O personagem que apresento nessa crônica parece ter saído de um conto fantástico, um desses seres mitológicos que povoam nossa mente e nos fazem viajar no seu mundo. Poeta, prosador, carnavalesco, é do tipo que basta uma única conversa, pra nunca mais dele se esquecer. Vai completar um ano, foi no dia 6 de abril de 2013, lançamento do meu romance “O Santo de cicatriz” na morada dos Baís, quando percebi na fila de autógrafos um senhor que se aproximava.
Vinha sem pressa, os olhos de um azul infinito, os passos quietos, numa quietude própria dele, que tenta esconder o menino que ainda existe dentro daquele corpo magro, o rosto de pura bondade que ficou gravado em minha retina para sempre. Enfrentavaproblemas de saúde, ainda assim, generoso ao extremo, fez questão de comparecer para me cumprimentar. Naquele momento não pude expressar o meu contentamento, falar da admiração indissolúvel, o sentimento de aprendiz diante do erudito, o poeta que leio já desembalando minhas asas, pronto para voar em seus belos textos.
Semana passada o revi no bloco da Valu esbanjando alegria, lépido carnavalesco, o samba que corre nas veias de sangue fenício e ressurgem em forma dos diversos enredos que compôs: um moço guiando a velhice tranqüila, a alma estóica em seu harém imaginário, repleto de imagens abstratas que ele cria como um pássaro voando em busca da essência da sua mágica escrita.
E voltei em pensamento ao primeiro encontro, quando passava às suas mãos a história que criei e um leve receio tomou conta de mim, o medo infantil de que não aprovasse meu texto, afinal, estava diante de um escritor completo, enciclopédia ambulante, que conhece todas as ruas, cinemas e teatros de antes, que não sobreviveram ao crescimento da cidade, mas que resistem guardadas em sua memória; um campo-grandense que é a própria história da cidade, a nossa cidade, que ele descreve com tanto carinho e empenho, como se passasse a vida eternamente dentro de um ônibus, vendo lá fora a cidade se transformar, indo e vindo do passado ao presente, com um leve olhar para o futuro. Dono de memória espantosa, sem se deixar levar pela melancolia, é capaz de lembrar fatos do passado com riquezas de detalhes, a lembrança casada com a imaginação, findando em sonhos saborosos de uma Campo Grande que não existe mais.
É nos seus olhos azuis profundos que enxergo o mundo que aqui existiu, como se estivesse ao lado dele naquele ônibus, ele na janela, eu no corredor, bloco de anotações nas mãos, atento a cada palavra. E o abraço fraternal enquanto peço encarecidamente: conte mais querido Edson Contar, fale dos seus sonhos de menino, seus versos intangíveis, do caminho leve que enxerga através da janela da vida.
**Crônica publicada no jornal Correio do Estado de 20/03/2014.