Os meninos da rua da feira

Quando o caminhão de mudanças estacionou a frente da nossa nova casa, num rápido movimento de olhar percebi que havia acabado de conhecer o lugar que para sempre chamaria de meu: O bairro Taveirópolis, a vila famosa, berço de craques do passado, desde os tempos que o atual estádio Elias Gadia era nada mais que um punhado de chão pelo qual corriam homens descalços que ajudaram a transformar a pequena cidade na atual capital do Estado. Lembro do mercado da esquina, cujo dono se chamava Taveira, daí o nome do bairro. Havia por lá uma lei não escrita, mas irreparável: todo morador do bairro se considerava irmão um do outro, se protegiam mutuamente, sem enxergar cor de pele, credo ou posição social, apenas uma regra: se era morador do bairro, era um amigo eterno. E ai daquele de outras bandas que se atrevesse desafiar alguém da vila famosa, teria que enfrentar todos os outros moradores. Era o ano de 1977 e eu estava naquela fase de transformação, de menino para homem, quando a voz sai num misto de fina e grossa, findando num som rouco que a todos causava espanto e risos, o rosto repleto de espinhas e o resto do corpo começando a ganhar formas. Algo assustador e ao mesmo tempo encantador. A nova casa ficava exatamente na rua da feira e na esquina havia um terreno torto, gramado apenas nas pontas, no meio havia terra, que se transformava em barro quando chovia. Três pedaços de madeira em cada lado formavam as traves, que logo se transformaria no lugar de encanto, o nosso campinho de futebol. Campinho mesmo, as dimensões pequenas comportavam apenas dois times de no máximo seis jogadores pra cada lado.


Eu era um menino que vivia fardado com a mesma camisa e calções desbotados, os dentes falhos e os cabelos em forma de cachopa de marimbondo, algo penso para um dos lados, nem lembro qual, enfim, eu era esquisito, mas carregava sempre o sorriso que cativava e, assim, foi fácil me aproximar dos garotos da rua da feira.

Ananias era o líder da turma. Um pouco mais velho, completamente gago e de poucos estudos, ainda assim se destacava pela natural forma de chefiar o bando de guris que transitavam junto dele à espera de comando. Tinha os olhos miúdos, mas carregados de uma estranha sinceridade que às vezes assustava. Os outros meninos, às escondidas, colocaram nele o merecido apelido de taturana, fruto dos pêlos que cobriam completamente suas pernas. Eram os meninos da rua da feira. E eu era um deles. Todos tinham apelidos e assim nos tratávamos; Magriça, Bêbado, Caolho, Dentuço, Gordinho, Marilu Guimarães (Em homenagem à apresentadora da TV e depois deputada, já que o sujeito em questão tinha longos cabelos loiros carapinhos), Baixeta, Olho de porco, Alemão, Ta legal, Bagunça, Canhoto, Pintor, entre outros. Eu também tinha um apelido, do qual nunca gostei, melhor então nem comentar. Éramos pobres, alguns paupérrimos, mas ali, naquele pedaço de chão, a felicidade expandia num ritmo tão acelerado que esquecíamos do resto do mundo. Nas quartas-feiras acontecia a feira de frutas e legumes e o futebol não podia acontecer. Inventamos então uma forma de nos divertir mesmo naquele dia, assim que a feira acabava, isso lá pelas onze da manhã. Com as xepas à disposição, fazíamos a guerra da fruta e legumes podres, cada um por si, todos contra todos, dê-lhe banana podre na cara, mexericas e laranjas nas costas, abacaxis (e esses doíam muito) estourados na parte do corpo que se mostrasse exposta, pepinos e cenouras voando por todos os lados enquanto eu me protegia atrás de uns caixotes de madeiras deixados pelos feirantes. Ganhava quem acertasse a maior quantidade de tomates no oponente, que esta fruta deixava marca vermelha semelhante ao sangue. Guri tem cada idéia. Certa vez invocamos de montar um time de futebol de verdade, com onze jogadores, na posição que o Ananias definiu. Economizamos por meses, até que cada um tivesse condições de comprar uma camisa branca e calção azul. Ficou um tanto estranho, os tons das cores não combinavam, especialmente os calções, alguns mais claros ou escuros que os outros. Nem demos importância, tínhamos uma missão difícil pela frente: Escrever os números nas costas das camisas. Alguém deu a idéia de pintar com caneta esferográfica, já na primeira percebemos que não daria certo, ficou horrível. O Pintor ficou de arranjar umas tintas no trabalho, mas não conseguiu e começamos a nos aborrecer. Até que alguém teve uma idéia genial: Era só comprar um carretel de fita isolante e com elas fazer os números. Deu certo, ficou até bonita a camisa. Uma pena que naqueles tempos não existia as atuais máquinas fotográficas digitais e com o passar do tempo o cérebro vai enfraquecendo, então o que tenho em mente é um desenho perfeito, irretocável, mas pode ser que não tenha sido tão belo assim. Pouco importa. O relevante é que fomos marchando à pé pela Rua da Pátria até meados do Bairro Caiçara, num domingo de vento cortante, enfrentar o time do Esperidião, um senhor que treinava os garotos daquele bairro. Levamos uma surra, pedimos revanche, tomamos outra pisa e voltamos pras nossas guerras de frutas e legumes depois da feira, que nela éramos invencíveis e ninguém ousava nos enfrentar.

Depois crescemos e a vida nos separou.  Poucas vezes me encontrei novamente com alguém daquela turma, alguns morreram, outros se transformaram em adultos por demais ocupados, sem tempo para um abraço amigo. Restou a lembrança e sei que vou atravessar o resto da vida com esta saudade ardendo no peito, lembranças daquele pedaço de Campo Grande que não existe mais. E agora recordo que em nossas guerras de legumes inventamos uma música assoviada, bastante semelhante àquela do filme “A ponte do Rio Kwai”, e é ela que agora me vêm à mente, assovio e vejo um bando de meninos desfilando orgulhosos com tomates nas mãos, serve de alimento, afugenta a angustia, dá a certeza que o que passou foi bom e valeu muito ter vivido.

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on print
Imprimir

Loja Virtual

Busca

Está com dificuldades para encontrar? Utilize os filtros abaixo para aprimorar a sua busca.

Categorias