O HOMEM QUE COCHILA

Na sala de espera da oficina mecânica, me vejo sentado de frente a um casal. 
A mulher está aflita. É o que dizem os joelhos que tremem e as mãos que a cada minuto passeiam pelo rosto de pele clara. 
O marido, ao contrário, é daqueles que sabem esperar. 
Consigo perceber toda a calma do mundo em seu rosto redondo. 
Depois de me lançar um breve olhar de aceno, ele ajeitou o corpo obeso no sofá e no instante seguinte já estava cochilando. 
Sou uma pessoa de invejas tolas, de coisas sem muita importância, como essa capacidade que algumas pessoas têm de simplesmente fechar os olhos e cair num sono leve. 
Sou incapaz disso. 
Só consigo dormir com o corpo esticado e a cabeça pousada num travesseiro, se tiver outro travesseiro que eu possa colocar em meio às pernas, melhor. 
Indiferente ao meu pensamento navegante, o homem consegue roncar, para desassossego da mulher, que olha para ele de um jeito sem palavras, acostumada com a cena. 
Ela balança a cabeça negativamente, como se para aquele mal, não houvesse solução que não fosse se conformar. 
O cochilo foi breve, de repente ele acordou, olhou para os lados, com olhos murchos dos recém acordados e baixou a cabeça ao perceber que tinha dormido sem sentir e que o sono breve lhe trouxe o conforto do sonho leve, daqueles que desejamos a todo custo dormir novamente e retornar no exato ponto onde parou. 
O barulho do ronco dá uma esticada no exato instante que a mulher lhe deu um cutucão de desaprovação. 
Os olhos se abrem lentamente, caindo aos poucos da pestana pesada. 
Ele novamente não se mostrou nem um pouco incomodado, já ajeitando novamente o corpanzil no sofá. 
Bocejou, olhou para mim e logo depois desviou o olhar. 
Retirou do bolso o frasco de um colírio. 
Não se incomodando com as pessoas à sua volta, muito menos com meu olhar de surpresa, arregalou os olhos vermelhos o quanto pode e neles pingou diversas gotas do colírio. 
Sem perceber, acabara de executar outra tarefa que sou incapaz de realizar: jamais consegui usar colírio sem o auxílio de outra pessoa, e sempre pisco na hora que a gota está prestes a cair. 
E desabou para o lado num novo cochilo, dessa vez completamente relaxado, as pernas esticadas, a barriga que tentava escapar entre os botões da camisa. 
A mulher ficou minutos olhando para ele, sem mexer sequer um músculo do rosto. 
Quando olhou para mim, fez sinais de desaprovação com a cabeça e se levantou para se servir de café. 
O sujeito que cochilava percebeu o caminhar da mulher. Era uma espécie de sinal de alerta, assim que ela deu os primeiros passos, ele acordou, dessa vez disposto a abandonar o cochilo. 
Sorriu para mim, despachado. 
Era um rosto inchado, repleto de riscos de cansaço. 
A mulher colocou algumas gotas de adoçante no café que bebeu, em seguida, num gesto automático, encheu outro copo com açúcar e café e trouxe até o marido, que bebeu tudo em poucos segundos. 
Era a terceira tarefa que o homem que cochilava realizara e que eu não posso fazer, já que açúcar é, para mim, sinônimo de veneno. 
O atendente chamou meu nome e fui buscar meu carro. 
Ao sair, voltei meus olhos para a sala de espera, só para constatar, só para ter certeza: com os braços cruzados sobre a barriga, o homem novamente cochilava num descabido impudor. 

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on print
Imprimir

Loja Virtual

Busca

Está com dificuldades para encontrar? Utilize os filtros abaixo para aprimorar a sua busca.

Categorias