Buraco de minhoca
Nessa manhã, quando acordei, a brisa fria me apanhou num repente. “Venha, abra a janela, observe lá fora, falta pouco para você completar quinze anos”. Esfreguei os olhos, tive um sono pesado, uma viagem ao futuro, quando todos ficaram trancados em casa, com medo da morte invisível escondida lá fora. Um banho gelado, sabonete de coco, os cabelos que insistem cair, a hora do trabalho que chega depressa e preciso correr. Tomo o Café e me atrapalho ao vestir a camisa, as mangas voam, meu braço demora a encaixar. Minha mãe surge, sorrindo da minha falta de jeito, um beijo na testa e o mundo se mostra ao abrir a porta. É dia claro e a lembrança do sonho me faz estranhar tantas pessoas nas ruas, juntas no ponto de ônibus, ninguém usando máscaras, os abraços, o aperto de mãos, o beijo de um casal. Meus joelhos não doem como no sonho, não sinto medo da morte, o que sinto, diante daquele dia azul, sol aberto e vento gostoso, é a mesma sede de tudo saber, a conhecida ansiedade de sempre.
O vento me abraça num atropelo gelado, “desculpe, eu preciso passar”, e se vai, rápido, até virar na esquina. Pisco os olhos, me convenço que o vento e o tempo são os mesmos: uma entidade intocável, imutável, muitas vezes cruel. Pedaços de vidros não são diamantes e as páginas do meu livro estão abertas, têm poucas tintas, não tenho nem quinze anos. O que vai acontecer é um prato sobre a mesa e a cabeça recheada de sonhos. Procuro alguém com quem conversar, mas a menina dos dentes de ferro mal sabe da minha existência, um sorriso de passagem, nada mais, desconhece o poema que escrevi em sua homenagem, no qual ocultei a palavra amor por não saber exatamente o que sentia. Meus amigos, apenas eles me entendem, mas quando conversamos, o assunto é outro, rapazes não fazem confidências. O trem atravessa a avenida e tudo para, menos a pressa da minha alucinação. Os trilhos rangem, os motoristas seguram firme o volante, ansiosos para o último vagão passar e dar lugar à liberdade. É isso o que os homens dos anos oitenta chamam de liberdade? Eu quero voar, mas meus pés gostam da terra vermelha, do cheiro da lenha cortada, da fumaça escapando do quintal, desde quando minha avó riscou a chama nas folhas secas varridas e o cheiro do mato ficou grudado em mim. Em segundos um filme se passa na minha cabeça, eu não quero mais ir embora da minha cidade: o Fog londrino e a Estátua da Liberdade não mais me seduzem, eu quero é grudar minhas unhas no meu chão. O ônibus caminha calmo, masco o chiclete de menta na boca, mandíbula em movimento move o mento e sinto o prazer do hálito puro. A paisagem me alucina, observo as laterais: muros brancos demais, paredes lisas, portas com trancas, elas me atraem, a mão chega a tremer, mas sei que a tinta sairá em desalinho, um tanto incompreensível: quem conseguirá entender um rapaz latino americano sem dinheiro no banco enxergando o futuro? O meu pai está por ai, numa dessas ruas, mas já não sinto necessidade de encontrá-lo. Sumiu no beco tempos atrás, foi engolido pela tempestade. Meus amigos vão ao culto e eu prossigo oculto, duvidando de tudo, achando graça das roupas brancas, em contraste com as minhas coloridas, e sentindo imenso alívio quando dizem amém. É o final e só então consigo sorrir. Li um livro semana passada e fiquei impressionado, não tanto com a personagem principal, mas com as duas divindades que possuem intimidades com o tempo: o Chapeleiro e o Coelho Branco. Estou sempre atrasado e não sei exatamente o porquê? Queria ter o conhecimento do Chapeleiro, ele tem respostas para tudo, porque as espinhas no meu rosto causam a dor inesperada, tal e qual os pelos que de repente começaram a surgir. Eu raspo e a lâmina me corta, fico pálido, a olhar de lado, preso ao medo que algum adulto apareça e tome meu sangue como motivo de susto ou risada. O tempo é um senhor, disse o chapeleiro, mas Alice não acreditou, ela é jovem como eu e nós só temos sonhos, um mundo abaixo da toca da árvore, cujo portão de entrada está escrito em letras garrafais: proibida a entrada do tempo. E o ônibus parou afinal, desci carregando a rufada de palavras na cabeça, perguntas sem respostas, amanhã ainda é longe, eu só tenho quatorze anos. No fim do dia, ao me deitar, penso no sono de antes e o desassossego me abrange. Pego um pouco de Renato Russo, restos do Chico Buarque, misturo com o Biafra e saem os versos em desalinho, balançando na cabeça e aos poucos me acalantam: O que fazer de mim, se o sol nunca mais vai se pôr, se o meu sangue errou de veia, perdeu o caminho (na bagunça) do seu coração, me fazendo confundir a hora de ir, ir por onde ninguém for e o que restou foi essa vontade imensa de sentir o que eu não posso ter. E o sono chega de leve, enquadrado pela janela, trazendo um medo ligeiro de voltar ao futuro, embora eu saiba que por lá, muita gente me aguarda ansiosa.