O confinado – Parte 1

De todas as coisas que aprendi na vida, carrego apenas a certeza que muita gente morre em São Paulo, todos os dias.

Hoje, dezesseis de fevereiro do ano de 1992, cumpro mais um dia de minhas obrigações como auxiliar de enfermagem dohospital Albert Einsteinem São Paulo. Trabalho no setor que dá acesso ao necrotério, sou um dos encarregados de carregar a maca com os defuntos. Às vezes me confundo com o movimento, parece que estamos em plena rua, tamanho o congestionamento.

Percorro o corredor estreito e extenso sem dar chancespara incômodos. Faço que não escuto o ranger das rodas, velhas e desencaixadas que produzem ruídos histriônicos e finjo que não me incomodo com as lâmpadas no teto, todas com mau contato, falhando simultaneamente num sem cessar de tentativas de acender, dificultando o caminho. Quando as luzes conseguem funcionar, refletem o rosto do homem morto que carrego. Repito: Morre-se muito na grandemetrópole. Mas o morto que nesse instante carrego, é especial, meu conhecido de tempos distantes, singular criatura. Impressionante coincidência. Enquanto as rodas da maca riscam o piso liso do corredor fazendo ruído, contemplo o rosto do morto e deixo a memória me levar até o exato instante no passado no qual tive com ele o primeiro contato. Retorno ao primeiro dia do mês de agosto do ano de 1968, na minha terra querida, a Corumbá de tantos acalentos. Na época eu era um jovem de vinte anos que sobrevivia a custas de biscates. Eu sabia dirigir automóvel, aprendi no exército, e era ótimo pescador, conhecia todos os segredos do rio Paraguai. Mas o que eu queria mesmo era trabalhar em hotel, de preferência no Santa Mônica, o maior e mais chique da cidade. Vivia atormentando o Antenor que era chefe administrativo do lugar. Ele já ia perdendo a paciência com minhas insistências quando a oportunidade se apresentou. Recordo o grande rebuliço que tomou conta da cidade com a chegada do visitante ilustre. O confinado se mostrou humilde no primeiro instante, após passada a ira que o acometeu na chegada ao aeroporto. Os homens de farda o largaram, junto da esposa, aguardando ordens em pé, sob o calor inclemente de Corumbá, por longos minutos. Não pretendia nenhum privilégio, embora poucos anos antes fosse o cidadão mais importante da nação e chefe supremo daqueles que agora o humilhavam de forma sobeja e autoritária. Não pretendia deferências, apenas que agissem como cavalheiros com sua esposa, que nada tinha a ver com o assunto, era apenas uma vítima acuada e silenciosa dos atos impulsivos do marido. Arrefeceu seu desgosto quando por fim adentrou o centro da cidade. Era o povo, sua gente, que agora o saldava. Diversos acenos, respondido sem risos, que não eram próprios dele, apenas breves acenos com as mãos, no rosto magro emoldurado um frágil ar de satisfação por perceber que, ao menos a gente da terra em que nasceu, não o havia abandonado. Ao seu lado a esposa inquieta, não escondia o profundo aborrecimento.

Segui a multidão até a entrada do hotelSanta Mônica. O exército inteiro parecia estar no quarteirão impedindo que o povo se aproximasse. Subi numa pilha de tijolos na lateral da calçada e vi o homem indo desaparecer dentro do hotel. De repente, num último passo, virou-se num olhar na minha exata direção e fez breve aceno o qual respondi na mesma proporção. Alguns comentaram que ele me cumprimentou diretamente, outros discordaram alegando que o gesto foi aleatório. Tenho comigo e vou levar até a morte que ele me distinguiu sim entre os demais, talvez pressentindo que os acontecimentos dos próximos dias nos uniriam de forma concreta, inesquecível.

Creio não ter sido por acaso que custei a dormir na noite anterior a nosso primeiro encontro. Senti a alma tensa e não sabia o motivo. Quando as luzes do sol adentraram meu quarto eu já estava vestido e pronto para mais um dia sem saber o que fazer. Tomei um café forte, requentado do dia anterior, com pão duro de semanas que mergulhei no copo e ele se espatifou por completo. Era meu último alimento. Não havia mais nada e nem dinheiro pra comprar. Timidamente me aproximei do trinco da porta no mesmo instante que alguém nela batia. Para minha surpresa era o Antenor. Sem rodeios, explicou que estava ali disposto a me contratar para ser, temporariamente, uma espécie de secretário, um faz de tudo, do visitante ilustre. Nem prestei atenção quando discorreu sobre o salário, pouco me importava, o sorriso que de meu rosto escapou tinha a ver com duas coisas: Ter algo pra fazer e, principalmente, com quem fazer. Antenor exigiu que eu trocasse de roupa, vestisse algo mais apresentável, vestimenta que, aliás, eu não possuía, mas que ele, já disso sabendo, me trouxe do hotel. Era uniforme completo: camiseta branca, calça e terno bordô. Fiz que não sentia os jarros de suor assim que a vestimenta colou em meu corpo, fruto do calor de Corumbá naquela manhã. Antenor sorriu satisfeito quando passou para minhas mãos o quepe negro que completava o uniforme. Sorri de leve apressando os passos. O que eu queria era começar o serviço o quanto antes. Em menos de dez minutos eu estava de frente a ele. Os cabelos desalinhados, os olhos ligeiramente estrábicos, a sobrancelha direita dando impressão de possuir vida, subia e descia pela testa. A barba por fazer e o desleixo no vestir, se confundiam com o aspecto austero e imperial que compunha a figura do homem à minha frente. Mirei os olhos numa vassoura pousada num canto da parede e meus lábios se abriram num riso incontido. Era muita coincidência. Vassoura, vassourinha! Pensei enquanto tentava mudar de atitude:

“Senhor presidente!” Falei em reverência. Ele fitou meus olhos na intenção de escrutar minha alma. “Sua fala sempre foi mansa?” perguntou e fiquei sem saber o que responder. Minha voz estava modificada pela presença dele, mas não era muito diferente. Ele prosseguiu: “Nunca gostei de gente de fala mansa. São os mais perigosos…” Pigarreei e depois tentei falar com outra voz: “Desculpe, a mansidão é por respeito”, ele sorriu do meu jeito sem graça. “Vamos indo, temos muito o que fazer”. Lá fora uma multidão o aguardava. Entramos na garagem à força e fomos direto até a camionete C 14, melhor carro do hotel. Ele sentou-se e passou a acenar para a multidão, sem abrir os vidros da porta. O calor dentro do veículo estava insuportável. Ele notou e ordenou que eu tirasse o paletó. Agradeci num humilde olhar e recebi um quase impercebível sorriso como resposta. Conduzi o ilustre passageiro, sem destino fixo, pelas ruas de Corumbá. O presidente ordenava o caminho, “Vire aqui, passe por ali, retorne àquela alameda”. Não sei se ele limpava os óculos ou estava chorando. Talvez o ar bucólico da cidade o remeteu  à mais tenra infância. Era então um menino livre que sonhava voar. Não esperava que o vôo fosse tenso, incompleto, desastroso. Por mais de duas horas passeamos pela cidade. Depois uma ordem austera, sem elevação no tom da voz: “Vamos voltar”. Que obedeci num majestoso silêncio. Ao sair do carro, nenhuma palavra, nem menos um aceno, mas deixou em meu colo um bilhete que dizia: “Aproveite a tarde livre. Pegue-me amanhã às quatro da manhã. Vamos pescar”.

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