Vinte e três e trinta e dois.

Mariposas e borboletas sobrevoam o meu pensamento.

Tô com fome, mas tenho preguiça.

A geladeira está lá embaixo, eu aqui em cima.

Estou com sede e não tenho sono, só preguiça.

Mas sei, se  beber muito líquido, acordarei de madrugada para ir ao banheiro e não conseguirei dormir novamente.

E esse filme não acaba. Bobinho, juvenil, acho até que já sei o final.

A fome aumenta, mas acho agora que não sei o final do filme. Ou é só preguiça de levantar.

No gaveteiro ao lado repousa a solução do problema, mas não quero ser escravo de remédios.

Ajeito o corpo na cama, os olhos bem abertos, a meia noite se aproxima…A porta entreaberta do banheiro me chama. Onde está o meu chinelo? O filme acabou e não gostei do final.

A fome dormiu antes de mim.

Tão bom ter banheiro dentro do quarto. Nos tempos de antes, o banheiro ficava lá fora, bem distante, protegido pelos uivos dos cachorros. Ou seriam lobos?

Não vou me levantar, o banheiro não vai sair do lugar, amanhã cedo não demora depois que eu dormir. Mas dormir é tão…Nem sei o que dizer.

Seria muito melhor se a gente não precisasse dormir, sobraria tempo para ver mais filmes e escrever.

Achei uma boa posição na cama, é de lateral, virado para a esquerda, um travesseiro na cabeça, outro nos braços e um terceiro enfiado nas pernas.

Uma certeza me assola: sim, conseguirei dormir sem tomar remédio, deixa o bicho quieto no gaveteiro. Será?…

O sono está vindo…Ou não…Quem sabe se eu virar para o lado direito?

Começou outro filme e ainda não dormi.

Tem uma mariposa grudada na parede, certamente escapou dos meus pensamentos. Ela vai ver só uma coisa, assim que eu criar coragem e encontrar o meu chinelo.  

Bicho feio, parece um morcego.

O travesseiro na perna caiu no chão, mais tarde resolvo se pego de volta ou não.

Endireito o corpo, de lado tudo fica mais difícil. Mais tarde já é amanhã. Preciso dormir antes da meia noite.

E se eu esquecer de matar a mariposa amanhã? Dizem que dá azar. Cadê o meu chinelo? Não, não, amanhã resolvo isso.

Eu sei a diferença entre mariposa e borboleta: mariposas são noturnas, borboletas gostam de voar de dia. Borboletas deixam as asas na posição vertical, as das mariposas ficam abertas. Bichos estranhos, até ontem eram lagartas e taturanas. Será que a metamorfose é por falta de sono? As lagartas não conseguem dormir e resolvem se modificar por completo. Não é interessante essa ideia? Não durmo, vou criar asas. Seria divino. Metamorfoses me causam medo sempre e no fundo mariposas e borboletas não passam de insetos. Não gosto, prefiro as cigarras, ao menos elas não se modificam e  cantam ao final do dia.

A taturana, após a metamorfose, vira o quê? Mariposa ou borboleta?

Tive um sonho esquisito, breve, eu era o tronco seco de uma árvore e uma borboleta resolveu pousar e cantar feito cigarra, se mexeu, porque descobriu que não sabe cantar e no chacoalho esparramou bastante pó das asas. Aí eu espirrei, assustei a borboleta e acordei.

Encaro as horas e um pequeno desespero me abate, amanhã preciso acordar às sete. Logo já é amanhã. Preciso dormir.

A mariposa na parede…Olhando melhor, é apenas um desenho feito pela sombra da cortina. Os antigos diziam que o pó das asas das borboletas cegam. Será? O pó das asas da mariposa certeza que é veneno, se não cega, faz vomitar.

No filme o avião caiu no gelo e os caras estão comendo carne humana. A visão disso me embrulha o estômago.

A casa dorme, ouço roncos, menos o meu.

Toco de leve a gaveta do gaveteiro e me detenho no momento que sinto o frio da embalagem do remédio percorrer os meus dedos. Hoje não, talvez nunca mais, não sou escravo de remédios, não posso …

Borboleta só é bonita quando pousa nas flores e só serve se for amarela. Culpa do Rubem Braga.

Outro sono breve, daquele de babar no canto da boca, um tanto pesado, estava tentando escapar de dentro de uma crisálida. Tentei, tentei e tentei, até conseguir escapar, com um chute certeiro abri os gravetos, na verdade joguei o travesseiro longe e suspirei lívido e sem asas. Acordado, ainda!

Tudo bem, eu sempre tive medo de voar.

Há um resto de comida na geladeira, mas comer uma hora dessas? Certeza que faz mal e aumenta a insônia.

Insônia é uma mulher belíssima, olhar oblíquo, nua e sem destino.

Uma avalanche enterra os sobreviventes do desastre nos Andes e o barulho apaga o início de outro breve cochilo.

Desligar a tevê é preciso. Cadê o controle remoto? Esse treco sempre desaparece. Vou deixar ligada, tem timer, após a meia noite desliga sozinha.

Pensando bem, gosto de outras borboletas, aquelas azuis do poeta Cassemiro, como é mesmo a rima?  “Oh! que saudades que tenho, da aurora da minha vida, da minha infância querida”…

Poesia não me apanha facilmente, algumas me aborrecem, talvez porque eu não saiba escrever poesia.

A infância de todo mundo é boa, feliz, repleta de sininhos e gente que já morreu. Sinto saudades de tudo de antes, até mesmo de quando eu conseguia dormir facilmente, era só me deitar e olhar o telhado, já tinha decorado o nome e o endereço da cerâmica: Três Barras ou Santa Maria, na sequencia estava escrito o endereço, mas eu dormia antes de concluir a leitura. Ler sempre me ajudou a dormir e…É isso!  Vou ler e trazer o sono, na luz fraca da bateria do celular, para não acordar quem dorme, um daqueles livros que comecei e parei de ler, deixa eu ver no gaveteiro…Ah, sim, Macunaíma…”A índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma”…Ah, uma rapsódia, eu não devia ter escolhido esse livro, ao invés de me causar sono, vai me despertar de vez. Amanhã penso num outro livro.

Tenho sede…alguns bocejos trazem um resto de sono, será que pó de borboleta misturada com mariposa causam sono? Onde está o meu chinelo?

Zolpidem…

Não, hoje não.

Olhando de perto, borboleta é um bicho muito feio, só o par de asas é bonito. Nunca tive coragem de olhar a mariposa de perto, certamente é bicho mais feio que a borboleta.

A tevê se apaga, tudo escurece de vez, somente meus olhos mantém resquícios de luz. Preciso dormir. Tenho sede. Tenho fome. Tenho um gaveteiro ao meu alcance. Estou muito velho para contar carneirinhos pulando cerca. Cerca, cercado, cerrado, rimas, borboletas e mariposas voam novamente por cima de mim e vão pousando devagar, devagar…

Só o cansaço impede o meu desejo de voar.

Não sei de mais nada, estou sem forças para lutar.

Um toque, a boca sedenta engolindo a seco.

Tudo escurece, flashes de uma crisálida presa ao talo de uma flor, me prende, mas logo sou liberto, exatamente quando  a claridade do novo dia chega aos meus olhos.

Sete horas em ponto.

Então me ajeito, encontro o chinelo e me contorço num bocejo imenso. Levanto-me e vou ao banheiro, de passada faço o olhar de soslaio, até o reflexo do envelope de remédio pra dormir, completamente rasgado, ainda deitado sobre o gaveteiro.

André Alvez

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