Neide e a canção
De longe percebi que o Chico estava contente. Sentado de lado, na cadeira de centro do balcão do bar, ele me aguardava ansioso. Peço um conhaque enquanto o Chico vira de vez o resto da cerveja do copo. E ri, satisfeito.
Chico e eu temos a mesma idade. Crescemos juntos, morávamos perto, bairros vizinhos, ele no Caiçara e eu no Taveirópolis, estudamos na mesma classe do Colégio Osvaldo Cruz, temos boa memória e gostamos de coisas parecidas. Mas somos completamente diferentes no modo de pensar e agir. Chico é mais direto, sabe o que quer, luta por isso. E eu… Prefiro sonhar. A amizade de longa data nos faz perceber o que o outro está pensando, bastando para isso um simples olhar.
– Lembra da Neide?
Os olhos do Chico sempre brilham quando fala da Neide. Ele era apaixonado por ela. Eu também, mas nunca confessei, só sonhei.
– Claro que sim… Não vai me dizer que ela morreu!
Ele fez cara de espanto antes de responder.
– Você só pensa em morte!
– Ah, vai saber. Pessoas na nossa idade estão indo aos montes; diabetes, infarto, câncer…
– Vira essa boca pra lá! A Neide está muito viva e trabalha numa loja no centro. Vende perfumes e continua muito linda… Bem, engordou um pouquinho…
Senti um cheiro de lavanda escapando do rosto do meu amigo, e fiquei na certeza que ele agora era cliente da Neide.
– Ta, mas tome cuidado, a Teresa é ciumenta.
A simples menção do nome da esposa fez meu amigo recuar na divagação. Mas durou pouco:
– Esquece a Teresa. Deixa eu falar da Neide. Ela se lembrou da nossa música, você acredita nisso?
Eu também tinha uma música que era minha e da Neide, embora ela nunca soubesse.
– Vocês tinham uma música? Perguntei meio sem jeito.
– Claro, é aquela do Júlio César.
– Júlio César?
– É… Aquela que ele canta “tu, muito além longe daqui, tu, que existe só pra mim”. Chico é um desastre cantando. Meu ouvido agradeceu quando ele cessou a cantoria e passou a dar detalhes:
– Lembra que eu dançava de rosto colado no rosto da Neide e você ficava contente de ver?
Eu não ficava contente, ficava com ciúmes. Lembrei-me da música, uma coisa prenhe de melado, do tipo que gruda na mente da gente para nunca mais escapar. Baita mela cuecas. Na época fez o maior sucesso. Nos bailes eu ficava o tempo todo tentando tirar a Neide pra dançar, mas o Chico tinha mais coragem. Uma amiga percebeu: Tânia era muito legal, gentil, parceira, mas feia de doer, por isso, preferia ficar incentivando os amigos ao invés dela mesma se oferecer para dançar.
– Vai lá, o Chico já dançou com ela cinco vezes, é a sua vez.
Eu ia até o meio do caminho e voltava: timidez e medo falando mais alto. Assim o tempo passou e nunca mais ouvimos falar da Neide.
– Ela está solteira, nunca casou, acredita?
Contou-me o Chico com um estranho brilho no olhar. Eu sabia que era pura empolgação de momento. Jamais abandonaria a Teresa. Mas agora era ele que sonhava acordado, enquanto eu, preferia recordar da amiga Tânia, que se casou com um militar e foi morar em Curitiba. Teve três filhos, sou padrinho do caçula.
– Chico, ei Chico, acorda! Lembra da Tânia?
– A nariguda? Sei… Mas não me fale dela, só escute…
E ligou o som do celular e a música do passado invadiu o bar, nos fazendo recordar.
– Traz mais um conhaque! Pedi ao garçom.
E nem reclamei que o Chico acompanhou a melodia na sua voz rouca e desafinada.