O Tempo, o Vento e o dia que o temporal escondeu o final da novela.

Tenho uma relação antiga com o Vento, dele conheço até mesmo o rosto: é um jovem sorridente, da cor transparente, dos cabelos lisos jogados dos lados e ligeiro feito a vida.
Ah, o sorriso do Vento é uma imagem perene no meu fechar de olhos.
Conheço também seu inseparável companheiro, o Tempo: um velho banguela, feio e cruel.
Às vezes o Vento traz consigo a eterna namorada, uma moça linda chamada Brisa e dela desprende todo o encanto de antigas lembranças…
Na pequena casa de madeira, tínhamos a nossa televisão bem no centro da sala, majestosamente equilibrada por cima de uma mesinha. Às vezes dava choques ao apertar algum botão, e quando a imagem ficava ruim, tio José colocava bombril nas pontas da antena e tudo voltava a funcionar perfeitamente.
Nos rastros dos tanques sulcando a terra, os pingos grossos de chuva no começo da tarde daquele dia anunciavam o temporal que não tardou desabar.
Minha avó correu a tapar os espelhos da casa com lençol e a profetizar que seria ligeiro: “chuva de verão, passa logo” – garantiu, num riso de certeza – e danou a desvendar um segredo da natureza:
– Não tenha medo do barulho do trovão, enquanto você tapa os ouvidos e treme de medo, o perigo já passou, o que mata é a luz do raio, não o barulho do trovão.
Mas outubro ainda não era verão e o temporal durou mais de horas. Mesmo com o fim da chuva, o céu prosseguiu riscado de raios.
Exatamente quando os ponteiros do relógio se abriram como se fossem duas pernas, a luz acabou. Minha avó colocou as duas mãos em volta da cabeça:
– E agora, meu Deus?
Era dia do último capítulo da novela, quando finalmente seria revelado o assassino da megera e a mocinha finalmente resolveria se entregaria os lábios ao galã ou não. Todos sentimos o desespero, andando de um lado para o outro na escuridão, tensos, segurando pires de velas nas mãos. A luz só voltou de madrugada, quando todos dormíamos.
Nos primeiros minutos da manhã seguinte, debruçada na janela, minha avó percebeu ao longe a chegada da irmã Adelaide; os olhos brilhantes, a testa acesa, o rosto quase sem conseguir segurar os olhos. Vinha ligeira, como quem traz notícias boas e ruins.
Desesperou-se:
– Ela vai me contar o final da novela.
Tio José abriu um sorriso:
– E isso não é bom?
Vó Aurora balançou a cabeça:
– Não, eu não quero ouvir dela.
Antes de alguma pergunta, tratou de esclarecer:
– Ela não sabe contar estórias, vai logo para o final, dispensa detalhes e eu gosto mais dos detalhes do que qualquer outra coisa.
Coçou a cabeça branca, estalou os dedos, olhou para mim:
– Você precisa ir logo para o colégio, ouvir dos seus colegas e depois me contar.
– Mas por quê?
– Você sabe contar os detalhes.
E antes que a irmã batesse na porta, fingiu mal-estar, uma dor terrível na cabeça, fechou a porta do quarto e a mandou voltar no dia seguinte.
– Uh, uh, como sofro! – Gemia a avó, a voz saindo espigada, a cabeça enterrada no travesseiro.
Tia Adelaide suspirou, quase conformada.
– Mas eu queria tanto saber o fim da novela. Acabou a luz lá em casa na hora e….
Vó Aurora arregalou os olhos, levantou-se de supetão, jogou os cabelos nas costas, abriu a porta do quarto e abraçou a irmã.
– Almoce aqui – e apontou para mim com a testa – ele vai à escola e quando retornar nos contará como foi o final da novela.
– Mas a sua dor de cabeça?
– Ainda dói um pouquinho, mas logo passa de vez.
E foram coar o café.
Na escola ninguém sabia o final da novela, o corte da energia elétrica atingiu o bairro todo.
Ao voltar, abraçado pela angústia de não desapontar minha avó, encontrei todos ansiosos, inclusive o tio Gutemberg, que quase nunca nos visitava, mas imaginando que a eletricidade não tinha acabado pelas nossas bandas, também ansiava por saber o final da novela.
E tantos foram os brilhos de olhos na minha direção, me senti como se eu fosse a própria televisão.
Deve ter sido esse o momento que o teatro entrou em mim: todos sentados à minha frente, os olhos arregalados, ouvidos atentos a cada palavra, acompanhando atentamente os meus gestos: eu mentia, sem admitir nem mesmo para mim que mentia, inventava imagens, compunha falas como se estivesse escrevendo versos sem rimas.
– E então, e então? – perguntavam numa só voz – e a voz já não era minha, era a de um homem malvado, uma donzela indecisa, um herói montado a cavalo: e seguia para desvendar o assassino quando tia Adelaide se intrometeu no caminho:
– Aquela moça adoentada, conseguiu andar?
Logo ela, que não sabia contar os detalhes, queria saber as curvas da estória.
– Sim, sim, ela andou, acabou feliz.
– Eu sabia, eu sabia! Disse a minha avó, num sorriso triunfal.
E o assassino antes imaginado, falhou por instantes na minha mente. Tentei ganhar tempo:
– Sobrou bolo?
– Ora rapaz, depois você come, precisamos saber quem é o assassino!
Tio Gutemberg muitas vezes era irritante. Fiquei sem resposta imediata, resolvi ouvir antes de falar:
– O que vocês acham? Apostas, vamos, digam.
E a delícia ao perceber a ficção se tornando real aos olhos dos meus parentes:
– Com certeza foi o advogado. Disse tio José. Minha avó fez cara séria, uma descompostura balançando a cabeça negativamente:
– O doutor Cândido? Imagina! Ele é uma boa pessoa, jamais seria capaz…
– Quem foi então? – Tio Gutemberg formou na testa diversas rugas.
Ameacei responder, mas tia Adelaide foi mais rápida:
– Catarina, aquela sonsa, desconfio dela desde sempre.
Novas rugas na testa do tio Gutemberg, a mão peluda tremulando
num toque nervoso de dedos por cima da mesa:
– Não, uma mulher puxar o gatilho? Não creio – assegurou e depois me olhou, severo:
– Vamos menino, diga logo o nome do assassino!
E veio o estalo, como uma caneta de tinta fresca percorrendo um papel incrivelmente branco, a descrição do ato do meu assassino preferido, que só podia ser o filho rejeitado da morta. Não consegui falar, súbito surgiu na televisão o rosto pálido do repórter:
– Informamos que por causa do temporal da noite anterior, o qual ocasionou o corte da eletricidade por toda a cidade, repetiremos hoje, no mesmo horário, o final da novela….
– Poxa, quem diria? Foi na cidade toda, mesmo. – Suspirou aliviado o tio José.
– Não conte quem é o assassino! – Disse a minha avó, o olhar fulminante, o dedo magro perto da minha testa.
Tio Gutemberg me olhou com desprezo, tia Adelaide passou as mãos nos meus cabelos, “meu rico filho”, disse e beijou-me a testa.
Foram embora em seguida e a dia custou a passar. À noite, em volta da televisão, assistimos ao final da novela.
Um suspiro de alívio me tomou, acertei quase tudo, cheguei a comemorar quando a moça doente se levantou da cama e beijou o antigo namorado.
A cena final, inesquecível, Virgínia beijou o Afonso e fim.
Mas e o assassino?
Tia Adelaide estava certa desde o começo da novela, Catarina, a sonsa, era a assassina e eu nem desconfiei.
Ao longe raios, trovões…
O Tempo voa nas asas do amigo Vento, espalha pelo ar o cheiro de nova tempestade, mas a Brisa chega antes e abraça o meu rosto…
E nos primeiros pingos da chuva, converso com os fantasmas da minha avó e seus dois irmãos: ouçam a estória que lhes conto, todo escritor é um mentiroso, mas creiam, apesar do Tempo, vocês ainda existem no sopro do Vento.
No final confesso meu eterno medo da tempestade e eles desconfiam, respondem ao mesmo tempo: “deve ser noite de céu estrelado lá fora…”

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