Um abraço de presente

Todo fim de ano é assim, as lojas da Rua Dom Aquino tocam aquela música enfadonha da Simone, “então é natal…“. 

De tão chata, o acorde, a letra, a voz fica tudo grudado na memória. 

Eu só queria comprar uma caneta, mas quando percebi, já estava metido à confusão de gente correndo para todos os lados na loja. 

De repente uma senhora puxou uma menina desatenta pelos braços: “ande logo, precisamos comprar o presente do meu amigo oculto”. 

Amigo oculto? 

Amigo nunca deveria ser oculto. 

Eu já tive vários amigos, muitos se perderam nas estradas do tempo, outros permaneceram por perto, aparecendo aqui e ali em encontros casuais, mas sabe-se lá o porquê, já não são tão próximos, perderam o brilho, ou fui eu que, de alguma forma, apaguei para eles. 

“Então é natal, e o que a gente fez? O ano termina e começa outra vez” 

Música chata do caralho! 

Eu e meus amigos de juventude adorávamos a versão original, com John Lennon. 

O arrepio no meu braço é risco da saudade que me atinge – saudade daqueles que se foram, dos que a vida nos separou e até daqueles que deixei de amar. 

É possível deixar de amar um amigo? 

Sim, é possível, mas não é recomendável. 

Porque a vida é ligeira e logo virá a sofrência causada pela solidão, aquele momento terrível em que nos vemos perdidos no meio da multidão, entre estranhos, procurando um rosto conhecido que nos traga a segurança e o conforto da simples presença. 

Quanto mais o tempo avança, mais tenho medo disso. 

Ainda não perdi o velho costume de andar pelas ruas chutando pedras, e cada pedra que chuto, traz a lembrança de um amigo ausente. 

Por onde andará meu antigo melhor amigo? 

As mãos que antes ajudavam a transpor abismos, hoje não passam de traços na memória. 

O movimento da loja me traz de volta ao presente 

A mãe da menina finalmente escolhe um presente. 

É uma caixa fria, escolhida na pressa, empacotada num embrulho vermelho, amassado e preso numa fita verde em forma de nó, resultando em algo tão sem graça, muito mais obrigação do que sentimento de carinho, que desviei o olhar. 

Um pensamento ligeiro me ocorre: fora o pessoal de casa, minha mulher e meus filhos, eu não tenho ninguém a presentear neste natal. 

Também não receberei presentes. 

Ok, tudo bem, nunca liguei para isso. 

Ou será que estou tentando me convencer, não admitir que seria melhor se eu tivesse um milhão de amigos – menos, bem menos, como quando era moço, dez ou quinze – e para cada um eu escolhesse, naquela loja, na qual a música chata ecoa, um presente de natal? 

E o que eu poderia dar de presente? 

Um estalo, a ideia: que tal ao invés de presente, dar um abraço? 

Mas não um abraço qualquer, frio e desajeitado, mas daqueles apertados, que chegam a sufocar. 

Calor humano, combustível que abrevia o silêncio e cala o rancor. 

Um abraço, porque não pensei nisso antes? 

E após o abraço, aproveitar para perdoar. 

Que o perdão pode ser considerado um presente ao mesmo tempo ofertado e recebido. 

Só de imaginar, sinto alívio ao perceber que a velha casca de ferida pode ser eliminada com um simples gesto. 

Saí da loja levado pelo desejo de ligar para alguns amigos, desejar-lhes um feliz natal e combinar uma cerveja no fim do dia, só pra jogar conversa fora, como antes, naqueles tempos que a amizade era maior que qualquer diferença. 

Na cabeça a música chata foi escapando aos poucos, a calma tomando lugar, agasalhada pela certeza de que é assim que eu quero o meu presente de natal, singelo e puro feito um abraço de amigo. 

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