A necessidade é a mãe que gera todas as mudanças. Já mudei muitas vezes, inclusive de casa, de cidade, de Estado. Desenvolvi boas técnicas de organização: caixas setorizadas, com etiquetas, roupas nos cabides e os livros, parte mais difícil, separados por autores e assuntos num exercício da crítica literária. Confesso, chorei à noite, no meio de um mar de malas e pacotes, indagando-me sobre o destino. Perdi o controle, mas foi só um momento. Reconheço que a mudança é a lei da vida, em constante e rude evolução.
A rotina diária de uma pessoa culta e sensível deveria ser, simplesmente, alternar-se entre ler e escrever, escrever e não escrever. E nesse movimento haveria perdas e ganhos, silêncio e atividade, nascimento e morte. Mas a todo tempo, há a interrupção de algo a ser feito nessa realidade física, doméstica, urbana, caótica, contaminada, que nos rodeia.
Meu coração é cheio de espanto: cada projeto, cada alteração de rota, cada aurora, cada adversidade me deixam perplexa. Estou aberta. Sigo os passos daquele que se colocou como a verdade, o caminho e disse que podíamos, a qualquer momento, renovar a mente, reconstruir, restaurar até cacos de vasos de barro partidos. A maior força é mudar de vida. Assombra-me acordar com a possibilidade de viver um novo dia. Make it new, diria o poeta Ezra Pound. A poesia é apenas um modo de ver, um olhar inaugural e hesitante sobre todas as coisas.
No fundo, tenho sonhode mudar sempre. De estar junto, totalmente entregue a pessoas e afazeres e, de repente, deleitar-me com o fato de que ninguém mais ouvirá falar de mim. Como um desaparecimento súbito. Uma passagem para outra dimensão, para outra situação, para o outro lado da porta. Adaptar-me como uma camaleoa às cidades, às luzes, às folhas das árvores à minha volta. Nesse processo de mimese, conservar minha essência, mas trocar as cores, as capas, as peles, as estações. Sobreviver a tudo de ruim, íntegra como uma pedra que rola.
Houve mudanças que não foram escolhas, nem dependeram de meu livre-arbítrio. Foram imposições, algumas trágicas. Custaram meu sangue, estraçalharam minhas entranhas, mas foi aí que mais alimentei meu espírito. Vaguei por entre nuvens. Invencível porque concebi um poema.
Mudanças lindas e dolorosas. Na impermanência atravessei pontes, arco-íris, entrei e saí pelos salões onde havia festas e onde havia luto. Quiseram me tirar tudo, principalmente a vontade de mudar as circunstâncias, mas as coisas que fiz, os meus esforços, os meus começos e recomeços foram marcados pelo amor.
Abafei a ânsia de largar tudo. Agora, quero ser capaz de fazer pequenas mudanças na marcha cotidiana. Os rumos, a direção, deixei para o timoneiro, que leva o barco entre abrolhos e tempestades, mas, experiente, sabe onde brilha o farol. Arrisquei, caí, levantei, quis mudar o mundo, não consegui. Mudei minhas prioridades e elas cabem num único copo, numa única rosa, numa única página. Cabem no silêncio desta hora.
Creio na máxima de Heráclito quando afirma que “Tudo muda, menos a mudança”. Que não entramos no mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece, já não se é o mesmo, assim como as águas já serão outras. Mergulhei em águas profundas, perigosas. O campo verde onde deitei meus desejos foi lambido por um fogo que consumiu e transformou tudo em cinza, em brotos, em renovo.
Ouço a voz de Camões: “Mudam-se os tempos,/Mudam as vontades/ Muda-se o ser/ Muda a confiança/ Todo mundo é composto de mudança.” Como o poeta, do mal, apaguei as mágoas da lembrança. Arranquei as raízes da amargura. Do bem, sinto saudades. A esta altura, o bem e o mal me parecem iguais. Mudo como nunca mudei antes!
Breve virá o caminhão e recolherá as caixas, malas e pacotes. Secou o choro da noite. Estou com uma aparência meio louca, minha antiga formosura alterou-se em desmaio. De repente, sorri, dei a mão mais uma vez para o futuro. Meu riso provocou mudança.
Autor: Raquel Naveira