O vento assopra o tempo

Tenho uma relação muita próxima com o tempo, como se ele fosse aquele amigo inseparável, do tipo briguento, invisível, porém presente, parceiro, quase inseparável. Penso que o vento conduz o tempo, passa assoprando, trazendo tudo de volta. Gosto de me definir como cronista, porque é na crônica que posso evocar a presença desse amigo antigo. E ele chega de repente, montado na brisa e basta fechar os olhos para enxergá-lo melhor. O tempo não precisa de luz, precisa de sentimento. Já perdi a conta das peças causadas por esse amigo em forma de dúvidas sem fim: como era o nome daquele professor de geografia? Qual cemitério está enterrada a Aparecida? A Maria sem troco era de Coxim? Tento escrever algo sobre coisas atuais, dessa briga insana que vemos sempre no noticiário, dar minha opinião sobre algum assunto importante. Fico postado diante do espelho, recolhendo ideias, me transformo num repórter da TV, daqueles antigos, cabelo engomado, terno, lenço na lapela.Ameaço a imagem: não me venha com perguntas difíceis, nada responderei de concreto, algo do tipo: “o que você acha do aborto?”, não tenho opinião formada, às vezes penso que sim, às vezes acho que não.   Maria sem troco era de Rochedo, assopra o vento no meu ouvido. Ontem já é passado, mas é apenas um ventinho, posso apanhá-lo pela mão, até o exato instante que me aproximei do sujeito barbudo na prateleira do mercado. Pena, não posso mais comer marron glacé, mas o barbudo pode, ele apanha logo duas latas, joga no carrinho e sai assoviando uma antiga canção. Que canção é aquela? Apanho o doce de banana sem açúcar e sorrio da minha desdita: onde já se viu doce sem açúcar? Aparecida morreu de AIDS, tinha só trinta anos e eu ainda me recordo com exatidão da sua risada, do brilho dos cabelos – negros como a noite sem luar – e da vez que ela saiu em desabalada carreira após confessar que gostava de mim. Tínhamos apenas doze anos e nos bastava a inocência do sorriso. Saudades. Vamos tempo, dê um tempo, me deixe falar sobre coisas atuais: sensacional o cara que inventou o pen-drive.  Certamente é japonês o fabuloso inventor. O mundo pode ser guardado num pen-drive e tenho absoluta certeza que outro japonês genial irá inventar algo ainda mais incrível, talvez uma tela diante dos olhos, daquelas com cortinas se abrindo ao simples digitar de uma senha, mostrando o mundo paralelo; por lá, surgem pessoas queridas que já morreram, caminhando sem perigo, sorrindo, armadas de um leve aceno, passeio sem voz – as paredes que separam as dimensões impedem a propagação do som – numa espécie de paraíso. Pensando bem, não seria tão genial assim, alguém iria propor quebrar todas as regras, abrir passagem a tiros de metralhadora, afinal, menos os pecadores, todos temos o direito de morar no paraíso. Não existe pecado na mente de cada um.  O vento sopra, o tempo me alerta, talvez a tal cortina pudesse mostrar o passado… Seria maravilhoso, mas não quero mesmo falar do passado, mesmo agora que me recordei da canção assoviada pelo barbudo, não lembro o nome, mas sei que é do Guilherme Arantes.  Como envelheceu o Guilherme Arantes! Agora, parece um senhor. Ah, mas que bobagem, me alerta o vento, ele é de fato um senhor, tem quase setenta anos, embora o tempo insista sopra na minha cabeça a imagem dele ainda moço, cabelos encaracolados jogados ao vento, tocando piano e cantando “Planeta água”. Tempo, você é tão cruel… Algo atual me ocorre, mas me calo, evito comentar sobre as reuniões familiares, na verdade, um encontro de tablets e smartfones.  Então apago tudo e fico prestando atenção na porta que dá acesso à varanda, lá fora o vento sopra livremente e eu sei sobre o tempo, sobre o vento, alguma coisa da brisa, mas nada sei sobre o suspiro, esse que escapou agora da minha alma; dor aguda, saudades do ontem. Sou salvo pelo canto do pássaro lá de fora, calando a voz do vento e devorando o passado.

Um velho adolescente

Descobri recentemente, mais precisamente no sábado passado, que sou um velho adolescente.

Isso porque me peguei grudado a tarde toda num livro da Thalita Rebouças.

A visão da escritora me fez voar, imaginar situações, me perder em dilemas, num passeio raso d’água nos olhos, encarar alguns medos eternos, até sentir novamente as transformações.

Thalita escreve para mulheres de um modo tão próximo e profundo, que conseguiu, por momentos, me transformar num velho adolescente menina.

Foi um despertar, pouco antes, na minha retina cansada, guardava a adolescência como se fosse a estátua de Antínoo, dura, fria, calada, mas eternamente jovem.

No livro, logo me identifiquei com a personagem, uma garota sem dotes de beleza, um tanto desleixada, dona dos cabelos ruins e peso acima do ideal.

Outras semelhanças apareceram durante a narrativa: a menina ouve música para sentir vontade de chorar.

Fiz isso recentemente, sem motivos aparentes, lágrima libertária, não de agonia, envolta numa música antiga e besta, de um cantor que eu desprezava quando adolescente, o Biafra, naquela parte que ele afirma existir um licor a mais no bombom.

Homem não chora! Uma ova, chora sim, mesmo na maturidade.

Trago ainda guardado alguns costumes de quando adolescente; usar roupa velha e rasgada em casa e desligar o mundo, ler, ouvir música, assistir séries de TV; visitar fotos antigas e me espantar: nossa, quando foi isso? Eu era magro em 87.

Creio, com sinceridade, envelheci bem, eu era muito feio na adolescência, e fazia bullying comigo, me olhava no espelho e dizia, “tu é horrível, desajeitado, seu cabelo ruim lembra nuvens de tempestades”, e depois ria da própria desfaçatez.

Hoje me acho bonito, mesmo quase sem cabelos – algo libertador, no meu caso – e com essa barba rala que não tem nada a ver com rebeldia, é coisa de vaidade mesmo.

Se existe algo bastante mudado é a minha capacidade atual de me amar, de olhar para o espelho e afirmar: cara, você está lindo!

Narciso me incorpora todas as manhãs.

Ser adolescente é dolorido para todos, mas, para as meninas, Thalita me ensinou que o baque é maior; a transformação para mulher requer o apego o quanto antes à maturidade; a menstruação é um sinal assustador, noves fora o crescimento dos seios, do quadril, e os olhares ameaçadores que começam a surgir em volta, de repente, sem avisar.

Thalita Rebouças é doutora no assunto.

Declaro, no entanto, o sofrimento do eu menino daquela época.

De repente, espalharam-se em mim as espinhas, a espantosa percepção das curvas do avesso, das medidas, de cada detalhe: a menina franzina e irritante, moradora da vizinhança, de repente se tornou uma encantadora fêmea fatal, me fazendo suspirar profundamente.

Será que ela ainda se lembra de mim?

Era um tempo de solidão, de descobrir detalhes nunca antes imaginados; a luz da lâmpada atraia os insetos, medrava a escuridão, mas nada afastava alguns pensamentos.

Fui salvo pela erudição: muito mais do que banho gelado, a leitura acalmava a febre.

Quase adulto, imaginava a maturidade tal e qual a quinta sinfonia de Beethoven, a reta final, da qual queria distância.

No entanto, cá estou.

Acho que Biafra me fez chorar por causa disso: o licor ainda vivo, perdido em meio ao bombom.

Imagino Beethoven, mas escuto Biafra.

“O que sai de mim vem do prazer, de querer sentir o que eu não posso ter…”, o que ele quis dizer com isso?

As folhas da árvore da minha adolescência ainda tremem, esparramam o orvalho no soprar do vento, pingos daquela mesma chuva que me arrancou o sono, restando em mim o pensamento incerto: será que existe por ai outro adolescente velho, quieto e atento, tal e qual a estátua de Antínoo, ouvindo, entrelaçado por pequenos tremores, a sinfonia de Beethoven?

Fechei a última página, já sentindo saudades da menina do livro e à procura do resto de licor perdido dentro do bombom.

Enquanto as pandorgas singram os céus…

No final da tarde, da varanda de casa, contemplo o céu.

Simone de Beauvoir certa vez afirmou: “O inconsciente não tem idade”.

Penso nessa frase enquanto ergo o nariz para cima e tento sugar na brisa gelada todos os cheiros da natureza.

Minhas vistas se embriagam, vejo várias pandorgas singrando os céus.

Eu nunca soube fazer pandorgas, por receio da eficiência alheia e também porque os moleques mais velhos não permitiam.

Gostava da eufonia provocada pela rabiola de plásticos coloridos enquanto a linha era esticada: o gemido da vida ganhando forma num brinquedo colorido.

Aquele barulho da subida aos céus ainda navega na minha mente.

Ficava então rodeando a brincadeira, até que alguém me permitia apanhar a latinha envolta em linhas banhadas de cerol e meu coração pulsava acelerado: agora, a pandorga, presa a uma tênue rede de linha, dependia da firmeza da minha mão. Era como se a vida pulsasse no céu.

No anseio do momento, muitas vezes os dedos sangravam, mas eu nem ligava, eu era criança, ah, eu era uma criança soltando pandorgas…

O tempo malvado passou e de repente sou esse senhor de cinqüenta anos, com dores no joelho e nas juntas do corpo, sem nenhuma linha nas mãos para puxar.

Quanto tempo ainda me resta para ficar na varanda de casa observando as pandorgas?

Há certa gravidade naquele cheiro no ar, porque o conheço tem um bom tempo, desde quando eu era criança.

O cheiro é o mesmo, já eu, abismado, não enxergo os rumos do vento.

E dano a riscar na cabeça vãs filosofias: tal e qual a pandorga, nossa vida é segura por um fio.

Às vezes o cerol inimigo corta a linha, outras vezes a linha se rompe e a impressão é de uma quilha cortando a onda fina do rio; basta um sopro mais forte do vento para a pandorga se soltar, devagarzinho, bailando no ar, até sumir no infinito.

Súbito, uma pandorga caiu estraçalhada nos fundos do quintal.

“O inconsciente não tem idade”, quando dei por mim, já estava com ela nas mãos.

Alguns ajustes e ela voa novamente – pensei num sorriso -.

Chamei o meu filho para brincar de soltar pandorga, a custos o tirei do computador. “O nome disso é pipa, pai!” ele disse, enquanto observava eu agachar com dificuldade, ajeitar as tiras do bambu e colar cuidadosamente o papel de seda, reclamando das vistas cansadas, com o dedo indicador pregando mais fundo os óculos no rosto.

Para mim sempre será pandorga.

Dias atrás, após uma inesperada crise de labirintite, o susto foi tão grande que pensei no fim da linha. Dominado pela tontura, vi de perto o pior, imaginei repousar no lugar dos esquecidos, prendi as mãos nas paredes, como antes as prendia com firmeza entre a linha que segurava a pandorga.

Por momentos me deixei levar pelo medo de morrer amanhã, mas hoje já é amanhã e prossigo tão vivo bem mais do que antes.

A tortura mandei embora e armei no rosto um sorriso de criança ao perceber que posso olhar para o céu, rever as pandorgas e cheirar o vento sem sentir tontura.

Enquanto as pandorgas singram os céus, cá embaixo eu cuido da vida, pedindo para o tempo passar devagar, na busca por aquele cheiro bom de antes e que ainda sopra no vento que envolve a varanda da minha casa.

A tirania dos segredos

Ouvi um velho sábio dizer que todos temos segredos.

Esse mesmo velho sábio afirma que nós, humanos, não sabemos guardar segredos.

Então fiquei um bocado de tempo analisando se eu tenho segredos guardados num canto da mente, trancado a sete chaves, repletos de senhas indecifráveis.

Segredos são solitários e singulares, concluí.

Não vou contar quase nada daquilo que me surgiu à mente, apenas deixo como pista o balançar de cabeça, de um lado para o outro, o riso fácil escapando de meus lábios e a lembrança que muitas vezes me surge em sonhos, a imagem trêmula, mas ainda real, tão assustadora que parece ter vida: um gavião pinhé montado no lombo de um boi, sem ser incomodado, passeando pelo pasto encharcado de lama, em torno dos capins das pontas secas, espalhados ao redor da Sapolândia, em meio aos quais nos escondíamos, um bando de guris descalços, armados de fundas, prontos para acertar à pedradas o gavião.

– É a sua vez! Gritou o menino mais velho, apontando o dedo para mim.

Ainda hoje sinto o cheiro da borracha esticada, o pedaço de pau em forma da letra ipsilon, envergando até não mais poder e o suor quente que da minha testa caía, inundando os olhos, cegando tudo ao redor e eu, que sempre fui ruim de mira, talvez por conta do anseio e das mãos trêmulas, acabei acertando bem no meio do peito do gavião pinhé, que caiu abatido e restaram os gritos de triunfo dos meus amigos, empolgados por ser aquela a primeira vez que eu fazia alguma coisa certa.

O barulho dos nossos pés amassando os gravetos secos estirados pelo caminho, se confundindo com os gritos da molecada em correria, ainda consigo ouvir com exatidão, bem como a dor nos pés a cada pisada em falso, nada se comparado à euforia do momento, o prazer inenarrável de ter abatido o gavião.

Mas quando cheguei perto, vi o sangue escorrer do peito do animal, debruçado, abraçado aos últimos suspiros, tentando voar, mas as asas não lhe obedeciam e eu tremi diante do sangue que escorria do seu peito, tentando controlar o choro que ameaçou escapar dos meus olhos.

O boi tentava reavivar o pássaro com as patas e aquela imagem me perseguiu durante muito tempo, até que alguém decifrou aos meus ouvidos o enigma: diferente daquilo que eu imaginava – uma incrível amizade entre bichos completamente diferentes – o gavião comia os carrapatos no lombo do boi, causando alívio.

O menino mais velho apontou novamente para mim: “deixe de ser marica, senão vou contar na escola que você é um chorão”.

Engoli todo o sentimento e me pus de pé diante dele, a lágrima transformada em ira, já armado pela recordação de pouco antes, quando ele, se divertindo do meu rosto de profundo espanto, revelou, sem meias palavras, que era mentira a história da cegonha, e para que eu nascesse, terríveis atitudes foram tomadas por meu pai e minha mãe enquanto todos dormiam, certamente numa noite tenebrosa de lua cheia, que se transformou em tempestade sem fim, até que fosse criada “a criatura feia e desengonçada” que eu era.

Esse mesmo menino mais velho foi testemunha da minha cara de medo quando as nuvens de chuva se formavam sobre nossas cabeças e o pavor que eu sentia a cada raio, a cada trovão.

Dias atrás reencontrei esse personagem dos meus tempos de infância, sentando no banco de um boteco, copo de conhaque ao alcance das mãos, agora um senhor grisalho, pouco mais velho que eu, porém aparentando bem mais; estava tudo ali, naquele olhar murcho, perdido num começo de catarata, mas que manteve a altivez ao me reconhecer e eu novamente esmoreci, fraqueza que aos poucos consegui dominar, já sabendo que dentro daquela mente desfilava meus tenebrosos segredos de infância: ele sabe que eu matei um gavião pinhé.

Sabe também que eu chorava por qualquer coisa.

Ele se levantou e partiu na minha direção, as pernas trêmulas, mas o mesmo rosto de superioridade.

Quando recebi o aceno sorrindo, devolvi, num gesto frio, sereno e indiferente, o resto de mágoa que guardei, sentimento que me vi liberto assim que meus passos seguiram adiante e ele ficou para trás, como se fosse aquele boi, sentindo a falta do gavião pinhé a lhe bicar os cantos do lombo.

CORPOS NUS

Sonia mora no apartamento 17 do terceiro andar.

Valdir também mora no terceiro andar, no apartamento 26.

Nunca se viram.

Sônia tem o corpo bonito, mas o rosto é de velha. É timida, avessa a amizades, só namorou uma vez.

Valdir faz fisiculturismo desde muito moço, tem o corpo bonito, mas a testa é larga e tem poucos cabelos. Não se dá bem com mulheres, é desajeitado, já quebrou a costela de uma dama numa dança.

Os dois já passaram dos quarenta.

Sônia dorme nua, com o rosto escondido embaixo do travesseiro, apenas os olhos escapam em busca do reflexo do corpo de Afrodite refletido no espelho.

Valdir também dorme nu, costume que carrega desde pequeno, porque roupa lhe incomoda e causa suor.

Na noite que o edifício pegou fogo, se encontraram pela primeira vez, nus na calçada, os olhos que não despregavam um do outro, indiferentes ao tumulto, aos gritos de desesperos e ao atropelo da rua. 

Nus.

E o fogo da paixão avassaladora se apresentou, despido de qualquer tipo de pudor.

O FANTASMA PERTURBADO

João Albino era um sujeito grosso.  Arrotava em público, coçava o saco, cuspia. Achava que aquelas atitudes eram próprias do macho que se considerava.  Só temia a justiça divina. O pastor lhe havia garantido que aquele que aceita a palavra, tinha lugar guardado no céu. E ele não só aceitava a palavra, como fazia questão de divulgá-la, insistindo converter quem relutavam à ideia. Em pouco tempo se transformou num líder que planejava ataques a outras religiões, especialmente aos adeptos da umbanda e candomblé, que viram seus templos incendiados e alguns membros atacados ferozmente por vultos encapuzados.

João Albino acreditava que família era exclusivamente formada pelo homem, a mulher e os filhos. Casado com Justina tinha com ela quatro filhos.  

Pensava numa forma de castigar uns guris afeminados que viviam por perto, na certeza que estavam dominados pelo demônio. “Gay tem que apanhar até morrer!”, garantia a todos, obtendo a concordância de alguns e o desprezo de outros.

Contudo, João Albino acabou enfeitiçado por uma paixão de adolescente, fulminado por Cecília, moça fogosa e voluptuosa que fazia na cama coisas que Teresa sequer admitia existir.  Era uma morena assanhada, da bunda enorme, os peitos escapando pela blusa fina e a boca carnuda que prometia delírios. Usava roupas provocantes e garantia que todas as suas calcinhas eram vermelhas. João enlouqueceu. Sempre foi fascinado por calcinhas vermelhas. Desde o primeiro encontro se amaram de todas as formas, sempre no final do expediente, apressados, porque Justina não aceitava que o marido demorasse em chegar a casa.

Encantado com a destreza de Cecília na cama e hipnotizado pelas calcinhas vermelhas, João não admitia o pecado, apenas um pequeno deslize, que uma simples oração apagava.

Havia buscado distância da irmã Romena, que desde pequena tinha visões de gente morta e insistia prosseguir naquilo que ele considerava o maior dos pecados: “é o diabo que ela vê”, afirmava a todos, enquanto balançava a cabeça em forma de lamento.

Numa tarde de domingo, a pretexto de participar de um culto exclusivo aos homens, caiu no colo de Cecília num hotel vagabundo perto da antiga rodoviária.

“Fizeram tanta sujeira, se lambuzaram a noite inteira”… E caíram num sono profundo.

Quando acordou, João Albino percebeu que o dia invadia o quarto e bateu o desespero, já formulando na cabeça o que diria à esposa, qual a justificativa que caberia a ausência de uma noite inteira. Na pressa, encontrou a cueca ensopada da sujeira da noite anterior, só de tocá-la, ficou com os dedos grudados. Num torpor, apanhou no chão a calcinha vermelha de Cecília que com esforço fez caber na cintura.  Saiu sem se despedir, deixando o corpo nu da amante estirado na cama. Na pressa e com os pensamentos perdidos em busca de desculpas, não percebeu que no boteco da esquina acontecia um tumulto. Dois bêbados brigavam por causa do jogo de sinuca. Um deles estava armado e atirou. A bala passou raspando a cabeça do oponente e atingiu o peito de João na outra calçada.  João tombou de bruços, deixando aparecer na bunda cabeluda a calcinha vermelha. Alguém gritou: “conheço esse homem. Ele é da minha igreja”. Um mendigo cuspiu antes de afirmar: “Pode ser da sua igreja, mas não é homem, está usando uma calcinha vermelha”. Naquele mesmo instante o espírito de João abandonava o corpo. E quanto mais pessoas juntavam em volta, aumentavam os comentários. “ quem diria, tão dado a machão, dava a bunda na rodoviária”, “nossa, ainda ontem vi ele muito vivo, chutando um travesti”, “é o irmão daquela feiticeira que vê fantasmas”, “ conheço a mulher dele, dona Justina, uma santa”.

 O fantasma de João voou entre as cabeças, gritando desesperado, para ninguém ouvir. Quando a polícia chegou, a multidão se dissipou, mas os comentários maldosos continuaram, agora através dos policiais: “quem é que come uma bunda cabeluda dessa?” inquiriu o cabo, “pensei que já tinha visto de tudo nessa vida…” acrescentou o soldado, “credo, a calcinha tá cheirando a porra”, finalizou o sargento.

No velório, ninguém da igreja, quase nenhum choro, poucos lamentos.

Romena, a irmã do defunto, tentava convencer a todos da macheza do irmão. Dizia que naquele momento conversava com o espírito de João Albino, garantindo, num tom triste de voz, que ele por ali estava atormentado muito mais pela vergonha que com a própria morte.

Enquanto a dita feiticeira tentava explicar o uso da calcinha, lhe deram as costas.

Recordavam com riqueza de detalhes as antigas afirmações do falecido e concluíram que tudo o que Romena estava afirmando, não passava de mais uma zombaria do capeta.

Já faz um bom tempo dessa tragédia e até hoje Romena segue tentando consolar o fantasma perturbado do irmão.

No túmulo de João Albino, resta pendendo uma calcinha vermelha, soprada pelo vento, última homenagem que lhe prestou Cecília, como símbolo do segredo que não podia revelar.

ANOS OITENTA – SEGUNDO TEXTO

Não, eu não vou reclamar de nada. Eu era muito novo naquele inicio do ano de 1972, recém havia completado dezessete anos.  Acontece, porém, que eu estava apaixonado e um jovem apaixonado se perde facilmente no mundo de fantasias que cria e no qual existia apenas a linda moça dos longos cabelos negros, dos olhos miúdos e dona da voz que calava as outras sereias. Sim, eu era novo, mas era sonhador e determinado de um tanto que não me incomodei quando ela me apresentou o cabeludo que chamou de amigo. Simpático ao extremo, Pepeu apertou com força a minha mão e sem querer acabou ferindo o meu dedo anelar.  Quando ela me convidou para ir morar no sítio de Jacarepaguá, sorri feito o menino que eu era já convencido que o meu caminho seria o mesmo pelo qual Bernadete seguisse. No fim daquele dia, ela me ofereceu um baseado. Fiquei com medo na hora, mas acabei cedendo e traguei levemente a bagana.  Ela riu da minha falta de jeito e alongou as pernas, deixando escapar, pela fresta do vestido branco, a coxa roliça que paralisou meu olhar: “fume mais um pouco. – abriu um leve sorriso e os olhos miúdos brilharam – Você pode fazer tudo, desde que possua e não seja possuído, entende?” e me passou de novo a bagana que dessa vez traguei com gosto e logo depois cai numa risada desenfreada, mergulhando meus dedos num copo de cerveja. Enquanto Pepeu dedilhava com total desenvoltura as cordas do violão, perdi um longo tempo imaginando como faria para o meu cabelo crescer como o dele, ser brilhoso do mesmo tanto e a cara que eu faria quando fosse assoprar as mechas que certamente dançariam na minha testa.  E o mundo se calava por instantes quando Bernadete resolvia cantar. Ela começava fechando os olhos e logo depois parecia adentrar num outro mundo, gemendo de mansinho, balançando a cabeça, fazendo a dança dos cabelos e eu me via completamente perdido de paixão. Cantou “A rosa e o espinho” de um jeito diferente, só dela, e me perdi num mundo só meu e de Bernadete, que no final deslizou pelo chão até os meus braços e adormeceu fazendo carinho na minha mão fedida de cerveja. Não sei quanto tempo passei junto dela, mas até hoje, quando penso, imagino a eternidade sob as luzes do campo, perseguido pela sombra do rapaz que tocava guitarra para a moça dos cabelos negros cantar e dançar. Eu ignorava completamente os outros cabeludos que moravam junto dela no sítio de Jacarepaguá. Apenas Pepeu merecia minha atenção, talvez porque era exatamente o único que prestava atenção em mim e que, sem perceber minha paixão pela mesma moça, confessou, num cair de noite, depois de duas tragadas seguidas no baseado que eu havia recém terminado de fazer, a fina dor do lado esquerdo do peito que aos poucos lhe consumia sempre que seus grandes olhos cruzavam com os miúdos olhos de Bernadete. Eu não queria admitir, mas era perceptível que ele era correspondido enquanto eu, ah, pobre de mim, era apenas uma das tantas pessoas que ela devotava carinho. No madrugada que fui embora, meus passos finos e o jeito cuidadoso com que desviei dos entulhos perto da porta, não foram suficiente para que escapasse despercebido. Paulinho olhou para mim no seu jeito desconfiado e cutucou Luiz Galvão que cochilava ao seu lado. Luiz era o mais avoado, parecia sempre flutuar, como se tivesse uma nuvem permanente sob seus pés. Coçou os olhos antes de me perguntar:
“- Aonde você vai, guri?”E eu respondi com a boca ainda grudada de saliva da noite mal dormida.- Vou-me embora, acabou chorare.E Moraes se ergueu atrás dele:“- O que você disse?”Estava com a cabeça zonza e não consegui repetir a frase. Um senhor magricelo que passou a noite tocando violão e cantando com os cabeludos, envoltos numa densa nuvem da fumaça do que chamou canabis, apanhou as chaves do carro num canto e ordenou:- Venha, estou indo para o centro e vou lhe dar carona.Obedeci sem questionar. O homem magricelo tinha no timbre da voz uma espécie de ordenança, o que dizia se transformava numa ordem inegociável.  No caminho, o homem, que se chamava João e era famoso, foi me contando algumas histórias e rindo a cada tropeço meu, que concordava antes que finalizasse a pergunta, coberto pela falta de resposta, ora e vez coçando os olhos que ardiam, estranhando cada vez mais o seu jeito um tanto intimista, como se eu  fosse uma espécie de velho conhecido. Pisava destemido no acelerador e falava ao mesmo tempo, mantendo o rosto virado na minha direção, encolhido no banco do carro, apavorado ao perceber que ele avançava em todos os faróis fechados, sem se importar para o meu rosto de espanto, que aumentou consideravelmente quando ele freou abruptamente o carro diante do único sinal verde do caminho, no exato instante que à nossa frente cruzou um caminhão em alta velocidade. Respirei fundo, ajeitei o corpo e limpei da testa, com as costas das mãos, o suor que escorria. Só então olhei para o seu Gilberto e vi diante de mim uma espécie de anjo. Não havia outra explicação para aquele sorriso aberto, como se soubesse exatamente o que iria acontecer.  Os dedos finos, que tocava violão como ninguém, engatou a marcha para frente e pisou novamente no acelerador, calmo dessa vez e eu fiquei admirado quando ele começou a assoviar as mesmas canções que desafinava ao cantar, sem se importar com que pensavam as outras pessoas.  Seu rosto enigmático se abriu num sorriso quando me despedi, batendo devagar a porta do carro e baixando a cabeça, na forma do insignificante ser diante de uma divindade. Ele riu levemente antes das últimas palavras que guardei para sempre na memória.- Bernadete logo se chamará Baby e todo mundo ouvirá a sua voz.  Não fique triste, nem desiludido, ela não é de ninguém, é de todos.E acenou com os dedos tocando na testa e aos poucos foi sumindo na curva da estrada.Nunca mais voltei ao sítio de Jacarepaguá. Deixei que o tempo apagasse a desilusão. Só tempos depois, no começo dos anos oitenta, voltei a pensar em Bernadete, que agora se chamava Baby e cantava em todas as rádios algo bem próximo das palavras que certa vez assoprou nos meus ouvidos, provocando calafrios: “Você pode fazer quase tudo, contanto que você possua e não seja possuído.”

ANOS OITENTA – Primeiro texto

EM HOMENAGEM A JOHN

“Será que o King Kong é macaca”? Perguntou Julio Barroso às paredes. Depois apanhou o charuto cubano que levou à boca, tragou profundamente e assoprou a fumaça densa para cima, sorrindo para Alice Pink Pank.  Lobão (antes da overdose de estupidez que lhe corrompeu os neurônios) assistiu à cena inquieto: Estava apaixonado por Alice, mas adorava Julio como a um irmão. E Alice era namorada do amigo. “Nem sempre se vê mágica no absurdo”, pensou Lobão. E como Julio não parava de dançar, absorto num raro som do vinil, o inovador new wave da banda Dead Boys, segurou a pergunta inquietante que mantinha a tempos na cabeça. Quando a música acabou e Julio por fim se aquietou, Lobão rasgou a dúvida. “Pô Julio, eu sei que ganhamos mal pra cacete, mas não sobra nem para obturar esse dente?”.  O líder da Gang 90 tinha um dente quebrado e nunca se importou em consertá-lo. Deu outra tragada e ajeitou os óculos no rosto, a resposta já pronta na ponta da língua, que desfilava levemente no espaço do dente quebrado.

“Essa é a marca da minha rebeldia. Quando John Lennon morreu, eu estava em Nova Yorque. Fiquei tão arrasado que saí à rua chorando feito criança. Quando encontrei dois sujeitos que não estavam nem ai para a tragédia, sacudi os dois pelo pescoço e gritei: “Lennon morreu, porra,  o sonho acabou, o mundo acabou! E vocês nem ligam?”Daí o maior deles me deu um murro na cara e quebrou o meu dente. Entendeu agora o porquê que preservo meu dente quebrado?” Lobão não respondeu nada, mas sentiu vontade de também quebrar um dente, não só por causa de Lennon, mas pela rebeldia do amigo Julio Barroso. Quando ficaram a sós, Alice chegou junto de Julio e sussurrou-lhe no ouvido: “John Lennon? Você me disse que o dente quebrado era em homenagem ao John Lydon (líder da banda Sex Pistols, que também tinha o dente quebrado)…  Julio beijou Alice Pink Pank na testa, com ternura, antes de responder:” O importante é que foi por causa de John, não importa qual dos dois”.  E sorriram antes de fazer amor. No dia seguinte, curtindo a rebordosa, Julio pensou confessar que havia quebrado o dente ainda adolescente, por motivos fúteis numa briga no banheiro da escola, e que nunca arrumou o dente quebrado porque tinha medo de dentista. 

CENAS DO BAR – SANDRA E ABELARDO ou A BELA E O FEIO

Aos curiosos, digo que o nosso bar se chama Rui Bar Bossa e fica num canto oculto da cidade. Só não vou revelar o endereço que é para não lotar o nosso sagrado templo. Digo apenas que o lugar é aconchegante: A porta que dá acesso é daquelas que ficam presas ao meio dos pilares, que se abrem quando a tocamos, lançando um ligeiro rangido, como nos filmes antigos de faroeste. O piso de taco de imbuia deixa tudo limpo e brilhando. Pra chegar até o balcão, é necessário driblar várias mesas dispostas no salão principal, que para nós, da turma dos anos oitenta, de nada servem. Gostamos mesmo é do balcão e suas cadeiras altas, onde a bebida é servida com maior rapidez. Chico vai lá todos os dias depois das sete da noite. Eu só vou quando sinto vontade de beber e conversar com meu amigo de infância. Ou seja: quase todos os dias. Chico é mais velho do que eu, coisa pouca, nem dois anos. É um sujeito que não se deixa levar por problemas, prefere as coisas mundanas, não esquenta a cabeça com quase nada, leva a vida na maré mansa. Por isso parece que é mais novo do que eu. Se bem que ele tem cabelos, que começam a ficar grisalhos, mas estão lá, enquanto os meus se foram no início dos anos noventa. Hoje, ao chegar ao bar, de longe percebi uma mulher ao lado dele. Tão logo me aproximei, os gestos exagerados com as mãos e o inconfundível vozeirão, foram suficientes para identificá-la. Sandra foi, e ainda é, uma mulher muito bonita. Possuí nossa mesma idade, talvez um ano mais nova que eu. Quando jovem, era constantemente confundida com a Cláudia Raia, até deu autógrafo certa vez, assim que desceu no aeroporto de Congonhas, para uma moçoila que não acreditou que ela não fosse a famosa atriz. Ela riu da situação, foi lá e escreveu em letras garrafais: “Sandra Torres, não sou o raio da raia”. Isso porque detestava a comparação: “Meus lábios são mais carnudos, minhas pernas mais roliças e não tenho voz de traveco”, dizia com ligeira ira. Quando a conhecemos, caímos de amores, sentimento que ela tratou de abortar no princípio: “Somos amiguinhos. E amiguinhos não trocam beijinhos” – maldita verdade. E logo a amizade se tornou profunda, daquelas que a gente pensa que a mulher é homem, e vice e versa. A extrema sinceridade é uma das mais marcantes características dessa nossa amiga. Firme e decidida, não leva desaforos para casa e faz questão de ouvir críticas, principalmente quando feitas por alguém da nossa turma de amigos. Certa vez, o Chico, que também sempre foi muito franco, lhe fez uma pergunta direta: “Você é tão bonita. Por que não tem namorado?” A resposta seca: “Ainda não encontrei o cara certo”. O tempo foi passando e nada dela arranjar namorado. Colocava defeitos nos pretendentes e depois, para nosso deleite, nos contava um a um. Alguns são inesquecíveis: Paulinho Bafo de Onça era um tipinho chato, metido a rico, loiro dos olhos claros, pensava que todas as garotas caíam a seus pés. Sandra detectou o problema no primeiro encontro, nas almofadas do Cine Alhambra, quando Tarzan juntou Jane num cipó, ele tentou o ataque, mas foi prontamente repelido: “cheirava podre, juro! Aquilo nunca escovou os dentes. Tentei ajudá-lo, coloquei um punhado de pipoca banhada de mostarda naquela boca fedida e a podridão só fez aumentar”. Depois do Bafo, veio Agnaldo, que todos apostamos que seria o cara. Sandra o descartou cedo: “É todo cheio de não me toques. Criado com vó. Fomos ver o jogo do Comercial e só porque mandei o juiz tomar no olho do rabo, ficou todo ofendidinho. Não serve para mim”. Nós outros concordamos, assim como concordamos quando ela detonou o André, que segundo nos contou, era muito nervosinho, queria brigar com qualquer um que olhasse para ela – o problema é que todo mundo, inclusive as mulheres, olhavam para a Sandra -. Teve ainda outro, o qual não detectamos nenhum defeito: Luiz Paulo era exemplar, bom de sinuca e de bico, gostava de viajar, tinha um bom emprego, ganhava bem. Sandra conseguiu encontrar defeitos: “Faz muito barulho quando mastiga. E coloca os cotovelos na mesa durante as refeições, parece um gafanhoto”. O tempo foi passando e nós já não contávamos que ela conseguisse arranjar namorado.Até que um dia…
Era véspera de um feriado e estávamos todos tomando umas geladas no antigo bar que frequentávamos, em meados dos anos oitenta. A turma estava toda lá, quando ela apareceu trazendo pelos braços o Abelardo. Ficamos surpresos. O sujeito era muito feio; baixinho, ligeiramente careca e um tanto barrigudo. O que mais chamava a atenção no Abelardo era a lábia. O sujeito falava e todos escutavam com atenção. Metido a poliglota, na verdade, falava um pouco de tudo, misturava guarani com espanhol, inglês com alemão e italiano com russo. Sandra caiu de amores e com ele se casou. Dias antes, estávamos numa festa e um tanto alterados pelo excesso de álcool. Sandra foi ao banheiro, Abelardo a acompanhou. Naqueles tempos eu tinha a péssima mania de incorporar uma espécie de filósofo tupiniquim: falava empolgado frases elaboradas no momento, que fediam álcool, e quase sem sentir, tendo a feiura do Abelardo como tema, ergui um braço rumo ao céu e lasquei: “Deus, todo poderoso, antes de criar o belíssimo cavalo, fez um rascunho, que acabou se esquecendo de destruir e assim, deu vida ao rinoceronte.” Todos me olharam encantados. Prossegui na empáfia, caprichando no tom: “Antes de fazer Adão, o Senhor andou praticando uns rascunhos. Deu no Abelardo, que Ele também acabou se esquecendo de jogar fora. E eis ai o bicho feio que come a Sandra.” Ninguém riu, apesar da vermelhidão no rosto. É que justo naquele instante, o casal retornava do banheiro, passos quietos que não ouvi. Nada disseram e eu imaginei que talvez não tivessem me escutado. A vida prosseguiu, tiveram três filhos, um atrás do outro, todos meninos, bem parecidos com o Abelardo e eu batizei um deles, acho que o do meio. E agora lá estava ela, discutindo alguma coisa com o Chico. Aproximei-me com cuidado, se a discussão fosse sobre política, daria meia volta e retornaria pelo caminho de casa. Não tive tempo. Sandra me avistou e abriu os dois braços numa alegria que era própria dela, o sorriso estampado na boca bonita, oferecendo todo o carinho que cabia naquele corpo imenso. A discussão nada tinha de política, divergiam sobre o tema mulher ao volante. Chico afirmava que mulheres servem para um bocado de coisas, até para presidente da república, menos para dirigir máquinas. E incluía motos, barcos e aviões. Sandra se segurava nas estatísticas: “mulheres provocam menos acidentes de trânsito”, e o Chico se divertia ao responder:
– Claro, oitenta por cento dos carros são guiados por homens.
Sandra mordeu o canto dos lábios e tomou um gole de cerveja. Depois quis saber a minha opinião. Tentei escapar, mas ela foi incisiva:
– Fale, seja franco, não fique em cima do muro.
– Bom… Algumas mulheres realmente são ruins ao volante.
Ela bateu com o copo na mesa e eu completei apressado, já usando do meu estratagema filosófico:
– Isso tem explicação. É o instinto materno. As mulheres tem muito medo de ferir outra pessoa, agem por instinto, cuidam da vida muito mais que os homens e acabam se complicando ao dirigir.
Os dois trocaram olhares sérios que durou poucos segundos. Logo depois caíram na gargalhada. Nos cantos dos olhos de Sandra, vi lágrimas escorrendo, provocadas pelo riso desenfreado. Quando por fim acabou de rir, virou-se para mim naquela sinceridade habitual.
– De todas as suas filosofias baratas, essa foi a mais tola. Até mesmo que daquela vez que chamou o Abelardo de rascunho de deus.
Depois de décadas, agora eu sabia que eles escutaram o que eu disse tempos atrás. E nem pude me desculpar, logo ela apontou para a porta do bar que se abria dando passagem ao Abelardo:
– Venha, meu bem, vamos tomar umas geladas com esses dois machistas duma figa.
Abelardo me cumprimentou com abraços:
– Aparece lá em casa, você está sumido. Seu afilhado vive perguntando sobre você.
Respondi que sim, mas omiti que só iria quando me lembrasse qual dos três meninos era o meu afilhado. Minha mulher certamente sabe, pensei afinal, com ligeiro alívio.
E fiquei olhando para o Abelardo. Agora ele não parecia tão feio. o passar do tempo lhe fez bem.
Garçom, mais dois copos! Pediu o Chico.
E ficamos horas jogando conversa fora.

Autor: ANDRÉ LUIZ ALVEZ

O confinado – Parte 1

De todas as coisas que aprendi na vida, carrego apenas a certeza que muita gente morre em São Paulo, todos os dias.

Hoje, dezesseis de fevereiro do ano de 1992, cumpro mais um dia de minhas obrigações como auxiliar de enfermagem dohospital Albert Einsteinem São Paulo. Trabalho no setor que dá acesso ao necrotério, sou um dos encarregados de carregar a maca com os defuntos. Às vezes me confundo com o movimento, parece que estamos em plena rua, tamanho o congestionamento.

Percorro o corredor estreito e extenso sem dar chancespara incômodos. Faço que não escuto o ranger das rodas, velhas e desencaixadas que produzem ruídos histriônicos e finjo que não me incomodo com as lâmpadas no teto, todas com mau contato, falhando simultaneamente num sem cessar de tentativas de acender, dificultando o caminho. Quando as luzes conseguem funcionar, refletem o rosto do homem morto que carrego. Repito: Morre-se muito na grandemetrópole. Mas o morto que nesse instante carrego, é especial, meu conhecido de tempos distantes, singular criatura. Impressionante coincidência. Enquanto as rodas da maca riscam o piso liso do corredor fazendo ruído, contemplo o rosto do morto e deixo a memória me levar até o exato instante no passado no qual tive com ele o primeiro contato. Retorno ao primeiro dia do mês de agosto do ano de 1968, na minha terra querida, a Corumbá de tantos acalentos. Na época eu era um jovem de vinte anos que sobrevivia a custas de biscates. Eu sabia dirigir automóvel, aprendi no exército, e era ótimo pescador, conhecia todos os segredos do rio Paraguai. Mas o que eu queria mesmo era trabalhar em hotel, de preferência no Santa Mônica, o maior e mais chique da cidade. Vivia atormentando o Antenor que era chefe administrativo do lugar. Ele já ia perdendo a paciência com minhas insistências quando a oportunidade se apresentou. Recordo o grande rebuliço que tomou conta da cidade com a chegada do visitante ilustre. O confinado se mostrou humilde no primeiro instante, após passada a ira que o acometeu na chegada ao aeroporto. Os homens de farda o largaram, junto da esposa, aguardando ordens em pé, sob o calor inclemente de Corumbá, por longos minutos. Não pretendia nenhum privilégio, embora poucos anos antes fosse o cidadão mais importante da nação e chefe supremo daqueles que agora o humilhavam de forma sobeja e autoritária. Não pretendia deferências, apenas que agissem como cavalheiros com sua esposa, que nada tinha a ver com o assunto, era apenas uma vítima acuada e silenciosa dos atos impulsivos do marido. Arrefeceu seu desgosto quando por fim adentrou o centro da cidade. Era o povo, sua gente, que agora o saldava. Diversos acenos, respondido sem risos, que não eram próprios dele, apenas breves acenos com as mãos, no rosto magro emoldurado um frágil ar de satisfação por perceber que, ao menos a gente da terra em que nasceu, não o havia abandonado. Ao seu lado a esposa inquieta, não escondia o profundo aborrecimento.

Segui a multidão até a entrada do hotelSanta Mônica. O exército inteiro parecia estar no quarteirão impedindo que o povo se aproximasse. Subi numa pilha de tijolos na lateral da calçada e vi o homem indo desaparecer dentro do hotel. De repente, num último passo, virou-se num olhar na minha exata direção e fez breve aceno o qual respondi na mesma proporção. Alguns comentaram que ele me cumprimentou diretamente, outros discordaram alegando que o gesto foi aleatório. Tenho comigo e vou levar até a morte que ele me distinguiu sim entre os demais, talvez pressentindo que os acontecimentos dos próximos dias nos uniriam de forma concreta, inesquecível.

Creio não ter sido por acaso que custei a dormir na noite anterior a nosso primeiro encontro. Senti a alma tensa e não sabia o motivo. Quando as luzes do sol adentraram meu quarto eu já estava vestido e pronto para mais um dia sem saber o que fazer. Tomei um café forte, requentado do dia anterior, com pão duro de semanas que mergulhei no copo e ele se espatifou por completo. Era meu último alimento. Não havia mais nada e nem dinheiro pra comprar. Timidamente me aproximei do trinco da porta no mesmo instante que alguém nela batia. Para minha surpresa era o Antenor. Sem rodeios, explicou que estava ali disposto a me contratar para ser, temporariamente, uma espécie de secretário, um faz de tudo, do visitante ilustre. Nem prestei atenção quando discorreu sobre o salário, pouco me importava, o sorriso que de meu rosto escapou tinha a ver com duas coisas: Ter algo pra fazer e, principalmente, com quem fazer. Antenor exigiu que eu trocasse de roupa, vestisse algo mais apresentável, vestimenta que, aliás, eu não possuía, mas que ele, já disso sabendo, me trouxe do hotel. Era uniforme completo: camiseta branca, calça e terno bordô. Fiz que não sentia os jarros de suor assim que a vestimenta colou em meu corpo, fruto do calor de Corumbá naquela manhã. Antenor sorriu satisfeito quando passou para minhas mãos o quepe negro que completava o uniforme. Sorri de leve apressando os passos. O que eu queria era começar o serviço o quanto antes. Em menos de dez minutos eu estava de frente a ele. Os cabelos desalinhados, os olhos ligeiramente estrábicos, a sobrancelha direita dando impressão de possuir vida, subia e descia pela testa. A barba por fazer e o desleixo no vestir, se confundiam com o aspecto austero e imperial que compunha a figura do homem à minha frente. Mirei os olhos numa vassoura pousada num canto da parede e meus lábios se abriram num riso incontido. Era muita coincidência. Vassoura, vassourinha! Pensei enquanto tentava mudar de atitude:

“Senhor presidente!” Falei em reverência. Ele fitou meus olhos na intenção de escrutar minha alma. “Sua fala sempre foi mansa?” perguntou e fiquei sem saber o que responder. Minha voz estava modificada pela presença dele, mas não era muito diferente. Ele prosseguiu: “Nunca gostei de gente de fala mansa. São os mais perigosos…” Pigarreei e depois tentei falar com outra voz: “Desculpe, a mansidão é por respeito”, ele sorriu do meu jeito sem graça. “Vamos indo, temos muito o que fazer”. Lá fora uma multidão o aguardava. Entramos na garagem à força e fomos direto até a camionete C 14, melhor carro do hotel. Ele sentou-se e passou a acenar para a multidão, sem abrir os vidros da porta. O calor dentro do veículo estava insuportável. Ele notou e ordenou que eu tirasse o paletó. Agradeci num humilde olhar e recebi um quase impercebível sorriso como resposta. Conduzi o ilustre passageiro, sem destino fixo, pelas ruas de Corumbá. O presidente ordenava o caminho, “Vire aqui, passe por ali, retorne àquela alameda”. Não sei se ele limpava os óculos ou estava chorando. Talvez o ar bucólico da cidade o remeteu  à mais tenra infância. Era então um menino livre que sonhava voar. Não esperava que o vôo fosse tenso, incompleto, desastroso. Por mais de duas horas passeamos pela cidade. Depois uma ordem austera, sem elevação no tom da voz: “Vamos voltar”. Que obedeci num majestoso silêncio. Ao sair do carro, nenhuma palavra, nem menos um aceno, mas deixou em meu colo um bilhete que dizia: “Aproveite a tarde livre. Pegue-me amanhã às quatro da manhã. Vamos pescar”.

Loja Virtual

Busca

Está com dificuldades para encontrar? Utilize os filtros abaixo para aprimorar a sua busca.

Categorias