O HOMEM QUE CAIU NA TERRA

Semana passada sonhei que tinha morrido.

Sonho recorrente, que me ocorre desde pequeno, alternando pequenos detalhes.

Às vezes é água corrente, noutros moinhos de vento, ou ainda uma árvore frondosa de cujos galhos balançam sem parar flores vermelhas.

Talvez o motivo de tantos sonhos parecidos seja o medo de morrer, a certeza que somos finitos nunca me agradou.

Foi um sono profundo, daqueles com imagens próximas à realidade.

Quando acordei, ainda tateava os detalhes do lugar; dava  para enxergar o pano de fundo azul celeste, algumas nuvens e um castelo no centro de duas torres barrocas, que julguei ser o céu.

No portão me aguardava um anjo torto e desgrenhado, a cara do Tim Burton.

Ele ficou um bom tempo em silêncio, as vistas caídas num calhamaço de papel no qual procurava meu nome.

Ao fundo ouvi um solo de guitarra, talvez Sweet Child O’ Mine, não tive certeza, mas sei que desafinou no exato instante que o anjo ergueu o rosto e me olhou fingindo não me ver.

“Você morreu” – disse numa voz que não combinava com anjos.

Falou tão de perto que percebi as cebolas do seu hálito.

Para surpresa do anjo, ao invés de desespero, assenti com a cabeça e lhe fiz a pergunta que guardei comigo por muito tempo: “quando vou ver John Lennon?”.

O anjo não esperava pela pergunta, sorriu sem jeito e deu de ombros, indo se perder numa extensa plantação, tão verde que cegava e de onde saía um som parecido com o apito de navio ancorando no porto.

Foi um dia antes de David Bowie morrer.

Algumas pessoas nos levam a crer que são eternas, David Bowie era uma delas.

Pensei no anjo torto, se estivesse novamente diante dele, além de Lennon, perguntaria por Bowie.

E se fosse atendido, seria um morto feliz.

Lennon descreveu o céu, Bowie caiu do céu.

Sempre acreditei que ele fosse alienígena, desses que ficam um tempo entre nós e que demonstram tanta genialidade que findam por se transformar na junção herói, mito, lenda.

Lembro a primeira vez que vi, na tela do cinema, aquela figura andrógina; um olho verde outro azul, o jeito leve de ser, encarnando o personagem que parecia de fato existir, um alien perdido em nosso planeta em busca de água, sem máscara ou enfeites, era puramente o Camaleão Bowie, que daquele momento em diante, me cativou para sempre.

No auge do deslumbre, tentei imitá-lo. Em vão, eu não sabia compor, dançar, muito menos cantar, só sabia admirá-lo, cada vez mais.

Decorei meu quarto com um pôster seu, em tamanho natural, que ganhava vida nas noites vazias, nos breves momentos de solidão da minha juventude, e era como se falasse comigo: “é preciso enfrentar com fúria a chegada da escuridão”.

Meus amigos não entendiam aquela adoração, imaginavam exageros onde eu via poesia, compunham retratos de Dorian Gray sempre que diante do pôster, sem se dar conta que nele eu enxergava magia, beleza, enigmas.

Junto à fumaça do cigarro navegavam meus sonhos de fã ardoroso, vendo na imaginação Bowie cantar e dançar, armando no rosto aquele jeito só seu, o cabelo esvoaçante jogado de um lado para o outro, amarelo, azul, laranja, vermelho, mechas louras atravessando o rosto, o corpo esticado enquanto fitava a câmera, enigmático, se fazendo tão real, tão próximo que era como se pudesse ser tocado.

Logo depois conheci outros ídolos; Caetano, Belchior, os Mutantes e pensei que o encanto passaria como sempre passam as pequenas emoções juvenis, mas retornou mais forte, até se tornar perene.

E agora a nave retornou para buscá-lo, de volta ao lar, ao som da guitarra do sonho, que agora consigo distinguir os acordes de “space oddity”.

Sustenido, reticências, intervalo.

David não morreu, apenas voltou para casa.

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on print
Imprimir

Loja Virtual

Busca

Está com dificuldades para encontrar? Utilize os filtros abaixo para aprimorar a sua busca.

Categorias