Estava com o rosto diante do espelho contando as rugas quando percebi algo quase invisível se movendo.
Encostei o rosto até bem perto do espelho e me dei conta que havia um longo fio de cabelo no lóbulo da minha orelha direita.
Puxei o danado, gritei de dor.
Com o rosto abrasado, fiquei me perguntando por quanto tempo ele estava ali, sem que eu percebesse.
Por segundos insanos pensei em fazer com aquele fio de cabelo o mesmo que fazia com o cigarro nos tempos de fumante: puxar papo, conversar diversos assuntos.
Puxei novamente, a dor recuou porque já não existia a surpresa e no instante seguinte me preparei para dar fim ao incomodo. Apanhei a tesoura e estiquei o fio até o fim, mas eis que reparando de perto, notei que o danado tinha um tom dourado.
Será que alguém vai acreditar que quando criança eu era loiro dos cabelos cacheados?
Talvez aquele risco dourado fosse o último remanescente dos meus tempos de cabelos cacheados e que tenha sobrevivido há mais de meio século.
Senti um inesperado apego por aquele fio de cabelo e até pensei em guardá-lo numa caixa de vidro.
Minha nossa, que louco é esse que guarda o fio de cabelo numa caixa de vidro?
Depois fiquei em dúvida se devia contar isso numa crônica.
Eis me aqui, decidido.
Devo declarar que desde muito moço sofro com a falta de cabelos.
Tenho cultivado ultimamente uma barba ralinha para disfarçar, que cuido com esmero, por vaidade e porque se tornou um motivo para eu ir a uma barbearia, costume que havia abandonado desde os anos noventa, quando os cabelos se foram e me tornei ligeiramente calvo.
Foi um tempo ruim, de repente, tudo despencou.
No começo, tentei disfarçar usando boné, mas não me acostumei, porque me pesava a cabeça e escondia os olhos.
Nunca entendi o sujeito que tem cabelos e usa boné.
Resolvi deixar para o outro dia o que fazer com o fio dourado. Quando acordei, corri para frente do espelho e procurei em vão o meu precioso fio dourado, mas notei apreensivo que só existia a maciez de sempre no lóbulo da minha orelha.
Será que durante o sonho puxei sem querer a ponta da orelha e o fio se soltou?
O que foi que sonhei, afinal?
Não me lembro de nada.
Mas recordei com riqueza de detalhes uma árvore imensa que existe bem à frente do colégio Dom Bosco, tão velha que deve ter visto de tudo, seus galhos secos insistem abraçar em tons cinza a cidade que engoliu o vilarejo, e lá no alto, bem no canto direito, num verde tão belo que emudece, despenca um fino galho de folhas verdes.
E me apeguei àquele galho verde para nunca mais, porque ele desperta a vitalidade, o conhecimento e toda a história que ainda pulsa na árvore antiga, talvez tal e qual o fio dourado, agora desaparecido na minha orelha.
Então pensei no amigo Marcos Estevão, que além de médico é poeta, psiquiatra dos bons, quem sabe numa boa conversa ele me indique algum remédio, ou apenas um bom gole de uísque, para por fim à falta que me faz aquele cabelo dourado, que sumiu sem se despedir, deixando esse inexplicável sentimento de vazio no lóbulo da minha orelha direita.