Um canto…

Vou procurar um canto para guardar meu pranto escondido num conto de decepção.
Talvez leve lenha, para acender fogueira e fazer arder toda desilusão.
Se soubesse tocar, levaria um violão e terminaria de compor meu refrão, aquele acerca da traição.
E pelo caminho, agora sozinho, só levo comigo um lampião, para fazer frente à escuridão.
Se tudo der certo, a dor logo cessa, o lamento passa, como um assovio ou um mata-borrão.
E se pisar novamente aquele chão, tomarei cuidado, prestarei mais atenção.
Vou procurar um canto, como um acalanto, e sossegar o meu coração.

Dos intrínsecos caminhos de se escrever fantasia e de como isso faz bem

Por que você gosta de escrever ficção e fantasia, quando há tanto a se dizer da realidade? A pergunta ficou ecoando por dias em minha mente. E como todas as coisas que me dizem tanto, recolhi sentidos diversos para entendê-la em sua importância. Desses pensamentos, nasceu essa crônica de memória, metalinguagem e poesia. Uma das crônicas que me ajudam a entender porque, mesmo com tantas dificuldades e corridas contra o tempo, é tão bom contar histórias.

Como todas as narrativas costuradas com pedacinhos de realidades, não sei bem onde estava a primeira linha com que teço essas palavras. Eu a encontro perdida há muitos anos, quando ainda era criança e meu universo se resumia a um quintal, alguns gibis, fotonovelas, livros e as histórias que os adultos contavam. Brincava muito, lia muito.

No quintal, havia uma mangueira que ainda hoje resiste e era uma das minhas favoritas. Lá nos galhos mais altos eu realmente descobri alguns sentidos para a palavra liberdade. Quem teve em uma árvore uma melhor amiga sabe o que é compartilhar descobertas, tristezas, alegrias. Lá, eu também aprendi a entender o poder da imaginação.

Então, não sei bem como começou. Sei das imagens e sentimentos que o tempo guardou. Com estas, fui tecendo novas pontas àquela linha primeira e com elas, escrevo de como e porque aprendi a amar histórias de imaginação e fantasia. A gostar de miudezas. Ao leitor, tenho a dizer: essa não é uma história inventada. Talvez, reinventada. Mas tem realidades demais. Compartilho-as com pinceladas de imaginação e trato com a linguagem. Compartilho também que é parte de um livro que escrevo há muitos e muitos anos.

Eu sempre fui fascinada pelas criaturas pequenas. Pois em uma das tardes quando brincava no galho mais alto e favorito da mangueira, eu encostei por uns instantes a orelha em um galho fininho.

De repente, eu ouvi ruídos, barulhinhos diversos. Aproximei ainda mais a orelha. Ouvi mais. 
Conseguem imaginar a sensação? A descoberta? O fascínio? Havia algo ali, talvez, se movendo no oco do galho.

O que seria?

Insetos? Formigas? Não.

Eu soube que eram criaturinhas, parecidas comigo, quase humanas. Minúsculas.

Eram pessoas arrastando móveis. Talvez, organizassem uma festa e estivessem faxinando.

Por vários dias eu estive imóvel junto ao galho, ouvindo. Quando havia silêncio, eu insistia, vez ou outra, tentei movê-lo para que pudesse causar uma reação, mas sempre com muito cuidado.

Um dia, por acaso eu descobri o que havia no galho. A razão dos barulhos. Neste momento, talvez você espere pela confissão de loucura, pela revelação de um segredo incrível, que dentro da minha amada mangueira, viviam seres inimagináveis.

Talvez. Mas verdade é que eu, ao encostar minha cabeça no galhinho, fazia com que ele encostasse em outro galho. Do encontro dos dois, surgiam os ruídos que tanto me inspiraram.

Sim. Houve silêncio, espanto, decepção. Até risos.

Tristeza também.

Minha fantasia mais bonita se desmanchava e fiquei triste por uns dias. Eu havia descoberto uma ruptura no mundo “real”, um universo escondido, mas que a lógica, em pouco tempo, mostrou ser apenas um fato da realidade. Eu não teria mais os meus amiguinhos invisíveis? Mas, há sempre um algo a mais.

Afinal, por que não? Eu estava com saudades da sensação. Dos segredos, das conversas. E um dia, encostei a cabeça com saudade, quase esperando um carinho e de olhos fechados, escutei a vida voltando ao interior do pequeno galho. Não importava que eu conhecesse o mecanismo. Não importava que tudo se tratasse de fricção. Era tudo ficção.

Eles nunca iriam acabar. Eram já vivos em minha mente, em minha alma. E eu sorri, eu imaginei e eu brinquei. Depois, fui me ocupar de outras ocupações de criança ser.

Eu havia descoberto mundos ocultos e maravilhosos que nem sempre se poderia enxergar e por um acaso, os descobríamos. Que nossa mente poderia aumentar estes universos e quando este mundo foi tirado de mim, soube que cabia a mim, buscá-lo. E com essa mesma curiosidade, hoje eu escrevo, invento mundos, metáforas. Porque as coisas existem a espera de ser encontradas, narradas, reinventadas. Para isso e por isso, contamos histórias.

Eu posso falar de realidade. Mas eu gosto de falar de imaginações. Porque elas também são parte da realidade e alimentam a alma.

Por elas, eu escrevo e talvez, em algum lugar, alguém goste dessas escritas.

Autor: Tânia Souza

Mudança

A necessidade é a mãe que gera todas as mudanças. Já mudei muitas vezes, inclusive de casa, de cidade, de Estado. Desenvolvi boas técnicas de organização: caixas setorizadas, com etiquetas, roupas nos cabides e os livros, parte mais difícil, separados por autores e assuntos num exercício da crítica literária. Confesso, chorei à noite, no meio de um mar de malas e pacotes, indagando-me sobre o destino. Perdi o controle, mas foi só um momento. Reconheço que a mudança é a lei da vida, em constante e rude evolução.

A rotina diária de uma pessoa culta e sensível deveria ser, simplesmente, alternar-se entre ler e escrever, escrever e não escrever. E nesse movimento haveria perdas e ganhos, silêncio e atividade, nascimento e morte. Mas a todo tempo, há a interrupção de algo a ser feito nessa realidade física, doméstica, urbana, caótica, contaminada, que nos rodeia.

Meu coração é cheio de espanto: cada projeto, cada alteração de rota, cada aurora, cada adversidade me deixam perplexa. Estou aberta. Sigo os passos daquele que se colocou como a verdade, o caminho e disse que podíamos, a qualquer momento, renovar a mente, reconstruir, restaurar até cacos de vasos de barro partidos. A maior força é mudar de vida. Assombra-me acordar com a possibilidade de viver um novo dia. Make it new, diria o poeta Ezra Pound. A poesia é apenas um modo de ver, um olhar inaugural e hesitante sobre todas as coisas.

No fundo, tenho sonhode mudar sempre. De estar junto, totalmente entregue a pessoas e afazeres e, de repente, deleitar-me com o fato de que ninguém mais ouvirá falar de mim. Como um desaparecimento súbito. Uma passagem para outra dimensão, para outra situação, para o outro lado da porta. Adaptar-me como uma camaleoa às cidades, às luzes, às folhas das árvores à minha volta. Nesse processo de mimese, conservar minha essência, mas trocar as cores, as capas, as peles, as estações. Sobreviver a tudo de ruim, íntegra como uma pedra que rola.

Houve mudanças que não foram escolhas, nem dependeram de meu livre-arbítrio. Foram imposições, algumas trágicas. Custaram meu sangue, estraçalharam minhas entranhas, mas foi aí que mais alimentei meu espírito. Vaguei por entre nuvens. Invencível porque concebi um poema.

Mudanças lindas e dolorosas. Na impermanência atravessei pontes, arco-íris, entrei e saí pelos salões onde havia festas e onde havia luto. Quiseram me tirar tudo, principalmente a vontade de mudar as circunstâncias, mas as coisas que fiz, os meus esforços, os meus começos e recomeços foram marcados pelo amor.

Abafei a ânsia de largar tudo. Agora, quero ser capaz de fazer pequenas mudanças na marcha cotidiana. Os rumos, a direção, deixei para o timoneiro, que leva o barco entre abrolhos e tempestades, mas, experiente, sabe onde brilha o farol. Arrisquei, caí, levantei, quis mudar o mundo, não consegui. Mudei minhas prioridades e elas cabem num único copo, numa única rosa, numa única página. Cabem no silêncio desta hora.

Creio na máxima de Heráclito quando afirma que “Tudo muda, menos a mudança”. Que não entramos no mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso acontece, já não se é o mesmo, assim como as águas já serão outras. Mergulhei em águas profundas, perigosas. O campo verde onde deitei meus desejos foi lambido por um fogo que consumiu e transformou tudo em cinza, em brotos, em renovo.

Ouço a voz de Camões: “Mudam-se os tempos,/Mudam as vontades/ Muda-se o ser/ Muda a confiança/ Todo mundo é composto de mudança.” Como o poeta, do mal, apaguei as mágoas da lembrança. Arranquei as raízes da amargura. Do bem, sinto saudades. A esta altura, o bem e o mal me parecem iguais. Mudo como nunca mudei antes!

Breve virá o caminhão e recolherá as caixas, malas e pacotes. Secou o choro da noite. Estou com uma aparência meio louca, minha antiga formosura alterou-se em desmaio. De repente, sorri, dei a mão mais uma vez para o futuro. Meu riso provocou mudança.

Autor: Raquel Naveira

Quase todos os meus desejos

Há tempos não me ocorria dormir acordado, largado no pensamento, num trotar de imagens.

A moça à minha frente tem um piercing no septo. .

Peço um chope, ela nem olha para mim, pergunta a marca, digo Brahma, “não tem”, responde num jeito quase hostil; peço outra qualquer, ela prossegue sem olhar para mim.

Aquelas argolas no nariz me causam má impressão, fazem lembrar o mitológico minotauro. .

Quando por fim me passa a caneca, ergue os olhos e pergunta: “o senhor deseja mais alguma coisa?”. .

Então larguei os meus olhos abertos e a boca sorrindo enquanto o mundo apagava. .

Diante daqueles olhos miúdos e tristes, permiti milhares de desejos no pequeno segundo transformado em horas de pensamentos, sonhando com os olhos abertos, absorto na última pergunta: “deseja mais alguma coisa?”. .

Sim, querida desconhecida do nariz furado, desejo viajar para Paris, conhecer os Pirineus, entrar de manhã numa livraria e só sair de lá tarde da noite, sem me preocupar com o horário.

A cura do câncer, a paz entre os homens.

Desejo também nunca mais ter que dirigir, o trânsito me enlouquece, nem votar, desperdício de tempo, e que essa maldita dor nas costas desapareça para sempre.

Permita-me ainda desejar ganhar alguns milhares de dinheiro, dos quais ficaria com a metade, o resto distribuiria entre os mais pobres (será?) e daria as migalhas aos pombos. .

Um desejo bastante pessoal me ocorre, não que me faça falta (será?), mas gostaria se meus cabelos tornassem a nascer.

Sim, eu desejo ser cabeludo.

Também gostaria de ser invisível, não para sumir, mas para suprir um desejo de infância, bisbilhotar as outras pessoas sem ser visto.

Outro desejo me consome, aquele de ver o sorriso da pessoa lendo essa crônica e pensando: “nossa, eu também desejo isso”.

Faço sinal com o dedo e a moça do piercing já sabe que desejo mais um chope.

E os pensamentos prosseguem num desesperado trotar; eu desejo assistir ao show do Paul MacCartney, também do Chico Buarque, já que o do Belchior não vai dar mais. Desejo ainda o deslumbre do encontro com outros ídolos, apenas para um abraço ligeiro: olá Caetano, você é lindo, Ney que bom você existir, eu te adoro Gil, não faz idéia, Djavan, o quanto me faz bem, desde quando aprendi a sonhar o seu sonho.

Continuei sorrindo calado para a moça do piercing no septo e ela já começava a se inquietar, os olhos, antes miúdos e tristes, agora sobressaltados em alerta.

“Quer com colarinho”, faço um gesto afirmativo com a cabeça, enquanto meus olhos se perdem entre os brilhos que escapam do piercing

A espuma do chope escorrega pelos cantos dos meus lábios no exato momento que a idéia da eterna juventude explode nos meus miolos. Ah, seu eu pudesse voltar aos vinte anos com a maturidade que hoje tenho…

Imaginar desejos é beber um balde de água salgada: a sede nunca é saciada.

Lavo meus pés na enxurrada de desejos; Comidas venham, eu as desejo, costela de porco assada, pudim, sorvete de coco.

Sinto enlevo, sonhar é preciso e precioso.

Prossigo naquele tropel de pensamentos, ameaço um novo sorriso, mas recuo ao perceber que a moça arregala ainda mais os olhos, convencida de vez que eu não regulo bem das idéias, lava ligeira os copos, desconhece por completo meu novo pensamento: será dolorido colocar um piercing no septo?

Bebo tudo de uma vez e sem querer, bato com a caneca no balcão.

“Deseja mais um chope, senhor?”

Não, por hoje chega, respondi preocupado: quanto tempo irá durar esse tropel de desejos a desfilar na minha cabeça?

No fim, desejo nada mais desejar…

Made in Japan

Meu filho Bruno adora mangás e animes.

Quando lhe contei sobre como descobri a existência do Japão, ele abriu um sorriso e me mostrou um parafuso guardado na gaveta, desses novos, com carinha de smiley estampada como se fosse um sorriso.

Mas afinal, o quê tem a ver a terra do sol nascente com o parafuso?

Primeiro um volteio, num dia de outros outonos, ao instante que a esposa de um antigo vizinho, num tropel pelas ruas do bairro Guanandi, apanhou um objeto no chão e o ergueu até perto dos meus olhos: “o mundo não seria nada se não fossem os parafusos” – disse, fazendo aparecer a boca que o buço forte escondia, embaçada num olhar ao mesmo tempo sério e contemplativo.

Olhando atentamente para a cabeça do parafuso, li a frase impactante: made in Japan.

De posse do parafuso, pesquisei nos livros e logo fiquei sabendo se tratar de um país distante, exatamente do outro lado do planeta.

Alguém mais velho garantiu: “para chegar lá, basta cavar um buraco e depois se atirar a uma viagem até a terra do lendário povo dos olhos puxados.

Fiquei fascinado!

Quem poderia supor, debaixo dos nossos pés, existia um lugar fabuloso, antes impenetrável, mas agora bastava cavar para chegar até lá?

Quando contei a novidade, meu amigo Zé Lata ficou extasiado; no instante seguinte, já retirávamos com as mãos a terra barrenta da Sapolândia.

Desistimos da empreitada logo após os primeiros ventos de frio.

Tempos depois, no colégio Oswaldo Cruz, vi-me cercado por nisseis, e a amizade logo surgiu, marcada pelo riso aberto enfeitando aqueles olhos riscados: Oshiro, Arakaki, Katayama, Higa, Mori, Hokama, Paulino, Rose, Reginaldo, Maurício…

Com eles aprendi o significado do sol vermelho estampado na bandeira branca, também sobre a neve que cobria o topo da montanha, as histórias dos corajosos samurais, a valentia insana dos kamikazes, sobre o império e as encantadoras gueixas em seus vestidos de seda e dos cabelos presos num coque deslumbrante.

E a tristeza marcada nos rostos dos olhos puxados à simples menção do nome Hiroshima, “a rosa com cirrose, a anti rosa atômica”, que enfeita de forma triste os versos transformados em melodia na voz do Ney Matogrosso.

Agora me percorre a lembrança do friso pasmo em meu rosto ao me dar de frente pela primeira vez com alguém usando um kimono e ostentando com orgulho uma faixa preta presa à barriga.

O tempo passou, Made in Japan, a frase novamente ecoa pela minha memória enquanto afago os cachos dos cabelos do meu filho, adentrando ao seu sonho de conhecer o Japão, não por conta de um parafuso, ou via um buraco que atravesse a terra, mas pelos mangás e animes, sua adoração, desejo que agora também é meu, movido pela imensa vontade de ver de perto a neve que cobre o topo da montanha, o sol nascer no horizonte inverso, tão vermelho quanto está exposto na bandeira branca do Japão.

E num momento de pura magia, me perco sonhando enquanto aperto com os dedos o parafuso, desses novos, com a carinha sorridente, tipo smiley, desenhada na cabeça.

O fio de cabelo no lóbulo da orelha

Estava com o rosto diante do espelho contando as rugas quando percebi algo quase invisível se movendo.

Encostei o rosto até bem perto do espelho e me dei conta que havia um longo fio de cabelo no lóbulo da minha orelha direita.

Puxei o danado, gritei de dor.

Com o rosto abrasado, fiquei me perguntando por quanto tempo ele estava ali, sem que eu percebesse.

Por segundos insanos pensei em fazer com aquele fio de cabelo o mesmo que fazia com o cigarro nos tempos de fumante: puxar papo, conversar diversos assuntos.

Puxei novamente, a dor recuou porque já não existia a surpresa e no instante seguinte me preparei para dar fim ao incomodo. Apanhei a tesoura e estiquei o fio até o fim, mas eis que reparando de perto, notei que o danado tinha um tom dourado.


Será que alguém vai acreditar que quando criança eu era loiro dos cabelos cacheados?

Talvez aquele risco dourado fosse o último remanescente dos meus tempos de cabelos cacheados e que tenha sobrevivido há mais de meio século.

Senti um inesperado apego por aquele fio de cabelo e até pensei em guardá-lo numa caixa de vidro.

Minha nossa, que louco é esse que guarda o fio de cabelo numa caixa de vidro?

Depois fiquei em dúvida se devia contar isso numa crônica.

Eis me aqui, decidido.

Devo declarar que desde muito moço sofro com a falta de cabelos.

Tenho cultivado ultimamente uma barba ralinha para disfarçar, que cuido com esmero, por vaidade e porque se tornou um motivo para eu ir a uma barbearia, costume que havia abandonado desde os anos noventa, quando os cabelos se foram e me tornei ligeiramente calvo.

Foi um tempo ruim, de repente, tudo despencou.

No começo, tentei disfarçar usando boné, mas não me acostumei, porque me pesava a cabeça e escondia os olhos.

Nunca entendi o sujeito que tem cabelos e usa boné.

Resolvi deixar para o outro dia o que fazer com o fio dourado. Quando acordei, corri para frente do espelho e procurei em vão o meu precioso fio dourado, mas notei apreensivo que só existia a maciez de sempre no lóbulo da minha orelha.

Será que durante o sonho puxei sem querer a ponta da orelha e o fio se soltou?

O que foi que sonhei, afinal?

Não me lembro de nada.

Mas recordei com riqueza de detalhes uma árvore imensa que existe bem à frente do colégio Dom Bosco, tão velha que deve ter visto de tudo, seus galhos secos insistem abraçar em tons cinza a cidade que engoliu o vilarejo, e lá no alto, bem no canto direito, num verde tão belo que emudece, despenca um fino galho de folhas verdes.

E me apeguei àquele galho verde para nunca mais, porque ele desperta a vitalidade, o conhecimento e toda a história que ainda pulsa na árvore antiga, talvez tal e qual o fio dourado, agora desaparecido na minha orelha.

Então pensei no amigo Marcos Estevão, que além de médico é poeta, psiquiatra dos bons, quem sabe numa boa conversa ele me indique algum remédio, ou apenas um bom gole de uísque, para por fim à falta que me faz aquele cabelo dourado, que sumiu sem se despedir, deixando esse inexplicável sentimento de vazio no lóbulo da minha orelha direita.

Toque uma canção antiga

Música antiga é atualmente um dos meus melhores passatempos.

Fico horas buscando no youtube aquelas canções do passado que de alguma forma me marcaram.

Tenho um gosto um tanto eclético, vou do rock ao brega, passeio em vôos rasos pela MPB, gosto também de samba e sertanejo, desde que sejam os de raiz.

É exatamente na raiz do samba que gosto de me perder.

Causa-me espanto quando alguém confessa que não conhece o Cartola, o compositor que afirmou que “as rosas não falam”, contrariando meu pensamento de outrora, que acreditava que as rosas sussurravam poemas.

E como sempre confundo rosa com flor, Nelson Cavaquinho me ensinou que espinho não machuca a flor.

Mas será que o espinho às vezes não se confunde com o perfume que a rosa exala?

Mais um clique na tela do computador e me torno apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco.

Por onde andará o Belchior?

Ele bem que avisou antes que iria sumir: “Se você vier me perguntar por onde andei…”.

De repente tudo muda quando ouço Creone, Barrerito e Mangabinha.

Quem?

O Trio Parada Dura, que navega num barco de papel em busca do castelo de amor e que acaba bebendo o orvalho das flores.

E já que falei tanto sobre rosas, espinhos e flores, devo acrescentar a canção divina que agora me invade os ouvidos causando enlevo: a pétala do Djavan.

Mas será que o amor é mesmo exato?

Rosa, flor, espinho, pétala…

Do que mais você precisa para compor um belo poema, amigo poeta?

Troco de novo o ritmo, curto Legião, Titãs, RPM.

Que coisa estranha esse Paulo Ricardo que nunca envelhece!

Fagner musicou os poemas da Florbela Espanca e da Cecília Meireles, e tudo ficou tão lindo…

Toca Raul! A minha turma costumava gritar para o carinha que dedilhava a viola, sentado num banquinho de bar.

E eu não sei se era efeito do álcool ou se por culpa da fumaça do cigarro, mas o cantor sempre se tornava a imagem perfeita do Raul Seixas.

Ainda que tivesse a cara lisa, o enxergávamos de cabelos longos e cavanhaque.

Nas iris de nossos olhos, entre um gole e outro de cerveja, depois de andar pelos quatro cantos do mundo, procurando, compreendíamos que somos feitos da terra, do fogo, da água e do ar.

E tudo voltava até dez mil anos atrás.

No final, o carinha do violão provocava: “tente outra vez”.

E a gente prosseguia tentando.

Uma noite de Nagibão – o melhor barzinho que já existiu em Campo Grande- era tudo o que precisávamos para que a vida prosseguisse pelos caminhos ternos da juventude.

Ah, que dor eu sinto quando hoje passo em frente e percebo que o Nagibão agora é apenas um estacionamento.

E troco de novo a música no Youtube, sim querida Mercedes, “el tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos”.

Hoje eu entendo perfeitamente o trecho daquela canção do Geraldo Espíndola: “saudade existe pra quem sabe ter”.

Saibamos então sentir saudades, que no meu caso, basta um clique no youtube que o tempo volta, dói um bocado, mas é uma dor tão gostosa que acaba ajudando a viver.

E o que é a vida? É a rosa, os espinhos, são as pétalas que voam através do tempo em forma de lindas canções.

Ano novo, casa nova.

Depois de quase duas décadas morando na mesma casa, eis que enfim nos mudamos para a casa nova.

Mudanças me causam o assombro de tudo que é novo e qualquer pensar ligeiro, remete à antiga morada.

Na casa antiga deixei meu pé de limão, boas lembranças e os gatos que não quiseram nos acompanhar.

As paredes que agora nos cercam são azuis e até o cheiro daqui é diferente, mas posso ver da sacada a cidade abaixo, pulsando no ritmo acelerado de sempre.

Dizem que para ser completo, todo homem precisa escrever um livro, ter filhos e plantar uma árvore.

Eu já escrevi quatro livros e tenho dois filhos, então, só me falta plantar a árvore.

A casa nova é de esquina, no cruzamento de duas ruas de pouco movimento, típico dos condomínios fechados, cortado pelo verde das árvores lá fora, o que me faz sentir falta da jabuticabeira no antigo quintal, que dá frutos adocicados, que eu tentava dividir com os passarinhos, mas que quase sempre acabava em brigas, porque os bichos bicavam as frutas maiores antes que os meus dedos a tocassem.

Passarinhos existem aos bocados por aqui, como o casal de coruja que fez casa cavoucando o barranco que fecha os muros.

As corujas também estão de casa nova.

Num relance percebo que preciso mudar a posição da última lâmpada, que dela desprende um feixe luminoso que apaga o arco-íris.

Um casal de tucanos corta o ar, seguidos de pássaros que desconheço, trazendo até a minha lembrança os tempos que as andorinhas tingiam de cinza o céu da cidade a todo entardecer.

Que fim levaram as andorinhas?

Ajeito meu corpo na almofada do sofá com todo cuidado, que o sofá me custou os olhos da cara.

Dois mil e dezessete há de ser melhor que o ano passado.

Os pássaros prosseguem atravessando o céu da nova casa, cortando o silêncio, que só não é completo porque é rota dos aviões, mas que na imaginação, faço deles desenhos de outros pássaros maiores, daqueles que não existem mais.

Ainda há pouco, percebi a distante luz dos olhos de um novo vizinho e fiz com as mãos um aceno breve, sem jeito, que selou talvez o início de uma nova amizade.

Algumas boas lembranças da casa velha me beliscam, provocando a dor da saudade:

Meus filhos nasceram na casa velha, grandes amigos moram nos arredores, o meu nariz reclama a falta do cheiro das telhas de barro e uma aflição toma conta de mim ao perceber que tudo era perto da antiga casa e que agora, até para comer, tenho que atravessar a cidade.

Detesto mudanças, mas entre um gole de café e outro, permito que a casa nova me preencha.

Por aqui espero passar uma velhice tranqüila, observando a tinta dos muros secar nos anos vindouros, durante os quais, solenemente permitirei o sopro do vento esticar a manga da minha camisa, até que a irresistível vontade me faça tocar a terra com as mãos e cumprir a última missão, aquela de plantar uma árvore, o pé de jaboticaba, que é para recordar sempre da casa antiga e ter o pretexto para quando as frutas ficarem maduras, brincar de brigar com os passarinhos.

O pulso do natal

O leitor que me acompanhar nessa crônica, certamente me tomará como uma espécie de Ebenezer Scrooge, o imortal personagem de Charles Dickens, que não conseguia incorporar o espírito natalino.

Acontece, porém, – e sei que estou sendo repetitivo – que a sinceridade me abraça quando digo que considero o natal uma festa chatíssima.

Acesso o youtube e escuto “O pulso” da banda Titãs.

Adoro essa música!

Que fim levaram os antigos cartões de natal? Antigamente eu passava horas escolhendo cartões que depois enviava para os amigos, como ainda hoje faz meu amigo Manolo, que dos EUA, todos os anos me envia cartões de natal: nunca consegui lhe enviar de volta sequer um reles cartão, e fico naquela de apenas agradecer, numa mensagem seca de muito obrigado, via whatsapp.

Nesses momentos, Mister Scrooge sentiria orgulho de mim.

Mas porque será que chove tanto em dezembro?

Eu detesto chuva.

Visito em pensamentos antigos natais, revejo os amigos e a canção que gostávamos de cantar longe dos adultos: Jingle bels, jingle bels, acabou o papel…

Ainda navega em mim a lembrança do pé de goiaba no quintal de casa, que enfeitamos com bolas de isopor, mas à noite veio a chuva de dezembro, forte e rápida, levou tudo embora e daquilo só guardei melancolia.

É no natal que esse sentimento aflora, assim que me vejo diante da figura nórdica do papai Noel: “ho, ho, ho” diz o senhor fantasiado de barba e roupão vermelho, sem se importar com a minha indiferença.

Talvez não passe de trauma de infância, porque nunca tivemos casa com chaminé e enquanto o filho da vizinha ganhava uma bicicleta, eu me contentava com um carrinho de plástico sem as rodas.

Ok, Mister Scrooge, eu também não gosto de vinho, peru tem a carne sem graça e castanhas me provocam engasgos.

Mas o pulso pulsa.

Arroz com uva passa? Não, passo, prefiro farofa.

Bebe-se muito no natal, penso, enquanto tomo mais um gole de cerveja.

Não devia fazer isso, um copo a mais é um neurônio a menos.

O pulso ainda pulsa.

Quando o fecho da noite de natal se aproxima, o único pensamento que me ocorre é que preciso urgentemente fumar um cigarro.

Eu não posso fazer isso.

Uma tragada a mais é um dia a menos de vida.

O pulso segue pulsando.

Alguém, por favor, me sirva um pedaço de panetone!

Eu sei que já disse diversas vezes que detesto panetone, mas talvez combine com o vinho, que agora está tão doce…

A noite termina e resta uma tênue luz que escapa de uma árvore de natal.

O pulso haverá de pulsar na manhã seguinte.

Suma daqui, Mister Scrooge!

É hora de preparar os festejos da virada de ano, que este que está acabando foi péssimo, levou David Bowie, Prince, Ferreira Gullar, Geneton Moraes Neto, um time inteiro de futebol.

No fim de tudo, fica em mim o inquietante sentimento que o natal é melancólico e é preciso permitir que o vento de coisas boas e novas assopre em meu rosto a brisa da fé e esperança, que o ano que vai começar seja muito melhor para todos e que o pulso prossiga pulsando por outros tantos natais.

Fogo que se alastra

Fico surpreso quando alguém me chama de poeta.

Nada contra, fico até envaidecido, mas não sou poeta, sou cronista, contador de casos, inventor de frases.

Devo isso ao gosto pela leitura, sou para sempre um devorador de textos.

Não tive uma infância diferente dos da minha geração, algum tipo de píncaro ou coisa assim, gostava de jogar bola, soltar pandorgas e competir com bolitas.

O único senão é que, diferente dos meus amigos, sempre gostei de ler, não dormia sem antes pegar um velho livro empoeirado na estante, daqueles que traziam na essência o prazeroso cheiro das páginas do livro.

Numa época que não existia internet, eu mergulhava no mundo através da leitura e disso carrego enorme orgulho, aprendi muito, descobri até que a Lituânia existia, vi terras que meus olhos jamais alcançarão, conheci lendas, vesti roupas iguais às de Carlos Magno e junto dele caminhei em busca da conquista da Itália.

Fiz armas, armazenei amores impossíveis e, num rompante, desprezei Rapunzel.

Num espasmo de surpresa profunda, descobri que no interior da Inglaterra, viveu no século XIX uma escritora de excepcional talento para criar personagens que entraram na minha memória para nunca mais sair.

Era uma moça extremamente tímida chamada Emile Brontë, que me contou de um certo morro, pelo qual se espalhavam os ventos uivantes.

E desde então, o vento se misturou ao fogo que em mim se espalha.

Eu ainda não havia lido Vinicius de Moraes quando escrevi pela primeira vez “Fogo que se alastra”, até que me peguei diante de um texto que o poetinha escreveu, muito antes, em homenagem ao Antonio Maria: “Fogo que se alastra”, dizia em forma da saudade que a morte do amigo lhe causou.

Ah, eu achei aquilo tão lindo, mas ao mesmo tempo decepcionante, porque imaginava que a frase fosse minha, já que a construí num momento de incertezas, diante de um desses percalços da vida que a gente não sabe o que vai acontecer mais adiante e se assusta quando percebe as dificuldades aumentando sem cessar, sem dar trégua.

Então escrevi no canto direito do meu caderno a frase seca: “A dor que me consome é fogo que se alastra!”

E não parei nunca mais, permitindo que o fogo prosseguisse se alastrando.

Quando acordei nesse sábado, me detive diante da foto do Mário Quintana.

A ternura constante emoldurando o rosto do poeta serviu-me de inspiração para escrever essa crônica.

Diante dos olhos serenos do grande poeta, o fogo começou a se alastrar dentro de mim.

Mario Quintana escreveu certa vez: “O que mais enfurece o vento são esses poetas invertebrados que o fazem rimar com lamento.” E derreteu outra frase que eu vinha aprontando e que falava algo semelhante a isso, que se tornou imbecil depois que li o Quintana, algo mais ou menos assim: “Não se pode desprezar a suavidade do silvo do vento.”

Resolvi então deixar o vento em paz.

Mas sigo tentando outras frases, que logo virão, ainda que o vento não assopre e o silvo muitas vezes se perca entre as labaredas do fogo que se alastra.

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