No final da tarde, da varanda de casa, contemplo o céu.
Simone de Beauvoir certa vez afirmou: “O inconsciente não tem idade”.
Penso nessa frase enquanto ergo o nariz para cima e tento sugar na brisa gelada todos os cheiros da natureza.
Minhas vistas se embriagam, vejo várias pandorgas singrando os céus.
Eu nunca soube fazer pandorgas, por receio da eficiência alheia e também porque os moleques mais velhos não permitiam.
Gostava da eufonia provocada pela rabiola de plásticos coloridos enquanto a linha era esticada: o gemido da vida ganhando forma num brinquedo colorido.
Aquele barulho da subida aos céus ainda navega na minha mente.
Ficava então rodeando a brincadeira, até que alguém me permitia apanhar a latinha envolta em linhas banhadas de cerol e meu coração pulsava acelerado: agora, a pandorga, presa a uma tênue rede de linha, dependia da firmeza da minha mão. Era como se a vida pulsasse no céu.
No anseio do momento, muitas vezes os dedos sangravam, mas eu nem ligava, eu era criança, ah, eu era uma criança soltando pandorgas…
O tempo malvado passou e de repente sou esse senhor de cinqüenta anos, com dores no joelho e nas juntas do corpo, sem nenhuma linha nas mãos para puxar.
Quanto tempo ainda me resta para ficar na varanda de casa observando as pandorgas?
Há certa gravidade naquele cheiro no ar, porque o conheço tem um bom tempo, desde quando eu era criança.
O cheiro é o mesmo, já eu, abismado, não enxergo os rumos do vento.
E dano a riscar na cabeça vãs filosofias: tal e qual a pandorga, nossa vida é segura por um fio.
Às vezes o cerol inimigo corta a linha, outras vezes a linha se rompe e a impressão é de uma quilha cortando a onda fina do rio; basta um sopro mais forte do vento para a pandorga se soltar, devagarzinho, bailando no ar, até sumir no infinito.
Súbito, uma pandorga caiu estraçalhada nos fundos do quintal.
“O inconsciente não tem idade”, quando dei por mim, já estava com ela nas mãos.
Alguns ajustes e ela voa novamente – pensei num sorriso -.
Chamei o meu filho para brincar de soltar pandorga, a custos o tirei do computador. “O nome disso é pipa, pai!” ele disse, enquanto observava eu agachar com dificuldade, ajeitar as tiras do bambu e colar cuidadosamente o papel de seda, reclamando das vistas cansadas, com o dedo indicador pregando mais fundo os óculos no rosto.
Para mim sempre será pandorga.
Dias atrás, após uma inesperada crise de labirintite, o susto foi tão grande que pensei no fim da linha. Dominado pela tontura, vi de perto o pior, imaginei repousar no lugar dos esquecidos, prendi as mãos nas paredes, como antes as prendia com firmeza entre a linha que segurava a pandorga.
Por momentos me deixei levar pelo medo de morrer amanhã, mas hoje já é amanhã e prossigo tão vivo bem mais do que antes.
A tortura mandei embora e armei no rosto um sorriso de criança ao perceber que posso olhar para o céu, rever as pandorgas e cheirar o vento sem sentir tontura.
Enquanto as pandorgas singram os céus, cá embaixo eu cuido da vida, pedindo para o tempo passar devagar, na busca por aquele cheiro bom de antes e que ainda sopra no vento que envolve a varanda da minha casa.