Filme em preto e branco

Pertenço a uma sociedade secreta que adora filmes em preto e branco.

Não vou contar detalhes, como disse, é uma sociedade secreta.

Mas posso dizer que quando chove, estico os ossos no sofá logo depois de esquentar uma caneca de leite com chocolate para ver na TV filmes em preto e branco que tenho gravado.

As opções são tantas que fico um bom tempo zapeando com o controle remoto, em busca de um daqueles de neve caindo na aba do chapéu do mocinho, que pisca o olho, desviando a fumaça do cigarro que sobe, inibindo de vez a desavisada mocinha, que tão ingênua e recatada (que palavra horrível!), recolhe o corpo num aperto de ombros.

Filme antigo é cativante até no título: O homem que matou o facínora, Como era verde o meu vale, Psicose, Cidadão Kane, A felicidade não se compra…

Não assisto mais TV aberta, cansei, dei um basta.

E isso já tem um bom tempo.

Dias desses vi a Tássia Camargo numa manifestação política e custei a reconhecê-la.

O tempo passa e nem percebemos.

Ainda ontem (na verdade, muitos anos atrás) Tássia era uma das estrelas das novelas, linda, meiga e recatada (de novo essa palavra horrível!).

Sinal que envelhecemos.

Chuva, filme antigo, sono…

Deixo meus pés roçarem um vaso de flores num canto da sala, o reflexo é de cores que aos poucos se mistura em meus olhos ao preto e branco da TV.

O copo de leite com chocolate esfria e repousa mansamente entre meus dedos, à espera que o sol volte, mas sem nenhuma pressa, os olhos presos na beleza de Scarlett O’hara, mais precisamente nos olhos de Scarlett, verdes ou azuis, nunca soube ao certo, muito embora esse seja um filme colorido.
E num leve click, outro filme em preto e branco surge diante dos meus olhos, O falcão maltes, um clássico noir com Humphrey Bogart.
E não tem jeito, Bogart me remete quase automaticamente para Casablanca, e o fascínio toma conta de mim diante do rosto perfeito de Ingrid Bergman.
Ah, aquela cena da despedida, a canção, “As Time Goes By”…
Lágrimas de fogo em meu rosto.
Sempre imaginei que esse filme merecia um final feliz,  na última cena a câmera se aproximando aos poucos, registrando o beijo final, a dama entregue, os lábios oferecidos e um dos braços caído rumo ao chão, como quem desfalece.
O mocinho é de uma postura de pedra. Bogart, puro Bogart.
Um pensamento bobo me assoma, será que ele vai apressar o beijo na ânsia de acender outro cigarro?

Fim de filme.

O preto e branco nos meus olhos vai dando lugar às cores do mundo real.

Ao desligar a TV, dou de cara com os pingos da chuva batendo na janela.

Ninguém lá fora, só o vento, a escuridão e a água que cai.

A cena escancara na minha mente uma frase do Fernando Pessoa: “ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta”.

Pessoa me remete a livros, mais ainda, à vontade de ler, e saio procurando um romance que comprei tempos atrás e não terminei de ler, que nem sei mais o título, mas sei que na capa tem flores e ventos.

Que chato procurar um livro e não encontrá-lo, fica aquele sentimento estranho de perda, amparado pela dúvida, será que emprestei e não me foi devolvido? Não sei.

A chuva insiste, prendendo-me quieto num canto, bebendo o que resta de leite com chocolate, frio, quase gelado, contemplando o silêncio, os olhos pousados no vaso de flores das pétalas murchas pelo tempo, que já não exala perfumes, mas é quase tão maravilhoso quanto um filme em preto e branco.

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