O diabo embaixo da árvore num dia frio.

Machado de Assis, o pilar da literatura nacional, disse: “ Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! “
Mas acontece que estamos no inverno e faz um frio dos diabos lá fora. Sempre achei essa frase descabida: um ser do inferno como o diabo, não deve gostar do frio.
O sopro louco dos ventos frios, se tem algo de bom, é aguçar a imaginação.
Otto Lara Resende, certa vez escreveu sobre o alívio de nunca ter sido apresentado ao diabo: “é que, assim como André Gide, depois de uma boa conversa, sofro a tentação de entender as razões do adversário”.  Desconfio que também sofro desse mal.
Em tempos de frio, os olhos embaçados pelo nevoeiro, todos os seres são gatos pardos. Está tudo tão certo e calmo, o casaco, um copo de chocolate, a quentura do meu quarto. Mas alguma coisa me chama até a janela e consigo ver: na esquina, duas árvores em meio à neblina, entre elas, caída ao chão, uma figura de traços humanos tremendo de frio. Eu devia voltar para debaixo das cobertas, ainda é muito cedo, o sábado mal começou, mas não existe sujeito mais curioso que escritor. Desço a escada, caminho firme e as palavras de André Gide se misturam a uma espécie de grito na minha cabeça: que escritor nunca quis conversar com o diabo?
Chego sem disfarçar, um sorriso falso na cara: Que nome devo chama-lo? Tem tantos. Ele me olha, parece ler pensamentos, mesmo quieto, ouço a sua voz: “mania boba dos humanos dar vários nomes à mesma coisa, um rio é água que corre, o mar é água que se levanta e todos os homens são filhos de Deus”.
Balancei a cabeça, optei pelo mais usual:
– Olá, senhor diabo!
Ele me olha com olhos brilhantes, os lábios cortados pelo frio e a boca de sede.
– Oi, como vai? Frio demais, não é mesmo?
– Ah sim, detesto. Saudades do sol.
– E eu, das labaredas.
– Mas existe inverno no inferno?
– O inferno é aqui.
– Entendi.
Silêncio. Não me chega assunto. Ele sorri. Anoto na mente os detalhes para escrever mais tarde:  o diabo não tem chifres, nem rabo, de perto não é vermelho, é branco, olhos azuis, um furo no queixo, bastante alto, embora encolhido por causa do frio. Ele pousa o cotovelo no tronco da árvore, num sorriso sem fim, como se soubesse que eu estava analisando a sua aparência:
– Vocês escritores, bah! Cada um me vê de um jeito diferente.
Tarde demais para recuos, prossigo atento aos detalhes:  O bigode fino, do tipo Dick Vigarista e a barba por fazer, a queda dos cabelos disfarçada num chapéu cinza das abas largas, enfiado até quase as grossas sobrancelhas. Tremia, fazendo balançar o casaco de pele de raposa. Um desassossego me passou pela cabeça, eu não creio no diabo, por que diabo então ficar dando conversa para ele? Tentei sair de perto, voltar para casa, mas existia uma expressão de inquietante curiosidade no olhar do diabo. Será que ele também está me analisando friamente?
Ele gira o dedo no ar, se faz sério:
– Viu o que eles estão fazendo? Depois, a culpa será minha.
Pensei responder, mas ele faz com as mãos gestos de armas, uma quase ordem para que eu me calasse. Obedeci, quieto e atento ao desabafo do diabo.
– O ruim para mim é que o tempo não passa, os ponteiros do relógio estão sempre marcando quinze para as nove e o som que escuto é o mesmo turbilhão de lamentos, a bomba a explodir dentro da minha cabeça não cessa…
– Será que é correto sentir pena do diabo? Falei sem pensar. Ele largou os ombros após o suspiro:
– Sim, eu criei a fome, a miséria, o ódio. Mas o homem aperfeiçoou todos os meus inventos.
Assenti com a cabeça.
– Tem um cigarro? – Me pediu, ameaçando tossir, a mão direita fechada se aproximando da boca. Cheiro de enxofre. –
– Parei de fumar, mas na divagação da escrita, tenho sempre por perto uma carteira de cigarros, daqueles que solta fumaça com menta ao apertar uma bolinha no filtro.
Os olhos do diabo se tornaram sedentos. Acendi o cigarro, dei duas tragadas e passei para ele.
– Não fique com pena de mim, não pense que sou um pobre diabo, eu sou o mal que caminha. Embora os humanos tenham feito de tudo para me acompanhar, eu prossigo sendo o maldito, o inimigo, o capeta.
Largou um suspiro, tragou o cigarro duas vezes seguidas. Reparei que seus olhos, de perto, possuem bordas amarelas. Baixou os olhos por instantes, mas logo se ergueu, numa voz de lamento:
– Eu escuto todas aquelas orações…
O dia nublado, os olhos do diabo também nublados e eu pensando no que se passaria pela cabeça da minha mãe, devota de Nossa Senhora Aparecida, se me visse ali, naquele dia frio, entre duas árvores, conversando e fumando um cigarro com o diabo.
Um pensamento me assomou: e se ele pedisse perdão? O diabo sorriu, armou no rosto o desdenho daqueles que ouvem os pensamentos:
– Perdão é para quem peca. Eu inventei o pecado!
Pensei dizer algum consolo, os fantasmas de André Gide e Otto Lara Resende me cercando num abraço. O diabo balançou a cabeça e me calei, sem me importar com a fumaça de frio que engoliu os dois fantasmas.
 –  O que eu não daria por um pão com manteiga, um pingado bem quente e um minuto de silêncio? Quando penso no homem que deseja ser imortal, chego a sorrir. Recentemente, um humano retardado disse que eu inventei os Beatles. Os Beatles? Pode algo tão estúpido e descabido? E Beethoven, fui eu também? Então, se assim for, sou Deus.
Uma ligeira comoção me assomou, ergui os braços e tentei tocá-lo nos ombros. Ele me olhou enfezado, jogou com a ponta do dedo indicador a bituca do cigarro longe e sua voz era outra, forte, determinada, quase um trovão:
– Não se apegue a mim. Aleister Crowley tentou e se deu mal.
Sorriu ligeiro, depois baforou nas mãos o frio em forma de um jato de fumaça.
– Ultimamente me sinto um tanto ultrapassado, como um velho aposentado, dando milhos aos pombos, sem perceber que os pombos aprenderam a voar para longe, tempos atrás. Não consigo pensar em outras maldades, sou como o compositor que já não consegue entender as cifras das canções.
– Mas essas desgraças que se vê por ai… – O diabo não me permitiu concluir.  –
– É tudo ideia dos homens, coisas que lhes ensinei enquanto tocava saxofone e aprenderam rapidinho, entenderam perfeitamente o meu sopro, muitas vezes desafinado e construíram uma orquestra tão perfeita que dispensa a batuta do maestro. Sou um pobre diabo, vivo de pequenas artimanhas, meu passatempo predileto atualmente é perturbar os poetas, chego perto e sugiro num sussurro: borboleta. E o poeta começa a pensar no casulo, na lagarta, na metamorfose e na cor das asas que dará à sua borboleta. Então dou um jeito de derrubar alguma coisa, faço o barulho de um inseto voando, desenho no ar uma conta a pagar, acendo o pavio da ira da vingança, o faço recordar do amargo pecado de outrem, daquele que não se consegue perdoar, lhe mostro o rosto distante de uma mulher, ou de um homem, lindos, perfeitos,  cuja conquista nunca ousou tentar e o poeta titubeia. E hora de apertar a buzina de um carro, algo assim, e o poeta coça a cabeça, se esquece da luz brilhante do início do poema e começa tudo de novo, a borboleta já não terá asas e o casulo será uma casa de portas trancadas a trinco do lado de fora. O poeta insiste, ele precisa escrever, a febre lhe escorre pela testa, então vou lá e assopro uma palavra sem graça, sem sentido: abajur. Então o poeta pensa numa mesa de lençol esticado, o beiral de uma cama, uma linda mulher, ou um lindo homem se aproximando…Novamente faço barulho, revivo o inseto voando num aterrador zumbido  e ele não pensa em mais nada, vai dormir aborrecido, certo de ter perdido algo que estava entre os dedos, os mesmos dedos que esmagaram a linda borboleta com uma certeira pancada de abajur.
Coço a cabeça, falo sem sentir:
– Hoje eu pensei algo assim… A lagarta saindo de um casulo, qual cor darei à borboleta, azul talvez, mas depois o celular tocou e esqueci tudo.
– O celular…Talvez seja a minha melhor invenção.
Meu rosto ameaçou um sorriso, ele se fez sério:
– Você é ingênuo, pensa que me vê, mas isso é coisa de escritor, vê o que ninguém mais enxerga, finge sentir dor, como disse aquele bardo português, mas na verdade, bem lá no fundo, não está vendo nada, sabe que não passo de um galho de árvore que o vento frio derrubou em meio a duas árvores frias.
E um sopro repentino e gelado envermelhou meu rosto. Esfreguei os olhos, girei os calcanhares e voltei para casa sem olhar para trás.
Um galho de árvore…
Quantos dias ainda teremos desses dias delirantes de frio?
Se eu acreditasse em alguma coisa, juraria que no último instante, pelos cantos dos olhos, vi um bodezinho campeiro correndo ladeira abaixo, assim que o vento gelado voltou a soprar.

A sociedade secreta dos poetas amantes de filmes em preto e branco.

Pertenço a uma sociedade secreta que adora filmes em preto e branco.

Não vou os contar detalhes, como disse, é uma sociedade secreta. Mas posso dizer que quando a tarde ameaça ir embora, estico os ossos no sofá logo depois de esquentar uma caneca de leite com chocolate para ver na tevê filmes em preto e branco numa dessas plataformas de streaming.
As opções são tantas que fico um bom tempo zapeando com o controle remoto em busca de um daqueles filmes de neve caindo na aba do chapéu do mocinho, que pisca o olho, desviando a fumaça do cigarro que sobe, inibindo de vez a desavisada mocinha, tão linda e ingênua, o corpo magro e branco recolhido em meio ao peito num aperto de ombros.

Filme antigo é cativante até no título: O homem que matou o facínora, Como era verde o meu vale, Psicose, Cidadão Kane, A felicidade não se compra…

Tarde caindo, filme antigo, sono gostoso, leve cochilo, pensamentos desalinhados: minha barba podia cair abaixo do queixo, algo parecido com a barba de Hemingway, soberbamente grisalha. Num instante meus dedos tocam o controle remoto e busco o filme baseado no livro de Hemingway: Por quem os sinos dobram. Encontro, mas não gosto porque é colorido, deixo rodar um pouco, só para ver Ingrid Bergman. Pobre Gary Cooper, fica feio diante de tanta beleza.
Os ossos do corpo doem, pedem uma esticada, então deixo meus pés roçarem um vaso de flores num canto da sala, as cores aos poucos abandonando meus olhos, lançados ao preto e branco na tevê.

O copo de leite com chocolate esfria e um gato repousa mansamente entre meus dedos. Num click desavisado, apanho cenas de “E o vento levou”, o primeiro filme colorido, a minha mente se prende à beleza de Scarlett O’hara, mais precisamente aos olhos de Scarlett, verdes ou azuis, nunca soube ao certo.
Mais um click, outro filme em preto e branco surge diante dos meus olhos: O falcão maltês, um clássico noir com Humphrey Bogart.
E não tem jeito, Bogart me remete automaticamente a Casablanca e o fascínio toma conta de mim, como um lápis desenhando na parede o rosto perfeito de Ingrid Bergman.
Ah, aquela cena da despedida, a canção, “As Time Goes By”…
Casablanca é meu filme antigo preferido, mas não consigo deixar de imaginar para ele outros finais, algo bem mais feliz,  na última cena a câmera se aproximando aos poucos, registrando o beijo final, Ingrid entregue, os lábios oferecidos num olhar aberto, um dos braços envolvendo o pescoço de Bogart, o outro caído rumo ao chão, como quem desfalece, enquanto o avião avança solitário na noite fria.
Mas a cena final é aquela tristeza e o mocinho é de pedra. Bogart, puro Bogart.
Um pensamento bobo me assoma, será que ele vai apressar o beijo na ânsia de acender outro cigarro?

Fim do filme.

O preto e branco nos meus olhos vai dando lugar às cores do mundo real.

Ao desligar a tevê, um olhar através da janela, o silêncio da noite invadindo o final da tarde, abafado pelo latido longe de um cachorro, fazendo caminhar na minha mente uma frase de Fernando Pessoa: “ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta”.
Qual seria a reação de Fernando Pessoa se pudesse assistir Casablanca? Estupefação e encantamento, para logo depois imaginar outro final. E Hemingway? Certamente assistiu e detestou o final. Ernest teria embarcado o casal e explodido o avião. Mais tarde, depois de um breve cochilo, escreverei algo sobre os murmúrios dos poetas mortos, a ansiedade insana dos que ainda respiram (alguns membros daquela sociedade que falei no início dessa crônica) e a nossa vã tentativa de definir a cor da água através da escrita.
E o final nunca será o mesmo.
Por enquanto só consigo pensar num lápis pontiagudo riscando as páginas abertas na minha mente, bebendo o que resta de leite com chocolate, frio, feito os olhos de Bogart diante do avião sumindo entre as nuvens escuras.
Um ruído e começo a enxergar tons leves azulados nas bordas dos vãos da porta, deitando meus olhos no canto da sala, na qual repousa o vaso de flores das pétalas murchas, seco e sem cor, mas quase tão maravilhoso quanto um filme em preto e branco.

A flor das cobras

Eu queria escrever uma crônica (quem sabe um conto) sobre pessoas solitárias sobrevivendo às multidões.
Ou sobre uma moça com nome de flor, ingênua, bela, do sorriso meigo, mas que desconhece a própria dor, ignora o poder dos seus espinhos.
A flor das cobras, vive nelas.
Escreveria com prazer algo bom sobre a teimosia, ou um texto terrível lamentando as minhas desistências (foram muitas).
Num repente atrevido, pousaria os olhos sobre a cascata de lágrimas derramadas enquanto ouvia os Beatles na adolescência (tempo ruim) e daquela extinta e profunda tristeza, arrancaria a rima da canção que nunca fiz.
Eu queria escrever algo impactante, o som retumbante da carruagem de fogo ganhando asas, subindo ao céu, envolta no barulho das rodas girando sem apoio, até alcançar as nuvens e nelas formando raios mortais.  Queria escrever sobre a surpresa nos meus olhos cá abaixo imaginando, após a lua, até onde prosseguirá a carruagem? Se perderá na escuridão do universo? No céu só existe escuridão.
A carruagem atiça os meus dedos no teclado,  me convida a um passeio, e eu respondo: quem sabe num outro momento, agora tenho na mente a frase apanhada na internet – a flor das cobras –  que me despertou, me fez escutar novamente o badalar dos sinos no início da canção do John Lennon. Por quem os sinos dobram? Por mim, Ernest, por mim. Aquela música do Lennon era o abraço do amigo invisível, causava uma instantânea tristeza, mas logo se transformava em euforia, porque Lennon gritava e eu, mesmo quieto, por dentro, gritava também: mama don’t go, daddy come home!
A flor das cobras era a única a ouvir o meu lamento. Depois cruzava o quintal em zigue-zague, as pétalas se arrastando, até se perder nos cantos da mata.
A máscara sufoca o meu respirar, embaça os óculos, o pátio do condomínio é um desfile de mascarados. Vistos de longe, são todos crianças. Somos todos crianças: quando finalmente crescemos? Já passei dos cinquenta e não sei ainda, se sei, desconheço as letras e os caminhos. Um balançar de cabeça, a busca da realidade que sempre me escapa. Acontece muitas vezes, me confundo entre o mundo real e o imaginário, consigo correr, os cabelos de antes retornam, desarrumados pelo vento forte, cenas repetidas na retina embaçada, como da vez que subi até o topo de uma árvore, me arrastando entre os troncos, ignorando os perigos do balançar dos galhos, até encontrar um ninho de passarinhos vazio, mas ao descer, o rosto triunfante, disse a todos que os ovos eram azuis.
– Ovos não dão em árvore, você subiu para apanhar uma manga!
A voz do menino mais velho, um infante autoritário do qual eu sentia medo. Como explicar a sujeito tão chulo a beleza da existência dos ninhos dos passarinhos?
– Volte lá e pegue a manga! – Apontou os dedos na minha testa e saí correndo, sem lhe dar chances para me alcançar. Ah, eu corria como um lobo cinzento naqueles tempos, e era amigo das pedras, sabia me esconder entre elas e de lá ficar espreitando tudo em volta. O menino mais velho cuspiu palavrões, ao lado dele os outros meninos o encaravam, surpresos, exigindo atitudes do líder. Então ele mesmo subiu na árvore, apanhou diversas mangas, mas ao descer escorregou em algo e quebrou a perna. Nunca mais o vi, mas ainda escuto o barulho do tombo e o seu grito desesperado.
A flor das cobras reside entre os galhos das árvores.
Eu não queria mais escrever sobre o passado, mas guardo na memória o ladrar dos cachorros, aqueles que comiam junto da gente os restos, as sobras, o miolo do pão molhado no leite, os ossos, a carne envenenada da flor das cobras.
O baile dos mascarados prossegue pelas ruas da cidade. Até quando? O vírus é a flor das cobras e se eu tivesse poder, aqueceria o sol até derreter as rodas da carruagem de fogo, e ela cairia em milhões de pedaços incandescentes, até aniquilar o veneno para sempre.
E se penso, já acontece na minha mente, dentro de mim, vão nascendo imagens concretas, ouço o barulho do fim do tormento se confundindo com as rodas da carruagem de fogo crepitando os vazios do universo, aqui embaixo as máscaras caindo dos rostos, a explosão de gente sorrindo, finalmente sem medo.
E no meio da gritaria, o meu eu no silêncio, morto o menino, nascido o homem maduro, observando pela réstia da porta o que sobrou, envolto pela dúvida soberba de sempre: ficar quando todos se vão, ou ir quando todos ficam.

O Tempo, o Vento e o dia que o temporal escondeu o final da novela.

Tenho uma relação antiga com o Vento, dele conheço até mesmo o rosto: é um jovem sorridente, da cor transparente, dos cabelos lisos jogados dos lados e ligeiro feito a vida.
Ah, o sorriso do Vento é uma imagem perene no meu fechar de olhos.
Conheço também seu inseparável companheiro, o Tempo: um velho banguela, feio e cruel.
Às vezes o Vento traz consigo a eterna namorada, uma moça linda chamada Brisa e dela desprende todo o encanto de antigas lembranças…
Na pequena casa de madeira, tínhamos a nossa televisão bem no centro da sala, majestosamente equilibrada por cima de uma mesinha. Às vezes dava choques ao apertar algum botão, e quando a imagem ficava ruim, tio José colocava bombril nas pontas da antena e tudo voltava a funcionar perfeitamente.
Nos rastros dos tanques sulcando a terra, os pingos grossos de chuva no começo da tarde daquele dia anunciavam o temporal que não tardou desabar.
Minha avó correu a tapar os espelhos da casa com lençol e a profetizar que seria ligeiro: “chuva de verão, passa logo” – garantiu, num riso de certeza – e danou a desvendar um segredo da natureza:
– Não tenha medo do barulho do trovão, enquanto você tapa os ouvidos e treme de medo, o perigo já passou, o que mata é a luz do raio, não o barulho do trovão.
Mas outubro ainda não era verão e o temporal durou mais de horas. Mesmo com o fim da chuva, o céu prosseguiu riscado de raios.
Exatamente quando os ponteiros do relógio se abriram como se fossem duas pernas, a luz acabou. Minha avó colocou as duas mãos em volta da cabeça:
– E agora, meu Deus?
Era dia do último capítulo da novela, quando finalmente seria revelado o assassino da megera e a mocinha finalmente resolveria se entregaria os lábios ao galã ou não. Todos sentimos o desespero, andando de um lado para o outro na escuridão, tensos, segurando pires de velas nas mãos. A luz só voltou de madrugada, quando todos dormíamos.
Nos primeiros minutos da manhã seguinte, debruçada na janela, minha avó percebeu ao longe a chegada da irmã Adelaide; os olhos brilhantes, a testa acesa, o rosto quase sem conseguir segurar os olhos. Vinha ligeira, como quem traz notícias boas e ruins.
Desesperou-se:
– Ela vai me contar o final da novela.
Tio José abriu um sorriso:
– E isso não é bom?
Vó Aurora balançou a cabeça:
– Não, eu não quero ouvir dela.
Antes de alguma pergunta, tratou de esclarecer:
– Ela não sabe contar estórias, vai logo para o final, dispensa detalhes e eu gosto mais dos detalhes do que qualquer outra coisa.
Coçou a cabeça branca, estalou os dedos, olhou para mim:
– Você precisa ir logo para o colégio, ouvir dos seus colegas e depois me contar.
– Mas por quê?
– Você sabe contar os detalhes.
E antes que a irmã batesse na porta, fingiu mal-estar, uma dor terrível na cabeça, fechou a porta do quarto e a mandou voltar no dia seguinte.
– Uh, uh, como sofro! – Gemia a avó, a voz saindo espigada, a cabeça enterrada no travesseiro.
Tia Adelaide suspirou, quase conformada.
– Mas eu queria tanto saber o fim da novela. Acabou a luz lá em casa na hora e….
Vó Aurora arregalou os olhos, levantou-se de supetão, jogou os cabelos nas costas, abriu a porta do quarto e abraçou a irmã.
– Almoce aqui – e apontou para mim com a testa – ele vai à escola e quando retornar nos contará como foi o final da novela.
– Mas a sua dor de cabeça?
– Ainda dói um pouquinho, mas logo passa de vez.
E foram coar o café.
Na escola ninguém sabia o final da novela, o corte da energia elétrica atingiu o bairro todo.
Ao voltar, abraçado pela angústia de não desapontar minha avó, encontrei todos ansiosos, inclusive o tio Gutemberg, que quase nunca nos visitava, mas imaginando que a eletricidade não tinha acabado pelas nossas bandas, também ansiava por saber o final da novela.
E tantos foram os brilhos de olhos na minha direção, me senti como se eu fosse a própria televisão.
Deve ter sido esse o momento que o teatro entrou em mim: todos sentados à minha frente, os olhos arregalados, ouvidos atentos a cada palavra, acompanhando atentamente os meus gestos: eu mentia, sem admitir nem mesmo para mim que mentia, inventava imagens, compunha falas como se estivesse escrevendo versos sem rimas.
– E então, e então? – perguntavam numa só voz – e a voz já não era minha, era a de um homem malvado, uma donzela indecisa, um herói montado a cavalo: e seguia para desvendar o assassino quando tia Adelaide se intrometeu no caminho:
– Aquela moça adoentada, conseguiu andar?
Logo ela, que não sabia contar os detalhes, queria saber as curvas da estória.
– Sim, sim, ela andou, acabou feliz.
– Eu sabia, eu sabia! Disse a minha avó, num sorriso triunfal.
E o assassino antes imaginado, falhou por instantes na minha mente. Tentei ganhar tempo:
– Sobrou bolo?
– Ora rapaz, depois você come, precisamos saber quem é o assassino!
Tio Gutemberg muitas vezes era irritante. Fiquei sem resposta imediata, resolvi ouvir antes de falar:
– O que vocês acham? Apostas, vamos, digam.
E a delícia ao perceber a ficção se tornando real aos olhos dos meus parentes:
– Com certeza foi o advogado. Disse tio José. Minha avó fez cara séria, uma descompostura balançando a cabeça negativamente:
– O doutor Cândido? Imagina! Ele é uma boa pessoa, jamais seria capaz…
– Quem foi então? – Tio Gutemberg formou na testa diversas rugas.
Ameacei responder, mas tia Adelaide foi mais rápida:
– Catarina, aquela sonsa, desconfio dela desde sempre.
Novas rugas na testa do tio Gutemberg, a mão peluda tremulando
num toque nervoso de dedos por cima da mesa:
– Não, uma mulher puxar o gatilho? Não creio – assegurou e depois me olhou, severo:
– Vamos menino, diga logo o nome do assassino!
E veio o estalo, como uma caneta de tinta fresca percorrendo um papel incrivelmente branco, a descrição do ato do meu assassino preferido, que só podia ser o filho rejeitado da morta. Não consegui falar, súbito surgiu na televisão o rosto pálido do repórter:
– Informamos que por causa do temporal da noite anterior, o qual ocasionou o corte da eletricidade por toda a cidade, repetiremos hoje, no mesmo horário, o final da novela….
– Poxa, quem diria? Foi na cidade toda, mesmo. – Suspirou aliviado o tio José.
– Não conte quem é o assassino! – Disse a minha avó, o olhar fulminante, o dedo magro perto da minha testa.
Tio Gutemberg me olhou com desprezo, tia Adelaide passou as mãos nos meus cabelos, “meu rico filho”, disse e beijou-me a testa.
Foram embora em seguida e a dia custou a passar. À noite, em volta da televisão, assistimos ao final da novela.
Um suspiro de alívio me tomou, acertei quase tudo, cheguei a comemorar quando a moça doente se levantou da cama e beijou o antigo namorado.
A cena final, inesquecível, Virgínia beijou o Afonso e fim.
Mas e o assassino?
Tia Adelaide estava certa desde o começo da novela, Catarina, a sonsa, era a assassina e eu nem desconfiei.
Ao longe raios, trovões…
O Tempo voa nas asas do amigo Vento, espalha pelo ar o cheiro de nova tempestade, mas a Brisa chega antes e abraça o meu rosto…
E nos primeiros pingos da chuva, converso com os fantasmas da minha avó e seus dois irmãos: ouçam a estória que lhes conto, todo escritor é um mentiroso, mas creiam, apesar do Tempo, vocês ainda existem no sopro do Vento.
No final confesso meu eterno medo da tempestade e eles desconfiam, respondem ao mesmo tempo: “deve ser noite de céu estrelado lá fora…”

O Vlad ruivo, o sorriso da tia morta e a noite dos hipocondríacos

Eu não sei exatamente se foi uma desculpa para sair do apartamento e ver como andam as coisas lá fora, ou se realmente estava sentindo umas pontadas no peito e vendo bolinhas coloridas flutuando no ar ao acordar.
Será grave? Morrer devia ser opcional, todavia, envelhecer é um saco. Saudades da juventude, de quando o único medo era pegar uma doença venérea.
E logo me vi na sala de espera do consultório do cardiologista. Uma poltrona sim, duas não, assim dispostas, na intenção de manter a distância entre as pessoas e evitar a contaminação pelo vírus corona. Máscaras, muitas máscaras. A mocinha na ponta é filha da senhora sentada duas poltronas depois. Os olhos idênticos entregam. Caso atípico de mãe mais bonita que a filha. Sinto uma vontade imensa de ir até elas e me apresentar: Olá, meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista. Elas nem me olham. Acho estranho. Tenho o costume perverso de imaginar que todas as mulheres do mundo estão interessadas em mim.
A secretária do médico é uma mulher da minha idade, ou quase isso, o olhar tristonho na cara ossuda me faz imaginar a sofrência de quem acorda todos os dias às cinco horas da manhã e passa quarenta minutos tentando encaracolar as pontas dos cabelos. Sorrio para ela que faz não perceber. Sofrência acarreta ignorância. Coço o queixo, a secretária me lembra uma tia, a respeitada dona Amélia, irmã do meu pai, morta no carnaval de 85, após anos trancada dentro de casa e que de repente escapou para a vida, farreou tanto, bebeu o que encontrou pela frente, fez sexo com o frentista no banheiro do posto de gasolina e depois com dois caminhoneiros estacionados na escuridão dos becos do jardim Paulista.
Um deles a fez engolir uma pílula branca e ela desabou de vez, caiu morta, fulminada, indiferente à luz do sol que surgia no horizonte.
A loucura daquela noite teve origem semanas antes, quando tia Amélia recebeu o diagnóstico de um cardiologista. Era um papel do tipo pena de morte. Sinto a dor no peito. Será doença hereditária?
Quando avisaram, meu pai colocou as duas mãos na cabeça e ficou repetindo:
– A Amélia, a Amélia?
Uma das poucas vezes que vi lágrimas no rosto do velho Coronel, as mãos trêmulas segurando o telefone enquanto olhava para minha mãe, que também colocou as mãos na cabeça, mesmo antes de saber a notícia:
– A Amélia? – Chorou e correu a me abraçar. Eu já era homem formado, mas a minha mãe quis me pegar no colo.
– Vladinho, Vladinho, a Amélia, a Amélia…
Sim, tia Amélia estava morta. Eu, que nunca fui com a cara dela, dei de ombros, já imaginando a choradeira dos dois no velório.
– Tão nova – disse o meu pai num balançar de cabeça diante do caixão – enquanto a minha mãe enxugava os olhos com um lenço, o soluço a cada cinco segundos e eu imaginando se demoraria o enterro, tinha futebol na televisão mais tarde e eu não perco jogos do Flamengo de jeito nenhum.
Devia ser proibido velórios aos domingos.
Na única vez que me aproximei do caixão me deparei com uma imagem surpreendente: tia Amélia estava sorrindo. Meu amigo escritor se postou ao meu lado. Apontei com a testa o corpo da tia Amélia.
– Percebeu o sorriso?
Ele se deteve:
– Parece mesmo.
– Você devia escrever um conto sobre defuntos sorrindo.
– Talvez… – respondeu num sorriso tímido, mas nunca escreveu.
Ajeitei a máscara no nariz e espantei os pensamentos de gente morta.
De repente um vulto enorme atravessou a sala, atrapalhando meus devaneios: um homem enorme e ruivo, o único no lugar que me dirigiu um cumprimento de sorriso permanente no rosto. O demônio é ruivo, costumava dizer a tia Amélia.
A voz do doutor escapou de repente de dentro da sala:
– Senhor Vladimir!
Levantamos ao mesmo tempo, o grandalhão ruivo e eu.  Apontei para ele:
– Seu nome é Vladimir?
– Sim. O seu também?
– Sim, olha que coisa?
O médico chama novamente:
– Senhor Vladimir.
– Qual deles? – Perguntamos ao mesmo tempo, o grandalhão e eu. Rimos. O doutor resolveu a situação.
– Vladimir De La Mancha.
Sorri para o outro Vladimir:
– Sou eu, mas não vou demorar, é só para pegar receita do remédio para a pressão.
– Nossa, olha só, eu também vim aqui só para isso.
Rimos.
O doutor me recebeu sem olhar diretamente para mim, a respiração ofegante na máscara branca, os óculos embaçados, os cabelos ensebados.
– Então senhor Vladimir, em que posso lhe ajudar?
– Eu sou cliente antigo, o senhor deve se lembrar de mim…
Só então ele ergueu o rosto e forçou a vista. Eu sorri dentro da máscara.
– Meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista.
Ele finalmente me reconheceu.
– Agora me lembrei. O senhor invocou que estava morrendo do coração tempos atrás.
– Ano passado. Estava vendo manchas.
– Sim, parece que foi ontem. Mas e agora, o que aconteceu?
– Eu acho que preciso aumentar a miligrama do remédio para pressão, ando ouvindo uns tic e tacs no peito, uma dorzinha de cabeça e a vista embaçada.
Ele não disse mais nada, enfiou no meu braço o aparelho para medir a pressão, fux fux fuuuxxx, o olhar no relógio, outro para mim:
– 12 por 9…
– E isso é bom?
– É ótimo. Sua pressão está normal, quase de um jovem;
Ato contínuo, enfiou o estetoscópio no meu peito e ficou olhando para o relógio no pulso.
– Normal…
– Mas eu ando vendo umas bolinhas e ouvindo uns tic tacs no coração, doutor.
– Vladimir, você tem o coração de ferro. Pode morrer de outra coisa, mas não do coração.
– Que outra coisa? – perguntei, desconfiado – ele sorriu.
– Fígado, rim, pulmão…
Senti uma leve tontura. Meu fígado, pobre do meu fígado, jorro nele bacias de álcool e gordura todos os dias. Meus pulmões, coitados, certamente são azuis, fumo desde os quinze anos. E os rins, meu Deus, como conseguem filtrar a bagaçada toda? Vou morrer, certeza.
– Mas aparentemente você não tem nada de grave. Vou pedir uns exames, só para confirmar.
– Doutor, seja sincero, eu corro risco de vida?
– Já disse, você tem o coração ótimo, o resto vamos ver depois do resultado dos exames de sangue. Aparentemente você está ótimo.
E se despediu de mim com um olhar de quem esconde segredos. Havia algo da tia Amélia naquele olhar.
Sai sem encarar as mulheres, imaginando o que podia fazer no restinho de vida que ainda me restava.
O grandalhão ruivo estava ao pé da porta.
– Vladimir Polinski – chamou o doutor.
Fiz um sinal de testa no rosto de quem se prepara para morrer. O ruivo me encarou como se ouvisse meu pensamento.
– Deu ruim lá dentro?
– Acho que vou morrer – e desabei numa confissão atrás da máscara – meus pulmões, os rins, o fígado, tudo lascado, ele nem falou da bexiga e eu vou ao banheiro urinar a cada cinco minutos…
– Cara, calma aí, espere eu sair, vamos conversar. Você está de carro?
– Não se incomode, vou pedir um Uber.
– Faço questão de lhe dar uma carona, me espere.
– Tá, estarei lá fora vendo o mundo enquanto posso.
Não precisei esperar muito, no máximo umas quinze respiradas profundas, atento mentalmente ao registro das coisas que ainda não fiz e talvez não tivesse mais tempo.
O ruivo veio até mim trazendo também um ar de desespero.
– Xará, ele me pediu uma porrada de exames. Estou com algum coisa ruim, certeza.
E quase nos abraçamos, o olhar quieto daqueles que desejam a colisão dos planetas e a morte do mundo todo.
– Venha, vamos – ele disse, me apontando o estacionamento.
O Vladimir ruivo tinha um Opalão branco, das rodas cromadas e bancos de couro. Para quem tem mais de cinquenta anos, não existe nada que supere o empolgante ronco do motor de um Opala.
Faltava assunto e de estalo me veio a confissão:
– Meu nome é Vladimir por causa do meu pai que invocou de juntar o nome da minha mãe com o dele.
– Cara, que incrível, comigo aconteceu a mesma coisa.
Coloquei as mãos no peito:
– Vladislau e Nadir.
Ele balançou a cabeça num sorriso sem fim, uma mão no volante, outra no peito:
–  Valda e Almir.
A voz da mulher do google maps mandava ele seguir, ele virava, mandava andar seiscentos metros, ele seguia mais de quilômetro, tudo levava a crer que queria continuar conversando.
– Vamos tomar umas cervejas? Sugeriu.
Foi o mesmo que oferecer bananas a um macaco.
Encontramos um bar aberto e nem era quatro da tarde.
– Fechamos às oito por causa de pandemia – avisou o dono do bar –.
Tinha um defeito terrível o outro Vladimir, não parava de falar e se elogiar, era mestre em tudo e, se não fosse a cerveja gelada, pediria um Uber disfarçadamente e iria embora. De repente ele começou a citar autores – odeio isso – Proust, Machado, Borges e um tal Casares:
– Morei em Buenos Aires e lá, ler é quase uma obrigação.
Sou mestre das desculpas esfarrapadas:
– Leio pouco, minha vista anda cansada.
Ele fez um gesto de desprezo com o canto da boca, quase um sorriso. Quando sorria, Vlad ruivo ficava parecido com a tia Amélia no caixão.
O tempo foi passando, a noite chegou e a cerveja parecia cada vez mais doce e gelada. Vlad ruivo queria me contar outras habilidades, a espuma escapando dos lábios, as máscaras esquecidas no canto do balcão, “fechamos às oito” lembrava o dono do bar. E não era oito quando a cerveja acabou. Tem conhaque? Só Presidente. Bebemos a garrafa inteira. E se o mundo acabar? Tem uísque? Uma garrafa de Passaporte, disse o dono do bar, que já estava fechado, mas ele foi camarada e nos deixou ficar com as portas abaixadas. Um homem bom, sem dúvidas, desnecessário corrigir o nome do uísque, porque de Passport eu entendo. Quando o uísque acabou, enxergamos um pé de limão no quintal. Eu faço a caipirinha, disse o Vlad Ruivo, já abrindo a garrafa de Velho Barreiro. E assim fomos até a lua dar nos ombros.
E não me lembro de quase mais nada, apenas imagens confusas, o ronco do motor do Opala, luzes piscando no teto, tal e qual os globos das antigas discotecas, sons difusos, fumaça no chão, vozes aqui e ali, nu o Vlad ruivo parecia um urso, no extremo do palco enxerguei o sorriso da tia Amélia numa das dançarinas e na hora ressoou nos meus ouvidos a voz do meu pai: “a Amélia, a Amélia?” E os rostos de máscaras passearam até a tia Amélia surgir me abraçando, terna, doce, eu que nunca gostei dela…
– O diabo é ruivo meu filho, nunca se esqueça.
E chorei ao invés de sorrir, porque a tia Amélia morreu sorrindo e eu não queria morrer de jeito nenhum: tão novo, diria meu pai, tão belo, diria a minha mãe, porra Vladimir, que merda você fez? Perguntaria o meu amigo escritor diante do meu cadáver esticado num caixão, sorrindo envolto em punhados de rosas amarelas.
Acordei no dia seguinte, perto das cinco da tarde, estirado na minha cama, nu e suado, esquecido de tudo, mas vivo e sorrindo.
Toquei meu corpo inteiro, nenhum rasgo, nada faltando, ausência de ardências.
E se não fosse a ressaca monstra, beberia uma cerveja, porque mais tarde tem jogo do Flamengo.
O pedido de exames devo ter deixado no bar, ou no Opala do Vlad ruivo.
–  Depois resolvo isso, ou esqueço de vez – disse comigo mesmo, em voz alta, atrapalhado pelo som do sonrisal explodindo no copo de água gelada.

A cabeça de boi, dois peixes de lágrimas e os segredos da prosa.

Num lugar onde a terra fica mais perto da lua, a deusa Yebá Bëló, debruçada na janela do seu castelo de quartzo, avistou a mata se abrir num rufar de ventos, mostrando diante de seus olhos de pedra imagens do futuro.
Em meio a névoa que se formou, enxergou uma bela cidade, das ruas largas e rodeada de flores de cores diversas. Luz, muita luz. Era um campo bem grande, e as flores de suas árvores tinham o perfume de terra vermelha.
A deusa se emocionou. Nunca antes havia visto um lugar tão belo. Seu rosto pálido enrubesceu e chorou como cantam os passarinhos. Duas gotas de lágrimas caíram em meio ao vendaval, escorreram da janela até o jardim, mergulhando num pequeno veio d’água. Não conseguiram se juntar, a corrente d’água logo se tornou enxurrada, levou cada gota para um canto, engolidas pelo redemoinho que se formou.
Yabá Bëló fez um gesto de mãos e as gotas se transformaram em peixes da cor de lágrimas.
Cada peixe sentiu a presença do outro e tentaram se encontrar, nadando loucamente entre os veios d’água como se estivessem em um labirinto.
A deusa sorriu: “tudo o que é sagrado um dia se encontra” fechou a janela e se trancou no seu castelo de quartzo levando na mente a imagem da bela cidade que ainda não existia.
Tempos depois…
Aconteceu durante o eclipse, quando de repente o dia se tornou noite, enlouquecendo os animais.
O boi desgarrado caminhou lentamente pelo topo de uma pequena elevação, percebeu, com o encantamento só permitido aos bois em dias de eclipses, ao longe o encontro de dois córregos como se fizessem parte de um só.
Se pudesse pensar, se tivesse a capacidade de imaginar, diria o boi consigo mesmo: que campo grande lindo é aquele? E de tão encantado, desconsiderou os perigos, prosseguiu caminhando até que de repente surgiu à sua frente uma onça faminta. Dos olhos da pintada, um raio de ataque refletiu. O boi não recuou, sabia que seria facilmente alcançado. Entre eles existia apenas um imenso tronco de árvore quase seco, restos de uma gigantesca e milenar árvore, lisa e sem galhos, há poucos passos do boi, distante mais de cinquenta metros da onça.
Na esperteza consagrada aos bois apenas nos dias de eclipse, correu até o tronco da árvore lisa, usou o casco afiado e o chifre pontiagudo, fez um esforço supremo até conseguir se pendurar na ponta da árvore seca. A onça ficou dando voltas, urrando de raiva, a fome escapando pela boca em forma de baba. Se pudesse falar, a onça, que nada sabia dos poderes do eclipse, reclamaria com a natureza: como pôde o boi escalar uma árvore, justamente a única sem galhos, na qual não posso subir para caçá-lo? Por instinto, imaginou que uma hora o bicho desceria. Assim pensando, permaneceu em vigília. O eclipse acabou e o dia se transformou em noite diversas vezes, nem a onça desistia, nem o boi descia. No dia que o céu não brilhou por conta das nuvens, a onça resolveu buscar outra caça. O boi não percebeu, morreu na noite seguinte, de frio, medo e sede. Seu corpo apodreceu, despencou aos poucos, até restar apenas a cabeça em cima do mastro enorme, os olhos secos voltados para o local de encontro entre os dois córregos, como se fosse um fiel vigilante.
Durante diversos eclipses, os peixes da cor de lágrimas prosseguiram se buscando.
Entre a correnteza um foi para o sul, outro para o norte, fizeram o contorno no delta do grande rio, cada um a seu tempo, invadiram os corixos, nadaram, nadaram e nadaram sem descanso.
No mesmo instante que o boi morria, há poucos quilômetros da árvore seca e sem galhos na qual pendia a cabeça do boi, a correnteza se tornou mais branda e o barulho do encontro dos dois córregos fez brilhar as pedras do encosto.  O primeiro peixe era o feminino e se chamou de Prosa, o segundo peixe chegou em seguida, de nome Segredo. Seus olhos se encontraram finalmente. Nadaram num resto de força até ficarem bem perto, tão perto, e se peixes pudessem sorrir, teriam sorrido, se pudessem falar diriam alguma frase de amor. Prosa e Segredo finalmente unidos, escorados numa pedra coberta de musgos.
Então da sombra de um vegetal, partiu fulminante o voo de uma garça. Primeiro abocanhou a Prosa, deixando o Segredo assustado, sem ação, dando voltas em torno de si, apavorado de um tanto, não percebeu o novo ataque da ave insaciável, que o apanhou num certeiro ataque.
A garça pousou acima de uma pedra no meio do córrego para descansar. Prosa e Segredo finalmente se tornaram um só dentro da barriga da ave, juntos formaram a lágrima densa e forte, salgada de um tanto, tal qual um facho de fogo a arder dentro da barriga do bicho.
A ave sentiu a explosão dentro de si. Um suspirar profundo, o lamber apressado e trêmulo das patas, tentou alçar voo, arrastou-se pesada e surpresa, fatigada ao extremo, até tombar em meio à terra vermelha.
O passar do tempo incumbiu a terra vermelha que tombou a garça a se transformar num lençol de grama da qual nasceram diversos pares de flor petalada.
Flores e espinhos.
A beleza das flores atraiu as abelhas e as borboletas e elas espalharam os pólens por todo aquele imenso campo grande.
E passaram-se anos.
Os homens chegaram tempos depois e se deram com a visão dos majestosos e coloridos ipês floridos de várias cores.
Ninguém sabe ao certo qual foi o primeiro que por aqui chegou, se o fazendeiro da Cabreúva, o viajante mineiro, ou a escrava liberta.
Certamente, porém, foi Eva a primeira a pisar no espinho e se deixar dominar pelo perfume da terra vermelha. Apesar da dor provocada pelos espinhos enganchados nos pés, se encantou com o cheiro e a beleza da flor, levou-a até perto do rosto e assoprou de um tanto, fazendo os pólens voarem ao seu redor até formar no ar o rosto sagrado de Yebá Bëló.
Eva sorriu, os grandes olhos aguados, duas lágrimas escapadas, salgando a terra na qual seus pés se prenderam para sempre.
Tempos depois, antes dos quartéis e dos trens, o velho fazendeiro resolveu erguer uma porteira diferente das demais: forte e potente, ferro de pouca liga, quase puro, com cinco ou seis dobradiças, para ranger alto quando tocadas, e assim avisar da chegada das boiadas: o portão de ferro. Dos campos de vacaria vieram as comitivas e os carretos. O gado abriu um trieiro na mata, depois os homens marcaram a estrada com facão, abriram o caminho na força das mãos, até se encontrarem exatamente diante do imenso mastro de árvore na qual pendia uma esplêndida cabeça de boi.
Mais tempo correu e hoje o portão de ferro é uma Avenida movimentada que dá acesso ao monumento da Cabeça de Boi.
Nasci ali bem perto, no quintal longo e estreito no qual pisei numa dessas flores das pétalas coloridas e o espinho formou raízes nos meus pés.
Penso nisso enquanto o meu carro para no cruzamento onde antes existia o portão de ferro. Aguardo o sinal abrir e depois percorro até quase o final da Avenida, passo em frente à antiga casa que nasci, aquela mesma da qual fomos expulsos por razões que nenhuma prosa consegue desvendar o segredo. São espinhos e lágrimas, palavras que não rimam, razões enterradas.
Passeia por ali o vulto de uma ilusória Aurora.
Viro à direita, atravesso os quarteis, prossigo no mesmo caminho das boiadas, até dar de frente com o monumento erguido em homenagem à cabeça de boi.
Então ergo os vidros do carro, permito o vento bater forte no meu rosto até salgar a minha pele com o cheiro da terra vermelha, sinto minha alma envolvida pelos pólens das flores e a dor aguda dos espinhos fincados nos pés.
Olho em torno e contemplo a cidade nascida de duas gotas de lágrimas de uma Deusa, aquele mesmo campo, tão grande e floreado, que ainda hoje se reflete na cabeça de boi.

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