Cavalos correm pelos campos da colina chamuscada de chuva

Na sala do consultório, antes de ser chamado para a consulta com o oftalmologista, frases soltas percorrem o meu pensamento: os cavalos correm pelos campos da colina cor de cinza chamuscada de chuva.
À minha volta uma quantidade imensa de pessoas também aguarda a vez. Os olhos falham. Qual desespero maior do que a cegueira? Nem a certeza da morte é tão cruel. Eu escrevo, leio, vejo filmes. Se a luz dos meus olhos se forem, o som da boca irá junto, me calarei e mendigarei aos meus ouvidos para que não se fechem e ao menos eu possa ouvir o trotar dos cavalos correndo pelos campos da colina, guiado pelo tamborilar dos pingos da chuva, formando aos poucos chamuscos cinzas de quem apenas ouve e nada vê.
O frio de agosto me percorre enquanto a senhora de máscara cor de rosa ao meu lado pinga o colírio nos olhos sem pedir ajuda: ela mesma abre com as mãos as pálpebras e pinga uma gota em cada olho numa exatidão comovente. Depois sorri para mim, um riso convencido atrás da máscara.  Sinto por ela a mesma admiração que tenho pelos alpinistas, os paraquedistas e toda pessoa que desperdiça o domingo para lavar o carro ou ir à igreja.
O casal na outra ponta toma conta de uma única poltrona, vive num mundo apenas deles. Ela se deita no ombro do companheiro e parece que são uma só pessoa. Devem dormir de conchinha. Graziela cuida de mim, se encarregará de pingar o colírio. A moça se mexe no ombro do rapaz e ele alisa os seus cabelos. Cena linda que registro na mente, mesmo com os olhos um tanto embaçados. Qual deles está com problema nas vistas? E se um dos dois não enxergar mais? Os corpos se atrairão, certamente, e continuarão dormindo de conchinhas. Ouço ao longe o trotar dos cavalos. É nesse instante que consigo ouvir meu coração.
Peço socorro às imagens do passado, preciso fugir da realidade. Então se abre no meu pensamento a manhã de um domingo do passado, o mesmo sopro frio de agosto, vejo a minha mãe chegando da feira trazendo uma galinha embaixo do braço. Ouço nitidamente os cachorros latindo, “passa, passa” ela diz, tentando se desvencilhar, corro para ajuda-la e os olhos da galinha eram de fogo, sem piscar, o medo refletido, a percepção do fim. Meu padrasto surgiu de repente, um facão nas mãos, não disse nada, apanhou a galinha das mãos da minha mãe e lhe decepou a cabeça. Mesmo morto, o bicho pulou várias vezes, esparramando um filete de sangue pelo chão vermelho, imagem presa na minha mente para sempre, a criança de dez anos encarando os pequenos olhos da galinha morta, inerte, sem luz. Senti a crueldade humana e não conseguia olhar para minha mãe.
Durou até o almoço ficar pronto e a galinha era o prato principal:
– Eu quero a coxa! Disse e provavelmente os meus olhos brilharam, sem piscar.
A fome dói mais que a piedade.
Tempos depois, levei meus filhos pela primeira vez à uma churrascaria. O Bruno queria coração de frango e o garçom fez descer do espeto até o seu prato cinco ou seis pedaços de uma só vez. Ele comeu, adorou, pediu mais. Fiz um alerta:
– Coma tudo, não deixe nada, fique sabendo que cada coração desses era de um frango que morreu para você se alimentar. – Ele me olhou com olhos de surpresa e no instante seguinte seus olhos se transformaram numa cachoeira de lágrimas (nunca vi ninguém chorar tão bem quanto o meu filho Bruno) e soluçava, o rosto vermelho de tanto chorar, vez em quando lançava em minha direção um olhar de revolta misturado com piedade –.
– Você devia ter me falado antes, pai.
– Achei que você soubesse. De onde mais poderia sair o coração de frango se não do peito do bicho vivo? Achou que davam em árvores?
– Achei.
E não disse mais nada, comeu tudo e não falamos mais sobre o assunto.
A senhora do colírio me desperta, me traz de volta à realidade como num beliscão: retira a máscara cor de rosa do rosto por instantes, olha para mim como se me conhecesse há muito tempo, confidencia:
– Fico sufocada às vezes.
Eu sorrio de volta e meu gesto de mãos são palavras, tudo bem, acontece, mas seja rápida.
Ela tem a voz do passado, tal qual os pingos da chuva chamuscando os campos da colina até torna-la cinza.
Eu sempre parei para reparar as pessoas, as flores e as árvores. Deve ser esse o motivo de guardar tantas lembranças. E volto ao passado: nunca me fizeram um bolo de aniversário, jamais ouvi o cantar de parabéns em minha homenagem, mas a fumaça escapando no fio da vela do bolo tem o mesmo cheiro de velório. Fecho os olhos e sinto aquele cheiro. Coisa de aquariano.
Antes, quando diziam que a vida é passageira, eu ria, queria comer o bolo de aniversário dos outros, ver a vela se apagando até o cheiro da festa se confundir com o cheiro de velórios. Os bolos tinham gosto de manteiga e algumas bolinhas brilhosas de chumbo doíam os dentes, mas ninguém deixava restos no prato.
O casal enfim se mexe, ele atende o celular e aponta para a companheira o relógio na parede.
O carinho dá lugar à pressa.
As horas…Nunca acreditamos no relógio, mas os ponteiros andam, tic, tac, e os minutos se tornam horas, o dia é segunda, mas logo é domingo, a semana que vem é amanhã e já se passou tanto tempo desde aquela vez que vi minha mãe trazer a galinha embaixo dos braços, o corte na cabeça, o cheiro do assado, frio de agosto arrancando lágrimas de sopro de vento.
Coço os olhos ardentes, naquele tempo não precisava suspirar pelas luzes do dia, eu enxergava tudo, de perto e de longe.
A espera também me faz ouvir músicas na mente, vejo a batuta do maestro sem enxergar-lhe as mãos, a cortina ainda aberta, mas o pano já é opaco.
Enfim sou chamado, na frente do casal e da senhora da máscara rosa. Nunca saberei qual dos dois está com problemas na visão e a senhora da máscara rosa pode até ser um fantasma, porque de passagem, olhei para o casal  e vi uma vela de aniversário se apagando, mas quando olhei para a senhora da máscara cor de rosa, senti o cheiro de velório.
O médico me recebe num sorriso, já me conhece.
– Não é nada grave, não precisa fazer drama.
– Estava ardendo e tudo embaçado.
– Vou aumentar o grau.
– Mas você está dizendo que terei que usar colírio para o resto da vida.
– Sim, um simples colírio. Imagine a diferença para alguém que precisa implantar uma lente ou algo assim.
Sou descrente, mas nesses momentos, murmuro orações.
Ao sair, a senhora ainda aguarda a sua vez e me lança um sorriso atrás da máscara rosa.
Ela conhece o meu desespero, sabe que jamais conseguirei pingar sozinho o colírio nos olhos.
Será?
A vista anda fraca, mas o pensamento é feito a chama da vela do bolo de aniversário: tremula, mas ainda queima, segurando o sopro do tempo, tic, tac, tic, tac.
Tento, e consigo, uma gota certeira de colírio nos olhos bem abertos.
E então já posso ver os cavalos correndo pelos campos da colina, tudo verde, brilhante, sem nenhum tom de cinza.

A cabeça de boi, dois peixes de lágrimas e os segredos da prosa.

Num lugar onde a terra fica mais perto da lua, a deusa Yebá Bëló, debruçada na janela do seu castelo de quartzo, avistou a mata se abrir num rufar de ventos, mostrando diante de seus olhos de pedra imagens do futuro.
Em meio a névoa que se formou, enxergou uma bela cidade, das ruas largas e rodeada de flores de cores diversas. Luz, muita luz. Era um campo bem grande, e as flores de suas árvores tinham o perfume de terra vermelha.
A deusa se emocionou. Nunca antes havia visto um lugar tão belo. Seu rosto pálido enrubesceu e chorou como cantam os passarinhos. Duas gotas de lágrimas caíram em meio ao vendaval, escorreram da janela até o jardim, mergulhando num pequeno veio d’água. Não conseguiram se juntar, a corrente d’água logo se tornou enxurrada, levou cada gota para um canto, engolidas pelo redemoinho que se formou.
Yabá Bëló fez um gesto de mãos e as gotas se transformaram em peixes da cor de lágrimas.
Cada peixe sentiu a presença do outro e tentaram se encontrar, nadando loucamente entre os veios d’água como se estivessem em um labirinto.
A deusa sorriu: “tudo o que é sagrado um dia se encontra” fechou a janela e se trancou no seu castelo de quartzo levando na mente a imagem da bela cidade que ainda não existia.
Tempos depois…
Aconteceu durante o eclipse, quando de repente o dia se tornou noite, enlouquecendo os animais.
O boi desgarrado caminhou lentamente pelo topo de uma pequena elevação, percebeu, com o encantamento só permitido aos bois em dias de eclipses, ao longe o encontro de dois córregos como se fizessem parte de um só.
Se pudesse pensar, se tivesse a capacidade de imaginar, diria o boi consigo mesmo: que campo grande lindo é aquele? E de tão encantado, desconsiderou os perigos, prosseguiu caminhando até que de repente surgiu à sua frente uma onça faminta. Dos olhos da pintada, um raio de ataque refletiu. O boi não recuou, sabia que seria facilmente alcançado. Entre eles existia apenas um imenso tronco de árvore quase seco, restos de uma gigantesca e milenar árvore, lisa e sem galhos, há poucos passos do boi, distante mais de cinquenta metros da onça.
Na esperteza consagrada aos bois apenas nos dias de eclipse, correu até o tronco da árvore lisa, usou o casco afiado e o chifre pontiagudo, fez um esforço supremo até conseguir se pendurar na ponta da árvore seca. A onça ficou dando voltas, urrando de raiva, a fome escapando pela boca em forma de baba. Se pudesse falar, a onça, que nada sabia dos poderes do eclipse, reclamaria com a natureza: como pôde o boi escalar uma árvore, justamente a única sem galhos, na qual não posso subir para caçá-lo? Por instinto, imaginou que uma hora o bicho desceria. Assim pensando, permaneceu em vigília. O eclipse acabou e o dia se transformou em noite diversas vezes, nem a onça desistia, nem o boi descia. No dia que o céu não brilhou por conta das nuvens, a onça resolveu buscar outra caça. O boi não percebeu, morreu na noite seguinte, de frio, medo e sede. Seu corpo apodreceu, despencou aos poucos, até restar apenas a cabeça em cima do mastro enorme, os olhos secos voltados para o local de encontro entre os dois córregos, como se fosse um fiel vigilante.
Durante diversos eclipses, os peixes da cor de lágrimas prosseguiram se buscando.
Entre a correnteza um foi para o sul, outro para o norte, fizeram o contorno no delta do grande rio, cada um a seu tempo, invadiram os corixos, nadaram, nadaram e nadaram sem descanso.
No mesmo instante que o boi morria, há poucos quilômetros da árvore seca e sem galhos na qual pendia a cabeça do boi, a correnteza se tornou mais branda e o barulho do encontro dos dois córregos fez brilhar as pedras do encosto.  O primeiro peixe era o feminino e se chamou de Prosa, o segundo peixe chegou em seguida, de nome Segredo. Seus olhos se encontraram finalmente. Nadaram num resto de força até ficarem bem perto, tão perto, e se peixes pudessem sorrir, teriam sorrido, se pudessem falar diriam alguma frase de amor. Prosa e Segredo finalmente unidos, escorados numa pedra coberta de musgos.
Então da sombra de um vegetal, partiu fulminante o voo de uma garça. Primeiro abocanhou a Prosa, deixando o Segredo assustado, sem ação, dando voltas em torno de si, apavorado de um tanto, não percebeu o novo ataque da ave insaciável, que o apanhou num certeiro ataque.
A garça pousou acima de uma pedra no meio do córrego para descansar. Prosa e Segredo finalmente se tornaram um só dentro da barriga da ave, juntos formaram a lágrima densa e forte, salgada de um tanto, tal qual um facho de fogo a arder dentro da barriga do bicho.
A ave sentiu a explosão dentro de si. Um suspirar profundo, o lamber apressado e trêmulo das patas, tentou alçar voo, arrastou-se pesada e surpresa, fatigada ao extremo, até tombar em meio à terra vermelha.
O passar do tempo incumbiu a terra vermelha que tombou a garça a se transformar num lençol de grama da qual nasceram diversos pares de flor petalada.
Flores e espinhos.
A beleza das flores atraiu as abelhas e as borboletas e elas espalharam os pólens por todo aquele imenso campo grande.
E passaram-se anos.
Os homens chegaram tempos depois e se deram com a visão dos majestosos e coloridos ipês floridos de várias cores.
Ninguém sabe ao certo qual foi o primeiro que por aqui chegou, se o fazendeiro da Cabreúva, o viajante mineiro, ou a escrava liberta.
Certamente, porém, foi Eva a primeira a pisar no espinho e se deixar dominar pelo perfume da terra vermelha. Apesar da dor provocada pelos espinhos enganchados nos pés, se encantou com o cheiro e a beleza da flor, levou-a até perto do rosto e assoprou de um tanto, fazendo os pólens voarem ao seu redor até formar no ar o rosto sagrado de Yebá Bëló.
Eva sorriu, os grandes olhos aguados, duas lágrimas escapadas, salgando a terra na qual seus pés se prenderam para sempre.
Tempos depois, antes dos quartéis e dos trens, o velho fazendeiro resolveu erguer uma porteira diferente das demais: forte e potente, ferro de pouca liga, quase puro, com cinco ou seis dobradiças, para ranger alto quando tocadas, e assim avisar da chegada das boiadas: o portão de ferro. Dos campos de vacaria vieram as comitivas e os carretos. O gado abriu um trieiro na mata, depois os homens marcaram a estrada com facão, abriram o caminho na força das mãos, até se encontrarem exatamente diante do imenso mastro de árvore na qual pendia uma esplêndida cabeça de boi.
Mais tempo correu e hoje o portão de ferro é uma Avenida movimentada que dá acesso ao monumento da Cabeça de Boi.
Nasci ali bem perto, no quintal longo e estreito no qual pisei numa dessas flores das pétalas coloridas e o espinho formou raízes nos meus pés.
Penso nisso enquanto o meu carro para no cruzamento onde antes existia o portão de ferro. Aguardo o sinal abrir e depois percorro até quase o final da Avenida, passo em frente à antiga casa que nasci, aquela mesma da qual fomos expulsos por razões que nenhuma prosa consegue desvendar o segredo. São espinhos e lágrimas, palavras que não rimam, razões enterradas.
Passeia por ali o vulto de uma ilusória Aurora.
Viro à direita, atravesso os quarteis, prossigo no mesmo caminho das boiadas, até dar de frente com o monumento erguido em homenagem à cabeça de boi.
Então ergo os vidros do carro, permito o vento bater forte no meu rosto até salgar a minha pele com o cheiro da terra vermelha, sinto minha alma envolvida pelos pólens das flores e a dor aguda dos espinhos fincados nos pés.
Olho em torno e contemplo a cidade nascida de duas gotas de lágrimas de uma Deusa, aquele mesmo campo, tão grande e floreado, que ainda hoje se reflete na cabeça de boi.

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