A cigana leu o meu destino

No testamento da Madame de Pompadour está escrito: “Deem seiscentas libras para a Madame Lebon, por ter-me dito, quando tinha nove anos de idade, que um dia eu seria amante de Luis XV.”

Outros relatos assim estão espalhados pela história.

Mas será que alguns seres humanos conseguem mesmo enxergar o futuro?

Quem nunca teve uma experiência de adivinhação?

Eu devia ter quatorze anos e era domingo.

Juntei dinheiro a semana toda pra comprar uma coca-cola no empório que ficava no fim do caminho entre a minha casa e um acampamento de ciganos.

Eu tinha medo de ciganos.

Falavam que eles tinham trato com o demônio.

Sempre tive medo do demônio.

A minha cabeça estava em outras bandas quando dei de frente com o rosto mais lindo que tinha visto até então.

Pensei mudar de lado de calçada, mas fui fisgado por aquele olhar um tanto obliquo.

Eu era jovem demais, indefeso demais, bobo demais.

Quando dei por mim, já estava diante daqueles cabelos louros que caiam a todo instante pela testa e que tentavam, em vão, esconder o belo par de olhos verdes, tão intensos que jamais revi outro igual.

“venha, deixe-me ler a sua mão.”

Tinha voz de adulta e era uma menina cigana, mistura de anjo, demônio e sereia.

Alisou minhas mãos por alguns momentos e naquela idade tudo o que eu conseguia imaginar era nós dois correndo numa campina, eu atrás dela, que gritava de alegria tentando escapar, de mim e da chuva que desabou, molhando seus cabelos, tornando-a ainda mais bela, sonho bom que durou pouco, encerrado num puxão de braços que ela me deu e que me obrigou a levantar minhas vistas dando de encontro com seu rosto de pedra.

Garoto é mesmo bicho bobo, obedeci a tudo, calado, tentando conter um risinho de canto de boca.

Ela tinha o olhar tão gelado que logo desarmou minhas intenções.

Iniciou a visão do futuro arregalando os enormes olhos verdes até um lugar que só ela enxergava e que ficava logo atrás de mim, a voz foi saindo trêmula e os olhos mantidos fixos no mesmo lugar, como se encarasse a caverna de Platão:

“você vai se casar com uma amiga de infância, terão quatro filhos, duas meninas, dois meninos, vai se mudar de cidade e terás um escritório”.

Só acertou que eu teria um escritório.

E como com tudo eu concordava, limpou com as costas da mão o fio de suor que lhe escorreu na testa, limpando as sardas, banhando os cabelos louros, fazendo com que seus olhos invadissem de vez os meus:

“agora coloque um dinheiro na minha mão e feche os olhos”.

Na perdição do encantamento, coloquei todo o dinheiro que tinha, poucos antes que uma inquietante pergunta me percorresse de forma arrasadora: havia outro ditado sobre os ciganos, algo ainda mais tolo, dizia que eles costumavam raptar crianças e jovens e os transformar em escravos, e aquele pensamento terrível me dominou por completo, fazendo surgir em todo o meu corpo a sudorese incontrolável que foi tomando conta de mim.

No desespero do momento eu quis correr.

Ela percebeu e, apressada, danou a prever um monte de coisas boas, jogando-me no colo as riquezas do mundo, que hoje, recordar me causa riso.

Fui embora avisado que morreria bem velhinho e que não me preocupasse com dinheiro, que viria naturalmente no futuro, aos montes.

Acreditei tanto que só depois de horas fui me lembrar do dinheiro que deixei nas mãos da menina cigana.

Era tudo o que eu tinha e sequer comprei a coca cola.

Eu era (e ainda sou) viciado em coca cola.

Pensei voltar pelo mesmo caminho para lhe pedir um troco e que me cobrasse o resto no futuro, quando, afinal, segundo ela, eu teria dinheiro sobrando.

Faltou coragem.

No fim do terceiro dia os ciganos se foram e o que me restou foi aquele rosto lindo, sem retoques, que hoje, mesmo com o passar dos anos, lembro-me de cada detalhe, até mesmo das sardas.

Nunca mais tentei saber sobre o futuro, nem mesmo nessa fase de tempo, que um novo ano se inicia.

Sigo acreditando no concreto, carregado pela forte impressão que somos embalados pelos movimentos do destino, desfilando pela estrada do futuro, que é reta e lisa às vezes, esburacadas noutros momentos, cortada por diversas esquinas e transversais.

Ou talvez o caminho seja um rio, no qual navegamos em águas turbulentas, que logo se transformam em trechos mansos e é preciso desviar das cachoeiras e evitar os rebojos.

Se não estivesse cansado de tanto filosofar, terminaria por dizer que o timoneiro desse navio obedece ao nosso comando e, portanto, tudo se resume à dependência de nossas escolhas e atitudes.

Enfim, somos nós que escrevemos o nosso futuro, que muitas vezes passa pelo imponderável, dessas coisas invisíveis que nenhum vidente jamais conseguirá enxergar.

E um átimo de pensamento me ocorre, junto com a vontade louca de beber coca cola: será que aquela cigana ainda está por ai a agarrar num puxão os braços de garotos desavisados?

Será que se lembra de mim, ou já é muito tarde pra reclamar o meu troco?…

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