MUITO ANTES DOS IPÊS

Do alto da última esquina da vila Planalto, contemplo a cidade. Sinto desejo de escrever um texto que faça o leitor imaginar: esse cara é de Campo Grande. Hoje o ipê é símbolo da cidade, mas nem sempre foi assim. Sou de uma cidade de outrora, aquela que o céu se via cortado nos finais da tarde pelo vôo das andorinhas, era conhecida por cidade morena e que teve início a partir do cruzamento entre dois córregos, o Segredo e o Prosa. Acredito que o mineiro de nome Pereira, se viu dominado pelo desejo de ouvir uma prosa assim que bebeu da água gelada que descia entre os mananciais. Enfeitiçado, resolveu guardar segredo e por aqui ficou para sempre. A cidade pequena foi crescendo, embalada pelos trilhos do trem que não existem mais. O que hoje é asfalto conheci em trilheiros, matas, terra batida e não consigo, nem naquelas mil horas que duram os instantes em que passeiam os pensamentos, encontrar um único ipê. Mas o barro moreno, sempre está por ali. Na entrada do quintal da nossa casa, havia um imenso pé de ariticum, que não resistiu ao balanço de corda que nele amarramos e na queda, quebrei meu pé. Sai gritando rumo à rua da frente, que nem sabia que se chamava Bandeirantes, ainda coberta de poeira e que logo depois, vi aos poucos se desnudar, amassada por patrolas, sendo coberta pelo piche, cujo cheiro, inconfundível, ainda navega nas minhas narinas. Hoje a cidade é um vai e vem enlouquecido de gente, concretos e veículos, mas o aroma de cidade do interior ainda emana por aqui. Sinto esse cheiro quando abro a janela do carro e o ar me invade, degusto o sabor da guavira temperada com mato molhado, de terreno recém carpido, o capim que mostra a raiz na qual me agarrei para sempre. Qualquer um pode morar em Campo Grande, mas somente aqueles que aqui nasceram e os que por ela foram adotados, podem sentir o aroma poderoso que escapa da sua terra vermelha. É um jeito estranho, reconheço, de discernir o concreto de hoje com o que antes era mata e chão. O progresso cobriu a pequena guarida de antes, trouxe o fluxo incessante do trânsito, que corre como uma artéria aberta, determinando o fim da calma onde antes reinava o silêncio e os sons se confundem, ganham vida na forma de malabares com sotaque castelhano, que avançam nos sinais de trânsito e recolhem nos chapeis suados as moedas de sobrevida que o povo oferece, ignorando completamente o cheiro da terra, da minha Campo Grande, sorrindo para mim sem desconfiar que naquele cruzamento existia antes um relógio, que parou em contra-ponto ao tempo, que passou e nem percebemos. E logo surge outro ipê florido num azul desconcertante. Gosto do colorido dos ipês e admito o progresso em forma de concreto. Apenas me rendo às vezes ao irresistível chamado da nostalgia, que navega pelo antes, atravessando num silêncio solene o atropelo das ruas, até rever aquele céu coberto de andorinhas, aquele de antes, de bem antes dos pés de ipês.

A CARTEIRA DO SENHOR AFONSO

Fazia calor naquele fim de dia. Abri um botão da camisa e deixei o vento bater no meu peito enquanto prosseguia caminhando, desviando dos camelôs, admirando as vitrines e tentando adivinhar o nome do carro amarelo que cruzou o sinal vermelho. O sol inclemente fez derramar outra gota de suor do meu rosto cansado. Meus calçados estão surrados de tanto que caminho pela avenida longa que parece não ter fim.  De repente, enquanto a rua foi ficando deserta, de longe avistei um objeto meio escondido entre uma pedra e um monte de grama. Era uma carteira. Não pensei duas vezes antes de apanhá-la e estranhei o jeito que olhei em volta, desconfiado, como quem comete pecado. Ao redor não havia viva alma e então resolvi levar comigo a carteira marrom. Cheguei em casa ansioso para ver o mais rápido possível o que nela continha: uma cédula de vinte reais surgiu diante dos meus olhos, solitária e em perfeito estado, como se acabasse de sair de algum caixa eletrônico. Cheirava coisa nova. Logo atrás, apareceu a identidade do dono da carteira perdida: o rosto severo, enfeitado por um par de olhos meio verdes, me fitou curioso, como se perguntando quem era aquele estranho que o encarava: Afonso de tal, sobrenome pomposo que omito nesse texto no receio que ele não goste de crônicas.  Afonso nasceu no dia 31 de dezembro de cinqüenta e dois. Deve ser estranho comemorar aniversário no último dia do ano. Abro mais um pouco a carteira e percorro os compartimentos, a curiosidade acelerando. Encontro moedas antigas e vários selos. Um filatelista iria adorar, mas eu nunca gostei muito de selos, preferia colecionar figurinhas, embora aquele selo com o rosto do Elvis Presley, que coloquei na palma das mãos durante vários minutos, deva ser raro e valioso. Logo depois vieram as fotos; uma criança linda dos cachos dourados, um garoto com cara de travesso e outra que mostra uma mulher debruçada numa janela. Foto antiga, em preto e branco, das margens marcadas num dourado opaco. Fiquei hipnotizado. Aquela mulher já deve ter morrido, pensei no mesmo instante que percebi a nostalgia perversa escapando de seus olhos. Tive a nítida sensação que ela sentia saudades de alguém que aguardava calada, com os braços presos no balaustre da janela, prostrada na esperança que aos poucos escorria, como alguém que delira de febre, tomada pela ânsia dos desesperados. Tapei a foto com a mão, tenho o estranho costume de absorver nostalgia. Outra foto, um senhor vestido em andrajos, da barba longa, o rosto que o chapéu quase escondia, trazia um leve sorriso de canto de boca que lembrava o semblante das crianças da foto. Seriam os pais de Afonso? O garoto com ar travesso seria ele quando criança?  Por fim, no final da rebuscada, encontrei um cartão de visitas e descobri o endereço para o qual enviei na manhã do dia seguinte a carteira, intacta, com a nota de vinte, os selos, as fotos e todos os seus mistérios.

A ÚLTIMA FLOR DO LÁCIO

Talyssa estuda engenharia e desde pequena gosta de matemática, mas às vezes se atrapalha com a escrita. Certo dia me disse de supetão: “Tio, o senhor precisa me ensinar português”. Tremi na base. O pedido surgiu depois que ela leu uma crônica que escrevi e imaginou que eu fosse uma espécie de catedrático da língua culta. Pobre de mim, que sofro com as regras gramaticais e tento, com meus ouvidos mancos, enxergar alguma coisa no escuro das letras. Sou um contador de histórias que acerta na maioria das vezes ao escrever, por instinto e costume, mas que inadvertidamente, também apanha da gramática: atrapalho-me com o uso dos porquês, separo o que é junto, junto o que é separado, coloco vírgula depois do sujeito, prejudicando o predicado, o meu verbo nem sempre concorda com o sujeito e custo a entender a diferença entre substantivo simples e composto. Invejo com toda força aquele que domina as regras do português. Da língua que falo nesse meu confesso, que me salve Bilac, que é exatamente por “não conhecê-la por completo que navega a minha adoração”. Dias atrás, na rede social, escrevi errado uma palavra e um amigo me corrigiu em letras garrafais. Não fiquei chateado, apenas surpreso. Por paradoxo, eu também costumo corrigir quem fala errado, condeno o uso excessivo de gerúndios e quem usa o vocábulo mim para conjugar verbos. Mim não faz, eu faço, simples assim. A verdade é que a língua portuguesa é mesmo complexa e de difícil compreensão. Não quero com isso incentivar quem escreve errado, apenas relato as minhas limitações de escrita e, sem desejar qualquer comparação ou expor pretensões, no final do degrau da escada que me vejo sentado, afirmo que muitos escritores tropeçavam na gramática e não se incomodavam com isso: Lobato fazia questão de grafar o vocábulo sem acento. Considerava inútil “essa invenção dos gramáticos”. José de Alencar, no romance Senhora, imaginou um personagem que criticava os erros de seu romance anterior.  Drummond foi atacado por causa do verso “no meio do caminho tinha uma pedra”, porque os eruditos não aceitavam a adoção do verbo ter com o sentido de haver, existir. E agora, num repente, recordei que estranhei Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, numa parte da fala de um jagunço: “pão ou pães, é questão de opiniães”.  Hoje entendo o que o grande Rosa quis dizer: é certo escrever o que se fala, o sertão está em toda parte, inclusive na escrita. E o que dizer de Saramago? Para acompanhar a leitura do Nobel de literatura, é preciso fôlego, vez que seu texto passeia saltando acima de todas as regras sintáticas, sem pontos, sem travessões, em que a vírgula dá o tom da história, que se desenvolve mesmo assim, bela e cativante. Por fim, peço novamente emprestado trechos do poema de Bilac, que eu, atento e desleixado, aliso com carinho a última flor do Lácio, inculta e bela, fascinado pelo aroma que ao todo me toma, ó rude e doloroso idioma.

O JOVEM MENDIGO

No bairro Nova Bandeirantes, perto do supermercado que costumo freqüentar, de dentro do carro acompanho um jovem maltrapilho que caminha pela calçada. Ele usa sempre a mesma camisa de algodão, comprida e rota, puída nas pontas e da costura rasgada no bolso, que desprende aos poucos, como se fosse o desenho da vida daquele rapaz, aos poucos desabando sem que ele se dê conta. Seu rosto reflete uma espécie de indagação, como se não acreditasse no destino que os caminhos da vida lhe conduziram. É jovem, no máximo vinte e cinco anos. Tão jovem e tão acabado, se esgueirando pelos beirais das casas, arrastando o sapato marrom da sola furada, que ele faz questão de usar, com se fosse a última obrigação que ainda o mantêm humano.  Seu rosto sereno, conformado, de repente se transforma na escultura fiel de um parente distante que esqueci o nome, provocando meu descompasso.  As gotas da chuva miúda atingem seus cabelos e caem pela testa grande e ele sorri levemente. Prossigo observando o seu caminhar até a entrada do grande supermercado. Ele toma o café gratuito enquanto faço minhas compras. Na saída, o encontro fortuito, do rosto sofrido me lança um sorriso de velho conhecido que retribuo num aceno de cabeça e saio para o meu mundo. No outro dia, a cena se repetirá, eu sei. O dia prossegue apressado, dirijo meu carro pelo Parque dos Poderes, tenho pressa, compromissos inadiáveis e me enfezo quando uma grande fileira de carros à frente pára de repente. Só me acalmo quando percebo o motivo: uma família de quatis atravessa a larga avenida. Conto mentalmente a quantidade de bichos, considero que passaram pelo menos oito filhotes e mais dois maiores, certamente o pai e a mãe, formando uma bela família de quatis. Um motoqueiro pára ao meu lado e sorri dizendo uma maldade em forma de graça: “está faltando onça por aqui!”.  Toco os dedos no volante tentando com isso apressar os quatis, que não se incomodam com a minha pressa. E a imagem do jovem mendigo volta a povoar minha mente. Onde estariam os familiares daquele cidadão, que mal teria ele praticado para merecer o total isolamento?  Drogas, doença mental? Nada que justifique, penso, enquanto meus pensamentos me conduzem à frente da calçada que ele fez de morada; um colchão imundo jogado abaixo de uma árvore, encostado no muro de uma residência, que tenho certeza que não é mais aconchegante que a mata para a qual se dirige a família de quatis. Só de imaginar o tormento que ele enfrenta na madrugada vazia, o medo que preenche a escuridão com uivos de lobos e fantasmas, me provoca desassossego. E o frio do inverno se aproxima… Há mais humanidade entre os animais que entre alguns humanos. Os bichos somem na mata. Acelero o carro ao mesmo tempo em que caminho pelo vale das sombras, incomodado quando surge a imagem do jovem mendigo na minha cabeça, que balança, apoiada na abstração da alma e no medo que causa o imperativo dos homens. 

A SANTA, O RELÓGIO E OUTRAS CENAS

André Luiz

O dia vai terminando, quente em pleno inverno. Campo Grande é assim, ou faz muito frio ou calor, sem se importar com a estação vigente. E lá vou eu, de tênis, camiseta e munido de uma enorme força de vontade que desconhecia existir em mim.

Preciso queimar calorias, simplesmente detesto academias de musculação e nunca na vida ergui pesos. Andar é muito mais prazeroso, guarda surpresas, apresenta rostos. De repente, imagino que a figura à minha frente é um antigo amigo, o mesmo jeito de andar, o olhar murcho para o chão, quase chamei pelo nome, nome que esqueci, ainda bem, porque não era o antigo amigo, embora muito parecido fisicamente, talvez um filho, ou parente.

Um pássaro de voo torto risca o céu enquanto contemplo seu desajeitado jeito de voar. Tenho a mania de olhar pra cima, busco nuvens com formas de gente, animal ou árvore. E lá estava o pássaro desajeitado, que some rapidamente no horizonte. Era um animal solitário, por conta disso, tive pena dele.

Passo perto da antiga rodoviária e a tristeza me invade ao constatar o completo abandono daquele lugar que já foi tão bonito. Mais à frente, na calçada esquerda da rua, existe uma capela repleta de oferendas. O túmulo guarda os restos mortais de uma menina: Santa Carminha, me diz um homem velho de chapéu de palha e paletó. Um calor danado e ele usando paletó. Conta que a menina morreu estuprada pelo padrinho, isso há muitos anos atrás, e o povo a fez milagreira, tornando-a santa à revelia da igreja. Pobre menina, pensei com meus botões. Quando quis saber mais detalhes, assim como surgiu, o homem desapareceu num piscar de olhos. Será que vi um fantasma?

Dei a volta no quarteirão e retornei rumo ao horto florestal, até chegar ao cruzamento do Prosa e o Segredo, o encontro dos dois córregos que deram origem à minha cidade. Conto um segredo ao primeiro e ouço do outro uma prosa, algo ligeiro, que termina assim: “a cidade cresceu e nem percebemos”. Um sujeito cheirando álcool pede uma moeda e lhe dou uma nota de dois reais. Preciso me lembrar de levar umas moedas quando for sair.Prossigo caminhando, faço um contorno à esquerda, vou para o centro da cidade, pela Avenida Calógeras, até chegar ao monumento erguido na confluência com a Afonso Pena.

O relógio é um insulto. Primeiro mudaram-no de lugar, depois arrancaram os ponteiros e, por fim, o próprio relógio, restando uma coluna comprida de concreto que para nada serve. De novo me pego olhando para cima, agora tento enxergar o topo de um prédio qualquer, que é pra ver se alguém lá em cima olha para baixo. Já caminhei bastante e resolvo voltar para casa, mas não volto sozinho, levo comigo um poema do Mário Quintana na cabeça: “Antes, todos os caminhos iam, agora todos os caminhos vêm” e não tenho sede, nem sinto dor na panturrilha. Mais tarde, fiquei olhando o par de tênis jogado num canto do quarto. Amanhã tudo retorna e já penso em outros caminhos.

DESCULPE, EU NÃO TENHO WHATSAPP

Aconteceu num shopping, no final de tarde de um sábado recente. Eu bebia calmamente uma garrafa de água com gás, depois de andar várias quadras, naquela tentativa de melhorar a saúde. O lugar estava repleto de gente de todos os tipos. Num dado momento, olhei para a praça de alimentação lotada e percebi que quase todos digitavam textos no celular. Comiam sem olhar, bebiam por instinto, os dedos em forma de garras digitando sem parar.

Dai olhei para um canto, depois para o outro, em cada ponta surgia uma moça perdida no mundo cibernético, andavam e digitavam ao mesmo tempo. Nunca fui bom nas leis da física, sequer sei fazer contas, mas era evidente que se nenhuma das duas olhasse para frente, a trombada seria inevitável. Foi exatamente o que aconteceu. Uma das garotas caiu no chão e a outra só não teve o mesmo destino porque conseguiu se amparar numa pilastra. Os celulares voaram no chão e a única preocupação das duas garotas era com o aparelho. Várias pessoas em volta começaram a filmar a cena e tirar fotos da garota que caiu.

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Fiquei bastante irritado com o acontecido, mas não surpreso, já vi gente filmando acidentes graves. Eu não tenho wathsapp e quando confesso este meu pecado, as pessoas me olham como se eu fosse um ser primitivo, o homem das cavernas que fala. Até tentei usar o dispositivo, mas simplesmente não consegui.  Comprei um aparelho de primeira geração e com tantas funções que me perdi. Está jogado numa gaveta qualquer, não consigo encará-lo sem pânico e chego à conclusão que pilotar um avião não deve ser mais difícil.

Que saudades dos bons tempos do e-mail. Eu pertencia a um grupo e por lá trocávamos correspondências, falávamos de tudo, surgiu uma amizade muito grande, que durou mais de dez anos, embora à distância. Eu tento acompanhar a modernidade, hoje tenho Facebook, que me toma muito tempo, mas sempre estou por lá falando com os amigos, que são mais de mil, embora pessoalmente conheça no máximo vinte. Já não é o suficiente?

Ontem pedi pra minha mãe uma foto antiga e ela me disse que me enviaria pelo “waths”! Até dona Dalva tem wathsapp, ela que é dos tempos em que se esperava o carteiro no portão trazendo cartas, o que só acontecia poucas vezes no ano. O que mais me surpreende nessa moçada do celular é a rapidez e eficiência com que digitam suas mensagens. Fico impressionadíssimo.

Eu digito bem e rápido, sem olhar para o teclado, mas fiz curso nas antigas máquinas de escrever, daí a habilidade, mas esses jovens nem sabem o que foi o sistema qwerty, e ainda assim, digitam sem parar. Embora com medo de perder o encanto com coisas naturais; o dia de ar puro, a noite de lua e estrelas que cintilam, não pretendo desistir, vou comprar um celular mais acanhado, daqueles que a gente fala, recebe mensagens e que tenha wathsapp, só isso. E então vou sair digitando feito um maluco, o dia todo, a noite inteira, até aprender. Me aguardem!

ANDE ANDRÉ, ANDE!

Caminho pelas ruas da cidade, atravesso asfaltos, terra de chão, desvio das enxurradas, dou de encontro com lugares nunca antes visitados. Preciso andar, a saúde clama o esforço. Conto as calorias perdidas e suspiro aliviado, cada gota de suor é um tempo a mais de vida. O coração pulsa mais forte, a circulação aumenta, diminui a pressão. Já não tenho problemas com o colesterol, todas as taxas vão se reduzindo enquanto caminho.

Tudo começou depois de um susto, alguns sintomas estranhos que me fizeram buscar ajuda médica. De muito tempo eu sei que cedo ou tarde teria que enfrentar o problema: Tenho diabetes, é hereditária e matou o meu pai. Não quero ter o mesmo fim, ainda que para isso precise fazer uma tortuosa dieta que irá me acompanhar para sempre. Adeus picanhas, cervejas e pudins. Bem vindos os legumes, verduras e frutas.

andar,andar

Quando fiz o primeiro exame, entrei na sala da médica já sabendo que o resultado não seria bom. Ela é uma senhora japonesa, da seriedade comum dos orientais, nenhum riso e poucas falas. Tentei fazer uma brincadeira, porém ela não deu atenção, os olhos rasgados atentos ao resultado do exame de sangue. De vez em quando murmurava palavras incompreensíveis, mas eu já sabia que iria revelar um grave problema: A taxa de glicose estava altíssima e era preciso baixá-la o quanto antes. O diabetes é uma doença silenciosa, alertou.

Confesso, não sou hipócrita, tenho medo de morrer, mais ainda de sofrer. Além da dieta, a doutora fez outra exigência: preciso andar todos os dias, ao menos cinco quilômetros.  Dessa tarefa gostei. Andar é buscar caminhos que me levem a lugares de outrora e outros nunca antes visitados.  O problema é o tempo, que não disponho de muito, só à noite, mas acontece que nesse horário eu gosto de escrever, ler livros, assistir futebol ou alguma série na TV, prazeres que não pretendo abrir mão.

Mas a saúde é mais importante, então resolvo andar durante o dia. Quando preciso sair para resolver algum problema, e isso ocorre com frequência, visto um par de tênis e vou à pé, às vezes percorro mais de sete quilômetros.  Quando bate o desespero e a vontade de largar tudo, uma voz dentro do meu cérebro surge dando ordens: “Ande André, ande, que o tempo passa logo e você acaba se acostumando”.

Emagrecer é um dos bons resultados, estou me sentindo muito bem depois de perder alguns quilos, minha pele, antes ressecada e sem vida, agora é outra, vistosa e macia. Prossigo caminhando, atento aos movimentos das ruas, vou encontrando gente, lugares e tudo o mais que preciso de inspiração para compor meus textos. Não se assuste se der comigo caminhando por ai, abrindo um sorriso bobo no rosto. A natureza é arma de escritor e o sorriso não é loucura, mas o sinal que acabo de encontrar o tema para uma nova crônica; o vento quente que bate na minha cabeça e me faz enxergar que uma árvore possui sombra, que são diferentes, embora tentem se abraçar.

SOBRE RUIVOS E FORMIGAS

Graziela pintou os cabelos. Ficou ruiva e detestou. Eu gostei, achei diferente, bendita ela que tem cabelos longos que ficam bonitos em qualquer cor. Quer retornar aos antigos castanhos,  por mim ficaria assim um bom tempo, gosto quando ela passa deixando aquele vermelho espalhado no ar e me trazendo recordações.  Certa vez, a minha classe no colégio Osvaldo Cruz recebeu dois novos alunos. Era maio e o frio começava a chegar. O casal de irmãos entrou na sala timidamente, cada um sentou-se num canto. Vestiam casacos leves e usavam capuz. Só no quarto dia revelaram o segredo: ambos eram ruivos. Diante do assombro de todos, fui o primeiro a dar-lhes a mão, não representavam para mim nenhuma espécie de perigo, embora o fascínio daqueles fios vermelhos atiçando o vento.

formigueiro

Foi fácil fazer amizade com o menino. Renato adorava formigas, tinha o costume estranho de segui-las pelos gramados, queria saber onde daria o caminho e ficava contente quando se via diante do fim da trilha, e apontava aos gritos o formigueiro. Sem perceber, acabei adquirindo o mesmo costume. Até hoje, quando vejo uma trilha de formigas, sinto vontade de segui-las até encontrar o formigueiro. Me contenho no medo bobo de me tornar um adulto tolo que segue formigas.

Roberta era linda e sabia disso.  Impunha o respeito misturado com admiração e nós, pobres garotos,  medíamos cada palavra quando era preciso falar com ela. “cabelos ruivos hipnotizam” disse uma professora. De fato, aqueles novos amigos, encantaram a todos.

Um dia fui até a casa deles fazer o trabalho de ciências. A mãe me recebeu com total cordialidade e carinho, fez bolo de fubá, café com leite, contou histórias da outra cidade na qual moravam. Tinha o riso fácil. Achei estranho seus cabelos negros que nada lembravam os dos filhos. Lá pelas seis da tarde, o pai dos meus amigos surgiu na porta de entrada e o mistério se desvendou: Era um senhor enorme, bastante gordo, devia ter a minha idade de hoje. Em destaque os cabelos encaracolados e completamente ruivos. Usava bigodes e barba no queixo, tudo vermelho, se transformando numa espécie de ser de outro planeta. Mal se sentou no sofá e já foi acendendo um cigarro e todos saímos de perto dele.

No final daquele ano meus amigos foram embora para outra cidade. Estavam acostumados, a profissão do pai os obrigava àquelas mudanças. Nunca mais tive notícias. Tentei encontrá-los no Facebook, mas não me recordo o sobrenome e então a tarefa se tornou impossível. Fico com eles guardados na lembrança e na esperança que tenham se dado bem, já fazendo minha tarefa de escritor, compondo histórias: Roberta se casou e foi morar em outro país, tem três filhos, todos ruivos. Renato se transformou num homem enorme feito o pai, dá aulas de biologia numa faculdades e mantêm a doçura de criança. Mora numa casa de vasto quintal que dá de fundos a uma pequena mata. Diversas vezes é pego seguindo os caminhos das formigas.

DIAS CLAROS OU CINZENTOS

Nunca gostei de chuva. Quando os silvos impactantes dos ventos anunciam dias cinzentos, me tranco em casa com receio da chuva que se anuncia.  Em dias assim, recordo de quando era criança. Ah, quando eu era criança… vislumbro nossa antiga casa, parece que ouço meus amigos me chamando pra brincar lá fora. Quero ir, me aproximo da porta, que não quer abrir, para meu desespero. E cai a chuva que nos obriga a ficar dentro de casa, eu, meus tios e os amigos que correram do terreno tentando escapar dos primeiros pingos grossos. 

Era terrível, nossos brinquedos jogados lá fora e nada podíamos fazer.  Sem perceber, tirava à unha a casca de ferida na canela machucada de tanto brincar, não conseguia mais esperar que ela secasse por completo, fazendo o sangue tornar a escorrer. Logo alguém teve a idéia de fazer uns barquinhos de papel e num instante tínhamos à disposição uma frota inteira. 

dias cinzentos

Dependurados nas entroncas da casa, cada um jogava seu barquinho na correnteza da água da chuva, que formou um veio d água abaixo da janela de madeira e ficávamos vendo os barcos partirem lado a lado. Hoje deslumbro aquela cena, que transformo numa alegoria da vida, como se eu fosse atirado junto dos barquinhos, naquela corrente de água sem fim. 

E depois veio o sol, um convite para a diversão: corremos lá pra fora já armados dos galhos da árvore que caíram, fazendo deles lápis e desenhando um enorme círculo na terra molhada, um oco ao meio feito com o calcanhar, que se transformou na meta do jogo de bolitas, e assim o dia foi passando naquela alegria de criança. Vários dias claros e outros cinzentos vieram e cá estou perto dos cinquenta anos.

O símbolo do remédio que tomo pra controlar a pressão é parecido com o carrinho de rolimã que tive quando criança. As rodas daquele brinquedo um dia se quebraram e o conserto que nele faltou ainda existe em mim. Se pudesse voltar no tempo, trocaria as rodinhas por outras novas, talvez de madeira, e o brinquedo voltaria a funcionar já no dia seguinte. Daria solução ao caso porque hoje, maduro e vivido, tenho respostas para quase tudo. 

Dia cinzento 2

Certa vez pediram a Nelson Rodrigues um conselho aos mais jovens. A resposta veio certeira: “Envelheçam”.  Não concordo. A maturidade não é nada boa, é cinza, começo do fim, basta olhar novamente para o remédio para controle da pressão, ou alisar os óculos que uso para ler, e o constante esquecimento de coisas pequenas. Bom mesmo é ser jovem, embora a experiência de vida nos torne mais astutos.

Hoje consigo farejar as marcas dos pés que se aproximam, percebo quando o assoalho, antes falho e de pedra bruta, se faz encerado e limpo e, assim, consigo distinguir um dia claro daquele outro cinzento, como nesse fim de tarde, quando um bando de passarinhos se recolhe no pé de limão que tenho no quintal, celebram o fim do dia e eu só espero que amanhã não chova. Detesto dias cinzentos.

PRA NUNCA SE ESQUECER DE CONTAR

O personagem que apresento nessa crônica parece ter saído de um conto fantástico, um desses seres mitológicos que povoam nossa mente e nos fazem viajar no seu mundo. Poeta, prosador, carnavalesco, é do tipo que basta uma única conversa, pra nunca mais dele se esquecer. Vai completar um ano, foi no dia 6 de abril de 2013, lançamento do meu romance “O Santo de cicatriz” na morada dos Baís, quando percebi na fila de autógrafos um senhor que se aproximava.

Edson Contar

Vinha sem pressa, os olhos de um azul infinito, os passos quietos, numa quietude própria dele, que tenta esconder o menino que ainda existe dentro daquele corpo magro, o rosto de pura bondade que ficou gravado em minha retina para sempre. Enfrentavaproblemas de saúde, ainda assim, generoso ao extremo, fez questão de comparecer para me cumprimentar. Naquele momento não pude expressar o meu contentamento, falar da admiração indissolúvel, o sentimento de aprendiz diante do erudito, o poeta que leio já desembalando minhas asas, pronto para voar em seus belos textos.

Semana passada o revi no bloco da Valu esbanjando alegria, lépido carnavalesco, o samba que corre nas veias de sangue fenício e ressurgem em forma dos diversos enredos que compôs: um moço guiando a velhice tranqüila, a alma estóica em seu harém imaginário, repleto de imagens abstratas que ele cria como um pássaro voando em busca da essência da sua mágica escrita.

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E voltei em pensamento ao primeiro encontro, quando passava às suas mãos a história que criei e um leve receio tomou conta de mim, o medo infantil de que não aprovasse meu texto, afinal, estava diante de um escritor completo, enciclopédia ambulante, que conhece todas as ruas, cinemas e teatros de antes, que não sobreviveram ao crescimento da cidade, mas que resistem guardadas em sua memória; um campo-grandense que é a própria história da cidade, a nossa cidade, que ele descreve com tanto carinho e empenho, como se passasse a vida eternamente dentro de um ônibus, vendo lá fora a cidade se transformar, indo e vindo do passado ao presente, com um leve olhar para o futuro. Dono de memória espantosa, sem se deixar levar pela melancolia, é capaz de lembrar fatos do passado com riquezas de detalhes, a lembrança casada com a imaginação, findando em sonhos saborosos de uma Campo Grande que não existe mais.

É nos seus olhos azuis profundos que enxergo o mundo que aqui existiu, como se estivesse ao lado dele naquele ônibus, ele na janela, eu no corredor, bloco de anotações nas mãos, atento a cada palavra. E o abraço fraternal enquanto peço encarecidamente: conte mais querido Edson Contar, fale dos seus sonhos de menino, seus versos intangíveis, do caminho leve que enxerga através da janela da vida.

**Crônica publicada no jornal Correio do Estado de 20/03/2014.

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