O FANTASMA PERTURBADO

João Albino era um sujeito grosso.  Arrotava em público, coçava o saco, cuspia. Achava que aquelas atitudes eram próprias do macho que se considerava.  Só temia a justiça divina. O pastor lhe havia garantido que aquele que aceita a palavra, tinha lugar guardado no céu. E ele não só aceitava a palavra, como fazia questão de divulgá-la, insistindo converter quem relutavam à ideia. Em pouco tempo se transformou num líder que planejava ataques a outras religiões, especialmente aos adeptos da umbanda e candomblé, que viram seus templos incendiados e alguns membros atacados ferozmente por vultos encapuzados.

João Albino acreditava que família era exclusivamente formada pelo homem, a mulher e os filhos. Casado com Justina tinha com ela quatro filhos.  

Pensava numa forma de castigar uns guris afeminados que viviam por perto, na certeza que estavam dominados pelo demônio. “Gay tem que apanhar até morrer!”, garantia a todos, obtendo a concordância de alguns e o desprezo de outros.

Contudo, João Albino acabou enfeitiçado por uma paixão de adolescente, fulminado por Cecília, moça fogosa e voluptuosa que fazia na cama coisas que Teresa sequer admitia existir.  Era uma morena assanhada, da bunda enorme, os peitos escapando pela blusa fina e a boca carnuda que prometia delírios. Usava roupas provocantes e garantia que todas as suas calcinhas eram vermelhas. João enlouqueceu. Sempre foi fascinado por calcinhas vermelhas. Desde o primeiro encontro se amaram de todas as formas, sempre no final do expediente, apressados, porque Justina não aceitava que o marido demorasse em chegar a casa.

Encantado com a destreza de Cecília na cama e hipnotizado pelas calcinhas vermelhas, João não admitia o pecado, apenas um pequeno deslize, que uma simples oração apagava.

Havia buscado distância da irmã Romena, que desde pequena tinha visões de gente morta e insistia prosseguir naquilo que ele considerava o maior dos pecados: “é o diabo que ela vê”, afirmava a todos, enquanto balançava a cabeça em forma de lamento.

Numa tarde de domingo, a pretexto de participar de um culto exclusivo aos homens, caiu no colo de Cecília num hotel vagabundo perto da antiga rodoviária.

“Fizeram tanta sujeira, se lambuzaram a noite inteira”… E caíram num sono profundo.

Quando acordou, João Albino percebeu que o dia invadia o quarto e bateu o desespero, já formulando na cabeça o que diria à esposa, qual a justificativa que caberia a ausência de uma noite inteira. Na pressa, encontrou a cueca ensopada da sujeira da noite anterior, só de tocá-la, ficou com os dedos grudados. Num torpor, apanhou no chão a calcinha vermelha de Cecília que com esforço fez caber na cintura.  Saiu sem se despedir, deixando o corpo nu da amante estirado na cama. Na pressa e com os pensamentos perdidos em busca de desculpas, não percebeu que no boteco da esquina acontecia um tumulto. Dois bêbados brigavam por causa do jogo de sinuca. Um deles estava armado e atirou. A bala passou raspando a cabeça do oponente e atingiu o peito de João na outra calçada.  João tombou de bruços, deixando aparecer na bunda cabeluda a calcinha vermelha. Alguém gritou: “conheço esse homem. Ele é da minha igreja”. Um mendigo cuspiu antes de afirmar: “Pode ser da sua igreja, mas não é homem, está usando uma calcinha vermelha”. Naquele mesmo instante o espírito de João abandonava o corpo. E quanto mais pessoas juntavam em volta, aumentavam os comentários. “ quem diria, tão dado a machão, dava a bunda na rodoviária”, “nossa, ainda ontem vi ele muito vivo, chutando um travesti”, “é o irmão daquela feiticeira que vê fantasmas”, “ conheço a mulher dele, dona Justina, uma santa”.

 O fantasma de João voou entre as cabeças, gritando desesperado, para ninguém ouvir. Quando a polícia chegou, a multidão se dissipou, mas os comentários maldosos continuaram, agora através dos policiais: “quem é que come uma bunda cabeluda dessa?” inquiriu o cabo, “pensei que já tinha visto de tudo nessa vida…” acrescentou o soldado, “credo, a calcinha tá cheirando a porra”, finalizou o sargento.

No velório, ninguém da igreja, quase nenhum choro, poucos lamentos.

Romena, a irmã do defunto, tentava convencer a todos da macheza do irmão. Dizia que naquele momento conversava com o espírito de João Albino, garantindo, num tom triste de voz, que ele por ali estava atormentado muito mais pela vergonha que com a própria morte.

Enquanto a dita feiticeira tentava explicar o uso da calcinha, lhe deram as costas.

Recordavam com riqueza de detalhes as antigas afirmações do falecido e concluíram que tudo o que Romena estava afirmando, não passava de mais uma zombaria do capeta.

Já faz um bom tempo dessa tragédia e até hoje Romena segue tentando consolar o fantasma perturbado do irmão.

No túmulo de João Albino, resta pendendo uma calcinha vermelha, soprada pelo vento, última homenagem que lhe prestou Cecília, como símbolo do segredo que não podia revelar.

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