquele lugar que já foi tão bonito. Mais à frente, na calçada esquerda da rua, existe uma capela repleta de oferendas. O túmulo guarda os restos mortais de uma menina: Santa Carminha, me diz um homem velho de chapéu de palha e paletó. Um calor danado e ele usando paletó. Conta que a menina morreu estuprada pelo padrinho, isso há muitos anos atrás, e o povo a fez milagreira, tornando-a santa à revelia da igreja. Pobre menina, pensei com meus botões. Quando quis saber mais detalhes, assim como surgiu, o homem desapareceu num piscar de olhos. Será que vi um fantasma?

Dei a volta no quarteirão e retornei rumo ao horto florestal, até chegar ao cruzamento do Prosa e o Segredo, o encontro dos dois córregos que deram origem à minha cidade. Conto um segredo ao primeiro e ouço do outro uma prosa, algo ligeiro, que termina assim: “a cidade cresceu e nem percebemos”. Um sujeito cheirando álcool pede uma moeda e lhe dou uma nota de dois reais. Preciso me lembrar de levar umas moedas quando for sair.Prossigo caminhando, faço um contorno à esquerda, vou para o centro da cidade, pela Avenida Calógeras, até chegar ao monumento erguido na confluência com a Afonso Pena.

O relógio é um insulto. Primeiro mudaram-no de lugar, depois arrancaram os ponteiros e, por fim, o próprio relógio, restando uma coluna comprida de concreto que para nada serve. De novo me pego olhando para cima, agora tento enxergar o topo de um prédio qualquer, que é pra ver se alguém lá em cima olha para baixo. Já caminhei bastante e resolvo voltar para casa, mas não volto sozinho, levo comigo um poema do Mário Quintana na cabeça: “Antes, todos os caminhos iam, agora todos os caminhos vêm” e não tenho sede, nem sinto dor na panturrilha. Mais tarde, fiquei olhando o par de tênis jogado num canto do quarto. Amanhã tudo retorna e já penso em outros caminhos.

CENAS DO BAR – NEIDE E A CANÇÃO

Neide e a canção

De longe percebi que o Chico estava contente. Sentado de lado, na cadeira de centro do balcão do bar, ele me aguardava ansioso. Peço um conhaque enquanto o Chico vira de vez o resto da cerveja do copo. E ri, satisfeito.

Chico e eu temos a mesma idade. Crescemos juntos, morávamos perto, bairros vizinhos, ele no Caiçara e eu no Taveirópolis, estudamos na mesma classe do Colégio Osvaldo Cruz, temos boa memória e gostamos de coisas parecidas. Mas somos completamente diferentes no modo de pensar e agir. Chico é mais direto, sabe o que quer, luta por isso. E eu… Prefiro sonhar. A amizade de longa data nos faz perceber o que o outro está pensando, bastando para isso um simples olhar.
– Lembra da Neide?
Os olhos do Chico sempre brilham quando fala da Neide. Ele era apaixonado por ela. Eu também, mas nunca confessei, só sonhei.
– Claro que sim… Não vai me dizer que ela morreu!
Ele fez cara de espanto antes de responder.
– Você só pensa em morte!
– Ah, vai saber. Pessoas na nossa idade estão indo aos montes; diabetes, infarto, câncer…
– Vira essa boca pra lá! A Neide está muito viva e trabalha numa loja no centro. Vende perfumes e continua muito linda… Bem, engordou um pouquinho…

Senti um cheiro de lavanda escapando do rosto do meu amigo, e fiquei na certeza que ele agora era cliente da Neide.
– Ta, mas tome cuidado, a Teresa é ciumenta.

A simples menção do nome da esposa fez meu amigo recuar na divagação. Mas durou pouco:
– Esquece a Teresa. Deixa eu falar da Neide. Ela se lembrou da nossa música, você acredita nisso?
Eu também tinha uma música que era minha e da Neide, embora ela nunca soubesse.
– Vocês tinham uma música? Perguntei meio sem jeito.
– Claro, é aquela do Júlio César.
– Júlio César?
– É… Aquela que ele canta “tu, muito além longe daqui, tu, que existe só pra mim”. Chico é um desastre cantando. Meu ouvido agradeceu quando ele cessou a cantoria e passou a dar detalhes:

– Lembra que eu dançava de rosto colado no rosto da Neide e você ficava contente de ver?
Eu não ficava contente, ficava com ciúmes. Lembrei-me da música, uma coisa prenhe de melado, do tipo que gruda na mente da gente para nunca mais escapar. Baita mela cuecas. Na época fez o maior sucesso. Nos bailes eu ficava o tempo todo tentando tirar a Neide pra dançar, mas o Chico tinha mais coragem. Uma amiga percebeu: Tânia era muito legal, gentil, parceira, mas feia de doer, por isso, preferia ficar incentivando os amigos ao invés dela mesma se oferecer para dançar.
– Vai lá, o Chico já dançou com ela cinco vezes, é a sua vez.
Eu ia até o meio do caminho e voltava: timidez e medo falando mais alto. Assim o tempo passou e nunca mais ouvimos falar da Neide.
– Ela está solteira, nunca casou, acredita?
Contou-me o Chico com um estranho brilho no olhar. Eu sabia que era pura empolgação de momento. Jamais abandonaria a Teresa. Mas agora era ele que sonhava acordado, enquanto eu, preferia recordar da amiga Tânia, que se casou com um militar e foi morar em Curitiba. Teve três filhos, sou padrinho do caçula.
– Chico, ei Chico, acorda! Lembra da Tânia?
– A nariguda? Sei… Mas não me fale dela, só escute…
E ligou o som do celular e a música do passado invadiu o bar, nos fazendo recordar.

– Traz mais um conhaque!  Pedi ao garçom.

E nem reclamei que o Chico acompanhou a melodia na sua voz rouca e desafinada.

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