O dia vai terminando, quente em pleno inverno. Campo Grande é assim, ou faz muito frio ou calor, sem se importar com a estação vigente. E lá vou eu, de tênis, camiseta e munido de uma enorme força de vontade que desconhecia existir em mim.
Preciso queimar calorias, simplesmente detesto academias de musculação e nunca na vida ergui pesos. Andar é muito mais prazeroso, guarda surpresas, apresenta rostos. De repente, imagino que a figura à minha frente é um antigo amigo, o mesmo jeito de andar, o olhar murcho para o chão, quase chamei pelo nome, nome que esqueci, ainda bem, porque não era o antigo amigo, embora muito parecido fisicamente, talvez um filho, ou parente.
Um pássaro de voo torto risca o céu enquanto contemplo seu desajeitado jeito de voar. Tenho a mania de olhar pra cima, busco nuvens com formas de gente, animal ou árvore. E lá estava o pássaro desajeitado, que some rapidamente no horizonte. Era um animal solitário, por conta disso, tive pena dele.
Passo perto da antiga rodoviária e a tristeza me invade ao constatar o completo abandono daquele lugar que já foi tão bonito. Mais à frente, na calçada esquerda da rua, existe uma capela repleta de oferendas. O túmulo guarda os restos mortais de uma menina: Santa Carminha, me diz um homem velho de chapéu de palha e paletó. Um calor danado e ele usando paletó. Conta que a menina morreu estuprada pelo padrinho, isso há muitos anos atrás, e o povo a fez milagreira, tornando-a santa à revelia da igreja. Pobre menina, pensei com meus botões. Quando quis saber mais detalhes, assim como surgiu, o homem desapareceu num piscar de olhos. Será que vi um fantasma?
Dei a volta no quarteirão e retornei rumo ao horto florestal, até chegar ao cruzamento do Prosa e o Segredo, o encontro dos dois córregos que deram origem à minha cidade. Conto um segredo ao primeiro e ouço do outro uma prosa, algo ligeiro, que termina assim: “a cidade cresceu e nem percebemos”. Um sujeito cheirando álcool pede uma moeda e lhe dou uma nota de dois reais. Preciso me lembrar de levar umas moedas quando for sair.Prossigo caminhando, faço um contorno à esquerda, vou para o centro da cidade, pela Avenida Calógeras, até chegar ao monumento erguido na confluência com a Afonso Pena.
O relógio é um insulto. Primeiro mudaram-no de lugar, depois arrancaram os ponteiros e, por fim, o próprio relógio, restando uma coluna comprida de concreto que para nada serve. De novo me pego olhando para cima, agora tento enxergar o topo de um prédio qualquer, que é pra ver se alguém lá em cima olha para baixo. Já caminhei bastante e resolvo voltar para casa, mas não volto sozinho, levo comigo um poema do Mário Quintana na cabeça: “Antes, todos os caminhos iam, agora todos os caminhos vêm” e não tenho sede, nem sinto dor na panturrilha. Mais tarde, fiquei olhando o par de tênis jogado num canto do quarto. Amanhã tudo retorna e já penso em outros caminhos.