As Cigarras não cantam, encantam

O canto da cigarra não é um canto, é um chamado de amor, de sobrevivência, coisas que,quando meninos, não nos damos conta. Eu sei que elas ainda estão lá fora neste exato instante, mas o som não é mais o mesmo que aquele do passado, parece que hoje as cigarras cantam tentando cultivar o silêncio. Era diferente quando eu era criança. Ou então estou envelhecendo e perdendo o encantamento de menino e o que me resta é a saudade. Qualquer dia vai aparecer um desses meninos novos, cheios de idéias e coisas inovadoras, que, curioso por conhecer o antigo canto da cigarra, inventará uma máquina que nos faça viajar no tempo, só pra espiar, sentir novamente, sem poder modificar nada, apenas ver, rever, e talvez chorar de emoção. E enquanto chove lá fora, só mais uma vez vou invocar o passado – prometo -, embora um dos meus defeitos seja esquecer certas promessas que no fundo, bem lá no fundo, sei que não vou cumprir. 

Cigarra

Antes da mais nada, devo dizer que resolvi escrever sobre as cigarras apenas porque está chovendo e quando chove sinto isso, um não sei quê nostálgico que me leva aos poucos para o fundo do quintal da minha avó, no bairro guanandi, exatamente no ano de 1975, em não sei qual estação, provavelmente primavera, porque vejo os campos floridos e as folhas das arvores dançando com se estivessem vivas. Eu tinha dez anos, apenas dez anos, andava descalço, sem preocupações! O lugar não existe mais, porém, a chuva incessante faz a mágica de trazê-lo novamente diante de mim, no exato instante que, junto de alguns amigos, amarrava nas patas da cigarra um longo fio de linha de costura. Era um tempo que as cigarras faziam a festa da gurizada. Quando chove sinto isso, aquele cheiro inconfundível de terra molhada e casca de arvore escapando aos poucos pelos dedos, o entardecer de um bando de bichos alegres, zunindo nas galhadas enquanto o dia ia acabando aos poucos no horizonte. Hoje as cigarras são outras, com outros cantos. E não existem moleques em torno de árvores a girar o bicho pelo ar. Lembro sem muitos detalhes que existia na rua de baixo outro grupo de garotos. Não nos dávamos com eles, uma rixa que nasceu sem ninguém saber ao certo o motivo, mas pulsa na minha mente que aqueles garotos eram muito malvados, amarravam bombinhas de São João no rabo de vira-latas e acendiam pra ver o bicho fugir desesperado, e riam a cada estouro enquanto o pobre animal arranjava um jeito de respirar em meio à fumaça de pólvora. Perto disso, o que eu e meus amigos fazíamos com as cigarras, era inocente. Pobre bichinho. Hoje sei que a brincadeira era na verdade tortura, que o que nos encantava não era canto, mas sim chamado de acasalamento, o macho tentando atrair a fêmea, sem perceber que ali por perto andavam uns guris descalços prontos para traquinagens, então, ganhava aquele que amarrava a cigarra maior, do mais belo canto, das asas de zumbido maior, e girávamos, girávamos, fazendo o bicho cantar, gritos de desespero que aos nossos ouvidos infantis se tornava música de indecifrável prazer. E agora volto do quintal do passado, Lolinha, minha avó, ficou lá, acenando com aquele riso de bondade estampado no rosto, quase quarenta anos depois, vejo tudo mudado e um silêncio que apenas quer dizer que você, pobre cigarra, pode enfim se calar…Espero a próxima chuva, de preferência num desses dias de nada a fazer, e que o canto das cigarras chegue devagar, invadindo o ouvido, preenchendo a mente, trazendo o passado de coisas que insistem existir na nossa mente, num canto seguro chamado saudade.

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