O INCRÉU

O assunto é espinhoso. Estava vendo futebol com amigos e reclamei quando um jogador comemorou a feitura de um gol com os dedos erguidos para o céu. Aproveitei e reclamei do excesso de religiosidade, dos aproveitadores que usam recursos da fé em benefício próprio e de grupos que se formam aos montes em torno da religião, inclusive os perigosos políticos. Bastou para que um amigo me acusasse: “Você é um incréu”. Na hora nada respondi, mas depois fiquei conversando com a manga da minha camisa, perguntando se sou mesmo um descrente. Não posso negar o incomodo que a acusação me causa, é espinho que me arranha a alma. Não condeno quem segue uma religião, sei dos bons propósitos da maioria, o que me incomoda é a histeria coletiva que assusta e forma o corporativismo: “só é bom e decente aquele que comunga da minha fé”, resultando num perigoso preconceito contra outras religiões e os sem religião, como é o meu caso. “Quem não tem tempo para Deus, vive perdendo tempo” eles afirmam. Mas será que não basta uma simples oração antes de dormir? Torno a pisar no campo de espinhos. Fui batizado numa igreja católica, com nome espírita, que minha família tinha disso, um pouco de cá, outro tanto de lá e até hoje permanece assim, sem definição. Na juventude, fui solipsista, hoje me considero deísta e uma das certezas que tenho é que colhemos aquilo que plantamos.  Só sei que nada sei, e do pouco que consigo pensar, luto para que o niilismo seja esmagado. É estupidez imaginar o nada, que tudo foi criado pelo acaso. Certa vez, estive no interior do Ceará, em Jericoacoara. Lá, à noite, o céu se transforma num imenso lume de estrelas, que se aproxima, mostrando nossa total insignificância. Aquele lugar é uma das provas daquilo que Shakespeare escreveu: “mais mistérios entre o céu e a terra do que possa duvidar nossa vã filosofia”. Enquanto Kant afirma que a existência de Deus só pode ser provada a partir das exigências morais da razão prática e não da razão teórica, Nietzsche decretava: “Deus está morto”.  Se vivesse nos dias atuais, o filósofo alemão se convenceria facilmente que, na mente dos homens, Deus prossegue cada vez mais vivo. Resta a razão prática que Kant evocou. Na prática, sinto Deus quando ando de bicicleta e o vento sopra meu rosto, pressinto que está no Rinoceronte, que era o rascunho do cavalo e Ele teve piedade de apagar, está na graciosidade da girafa, que não possui voz e se comunica pelo pescoço e naquele inseto que consegue mudar de cor para fugir do predador. Nos momentos de lirismo, assopra confidências na cabeça dos poetas, como fez com Leandro Gomes de Barros “Fui temperar o choro e acabei salgando o pranto”. Deus está no focinho suado do meu cachorro que agora fareja o assoalho, está nas coisas que não sabemos, como as vinte e sete dimensões que um amigo afirma existir e nas coisas que vemos; a teia da aranha, a seda feita por um bicho, a lagarta que entra num casulo e de lá sai voando em asas coloridas de borboleta. Se pudesse voltar àquele bar, responderia ao meu amigo: não, eu não sou incréu, acredito em Deus, mas duvido muito dos homens.

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