O Vlad ruivo, o sorriso da tia morta e a noite dos hipocondríacos

Eu não sei exatamente se foi uma desculpa para sair do apartamento e ver como andam as coisas lá fora, ou se realmente estava sentindo umas pontadas no peito e vendo bolinhas coloridas flutuando no ar ao acordar.
Será grave? Morrer devia ser opcional, todavia, envelhecer é um saco. Saudades da juventude, de quando o único medo era pegar uma doença venérea.
E logo me vi na sala de espera do consultório do cardiologista. Uma poltrona sim, duas não, assim dispostas, na intenção de manter a distância entre as pessoas e evitar a contaminação pelo vírus corona. Máscaras, muitas máscaras. A mocinha na ponta é filha da senhora sentada duas poltronas depois. Os olhos idênticos entregam. Caso atípico de mãe mais bonita que a filha. Sinto uma vontade imensa de ir até elas e me apresentar: Olá, meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista. Elas nem me olham. Acho estranho. Tenho o costume perverso de imaginar que todas as mulheres do mundo estão interessadas em mim.
A secretária do médico é uma mulher da minha idade, ou quase isso, o olhar tristonho na cara ossuda me faz imaginar a sofrência de quem acorda todos os dias às cinco horas da manhã e passa quarenta minutos tentando encaracolar as pontas dos cabelos. Sorrio para ela que faz não perceber. Sofrência acarreta ignorância. Coço o queixo, a secretária me lembra uma tia, a respeitada dona Amélia, irmã do meu pai, morta no carnaval de 85, após anos trancada dentro de casa e que de repente escapou para a vida, farreou tanto, bebeu o que encontrou pela frente, fez sexo com o frentista no banheiro do posto de gasolina e depois com dois caminhoneiros estacionados na escuridão dos becos do jardim Paulista.
Um deles a fez engolir uma pílula branca e ela desabou de vez, caiu morta, fulminada, indiferente à luz do sol que surgia no horizonte.
A loucura daquela noite teve origem semanas antes, quando tia Amélia recebeu o diagnóstico de um cardiologista. Era um papel do tipo pena de morte. Sinto a dor no peito. Será doença hereditária?
Quando avisaram, meu pai colocou as duas mãos na cabeça e ficou repetindo:
– A Amélia, a Amélia?
Uma das poucas vezes que vi lágrimas no rosto do velho Coronel, as mãos trêmulas segurando o telefone enquanto olhava para minha mãe, que também colocou as mãos na cabeça, mesmo antes de saber a notícia:
– A Amélia? – Chorou e correu a me abraçar. Eu já era homem formado, mas a minha mãe quis me pegar no colo.
– Vladinho, Vladinho, a Amélia, a Amélia…
Sim, tia Amélia estava morta. Eu, que nunca fui com a cara dela, dei de ombros, já imaginando a choradeira dos dois no velório.
– Tão nova – disse o meu pai num balançar de cabeça diante do caixão – enquanto a minha mãe enxugava os olhos com um lenço, o soluço a cada cinco segundos e eu imaginando se demoraria o enterro, tinha futebol na televisão mais tarde e eu não perco jogos do Flamengo de jeito nenhum.
Devia ser proibido velórios aos domingos.
Na única vez que me aproximei do caixão me deparei com uma imagem surpreendente: tia Amélia estava sorrindo. Meu amigo escritor se postou ao meu lado. Apontei com a testa o corpo da tia Amélia.
– Percebeu o sorriso?
Ele se deteve:
– Parece mesmo.
– Você devia escrever um conto sobre defuntos sorrindo.
– Talvez… – respondeu num sorriso tímido, mas nunca escreveu.
Ajeitei a máscara no nariz e espantei os pensamentos de gente morta.
De repente um vulto enorme atravessou a sala, atrapalhando meus devaneios: um homem enorme e ruivo, o único no lugar que me dirigiu um cumprimento de sorriso permanente no rosto. O demônio é ruivo, costumava dizer a tia Amélia.
A voz do doutor escapou de repente de dentro da sala:
– Senhor Vladimir!
Levantamos ao mesmo tempo, o grandalhão ruivo e eu.  Apontei para ele:
– Seu nome é Vladimir?
– Sim. O seu também?
– Sim, olha que coisa?
O médico chama novamente:
– Senhor Vladimir.
– Qual deles? – Perguntamos ao mesmo tempo, o grandalhão e eu. Rimos. O doutor resolveu a situação.
– Vladimir De La Mancha.
Sorri para o outro Vladimir:
– Sou eu, mas não vou demorar, é só para pegar receita do remédio para a pressão.
– Nossa, olha só, eu também vim aqui só para isso.
Rimos.
O doutor me recebeu sem olhar diretamente para mim, a respiração ofegante na máscara branca, os óculos embaçados, os cabelos ensebados.
– Então senhor Vladimir, em que posso lhe ajudar?
– Eu sou cliente antigo, o senhor deve se lembrar de mim…
Só então ele ergueu o rosto e forçou a vista. Eu sorri dentro da máscara.
– Meu nome é Vladimir de La Mancha e só tenho medo de dentista.
Ele finalmente me reconheceu.
– Agora me lembrei. O senhor invocou que estava morrendo do coração tempos atrás.
– Ano passado. Estava vendo manchas.
– Sim, parece que foi ontem. Mas e agora, o que aconteceu?
– Eu acho que preciso aumentar a miligrama do remédio para pressão, ando ouvindo uns tic e tacs no peito, uma dorzinha de cabeça e a vista embaçada.
Ele não disse mais nada, enfiou no meu braço o aparelho para medir a pressão, fux fux fuuuxxx, o olhar no relógio, outro para mim:
– 12 por 9…
– E isso é bom?
– É ótimo. Sua pressão está normal, quase de um jovem;
Ato contínuo, enfiou o estetoscópio no meu peito e ficou olhando para o relógio no pulso.
– Normal…
– Mas eu ando vendo umas bolinhas e ouvindo uns tic tacs no coração, doutor.
– Vladimir, você tem o coração de ferro. Pode morrer de outra coisa, mas não do coração.
– Que outra coisa? – perguntei, desconfiado – ele sorriu.
– Fígado, rim, pulmão…
Senti uma leve tontura. Meu fígado, pobre do meu fígado, jorro nele bacias de álcool e gordura todos os dias. Meus pulmões, coitados, certamente são azuis, fumo desde os quinze anos. E os rins, meu Deus, como conseguem filtrar a bagaçada toda? Vou morrer, certeza.
– Mas aparentemente você não tem nada de grave. Vou pedir uns exames, só para confirmar.
– Doutor, seja sincero, eu corro risco de vida?
– Já disse, você tem o coração ótimo, o resto vamos ver depois do resultado dos exames de sangue. Aparentemente você está ótimo.
E se despediu de mim com um olhar de quem esconde segredos. Havia algo da tia Amélia naquele olhar.
Sai sem encarar as mulheres, imaginando o que podia fazer no restinho de vida que ainda me restava.
O grandalhão ruivo estava ao pé da porta.
– Vladimir Polinski – chamou o doutor.
Fiz um sinal de testa no rosto de quem se prepara para morrer. O ruivo me encarou como se ouvisse meu pensamento.
– Deu ruim lá dentro?
– Acho que vou morrer – e desabei numa confissão atrás da máscara – meus pulmões, os rins, o fígado, tudo lascado, ele nem falou da bexiga e eu vou ao banheiro urinar a cada cinco minutos…
– Cara, calma aí, espere eu sair, vamos conversar. Você está de carro?
– Não se incomode, vou pedir um Uber.
– Faço questão de lhe dar uma carona, me espere.
– Tá, estarei lá fora vendo o mundo enquanto posso.
Não precisei esperar muito, no máximo umas quinze respiradas profundas, atento mentalmente ao registro das coisas que ainda não fiz e talvez não tivesse mais tempo.
O ruivo veio até mim trazendo também um ar de desespero.
– Xará, ele me pediu uma porrada de exames. Estou com algum coisa ruim, certeza.
E quase nos abraçamos, o olhar quieto daqueles que desejam a colisão dos planetas e a morte do mundo todo.
– Venha, vamos – ele disse, me apontando o estacionamento.
O Vladimir ruivo tinha um Opalão branco, das rodas cromadas e bancos de couro. Para quem tem mais de cinquenta anos, não existe nada que supere o empolgante ronco do motor de um Opala.
Faltava assunto e de estalo me veio a confissão:
– Meu nome é Vladimir por causa do meu pai que invocou de juntar o nome da minha mãe com o dele.
– Cara, que incrível, comigo aconteceu a mesma coisa.
Coloquei as mãos no peito:
– Vladislau e Nadir.
Ele balançou a cabeça num sorriso sem fim, uma mão no volante, outra no peito:
–  Valda e Almir.
A voz da mulher do google maps mandava ele seguir, ele virava, mandava andar seiscentos metros, ele seguia mais de quilômetro, tudo levava a crer que queria continuar conversando.
– Vamos tomar umas cervejas? Sugeriu.
Foi o mesmo que oferecer bananas a um macaco.
Encontramos um bar aberto e nem era quatro da tarde.
– Fechamos às oito por causa de pandemia – avisou o dono do bar –.
Tinha um defeito terrível o outro Vladimir, não parava de falar e se elogiar, era mestre em tudo e, se não fosse a cerveja gelada, pediria um Uber disfarçadamente e iria embora. De repente ele começou a citar autores – odeio isso – Proust, Machado, Borges e um tal Casares:
– Morei em Buenos Aires e lá, ler é quase uma obrigação.
Sou mestre das desculpas esfarrapadas:
– Leio pouco, minha vista anda cansada.
Ele fez um gesto de desprezo com o canto da boca, quase um sorriso. Quando sorria, Vlad ruivo ficava parecido com a tia Amélia no caixão.
O tempo foi passando, a noite chegou e a cerveja parecia cada vez mais doce e gelada. Vlad ruivo queria me contar outras habilidades, a espuma escapando dos lábios, as máscaras esquecidas no canto do balcão, “fechamos às oito” lembrava o dono do bar. E não era oito quando a cerveja acabou. Tem conhaque? Só Presidente. Bebemos a garrafa inteira. E se o mundo acabar? Tem uísque? Uma garrafa de Passaporte, disse o dono do bar, que já estava fechado, mas ele foi camarada e nos deixou ficar com as portas abaixadas. Um homem bom, sem dúvidas, desnecessário corrigir o nome do uísque, porque de Passport eu entendo. Quando o uísque acabou, enxergamos um pé de limão no quintal. Eu faço a caipirinha, disse o Vlad Ruivo, já abrindo a garrafa de Velho Barreiro. E assim fomos até a lua dar nos ombros.
E não me lembro de quase mais nada, apenas imagens confusas, o ronco do motor do Opala, luzes piscando no teto, tal e qual os globos das antigas discotecas, sons difusos, fumaça no chão, vozes aqui e ali, nu o Vlad ruivo parecia um urso, no extremo do palco enxerguei o sorriso da tia Amélia numa das dançarinas e na hora ressoou nos meus ouvidos a voz do meu pai: “a Amélia, a Amélia?” E os rostos de máscaras passearam até a tia Amélia surgir me abraçando, terna, doce, eu que nunca gostei dela…
– O diabo é ruivo meu filho, nunca se esqueça.
E chorei ao invés de sorrir, porque a tia Amélia morreu sorrindo e eu não queria morrer de jeito nenhum: tão novo, diria meu pai, tão belo, diria a minha mãe, porra Vladimir, que merda você fez? Perguntaria o meu amigo escritor diante do meu cadáver esticado num caixão, sorrindo envolto em punhados de rosas amarelas.
Acordei no dia seguinte, perto das cinco da tarde, estirado na minha cama, nu e suado, esquecido de tudo, mas vivo e sorrindo.
Toquei meu corpo inteiro, nenhum rasgo, nada faltando, ausência de ardências.
E se não fosse a ressaca monstra, beberia uma cerveja, porque mais tarde tem jogo do Flamengo.
O pedido de exames devo ter deixado no bar, ou no Opala do Vlad ruivo.
–  Depois resolvo isso, ou esqueço de vez – disse comigo mesmo, em voz alta, atrapalhado pelo som do sonrisal explodindo no copo de água gelada.

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