Reflexos sobre a solidão

Escrever é um ato triste, solitário e muitas vezes doloroso.

Mas então porque raios você escreve? Perguntará alguém insensível e eu lhe responderei que escrevo porque senão alucino de vez.

Escrever é doloroso porque requer solidão.

No entanto, em alguns casos (aqui me encaixo) não há nada mais libertário do que escrever.

Eu só me sinto solitário quando estou escrevendo, ou quando acordo no meio da noite e não consigo mais pegar no sono, como na noite passada, que de repente acordei e o vazio da noite espalhou-se quarto adentro.

Virei de um lado para o outro e nada do sono retornar e me atingir feito um caminhão desgovernado, como de costume.

A esposa e os filhos dormiam.

É gostoso ouvir o ronco alheio.

Esfreguei meus olhos alucinadamente, estranhando a ardência do cansaço e a ausência de sono – deve ser fome – imaginei e já dei dois passos até a porta, num esforço tremendo para não fazer barulho.

Ao sair do quarto, dei de frente com o silêncio, senti o colossal clamor do frio das paredes e percebi o quão dolorosa é a solidão.

Como será que algumas pessoas conseguem viver sozinhas?

Caminhei coçando os dedos no assoalho até me dar de frente com a geladeira, que abri e fechei em segundos, sem perceber.

Girei os passos até o sofá da sala e a solidão caminhou junto.

Um pedaço de papel e uma caneta eram tudo o que eu precisava, mas o papel estava amarrotado e a tinta da caneta falhando.

Ainda assim, risquei algumas palavras e até tentei sorrir ao constatar que mesmo tendo a solidão como tema, definitivamente não sei fazer poesia.

Mas escrevi frases em esperanto, eu alucino quando escrevo.

Um blues cairia bem se eu soubesse onde guardei os fones de ouvidos.

Quando tudo está tão quieto, as paredes asfixiam de um tanto que reneguei os momentos que reclamei dos barulhos da vida.

Lembrei-me de uma frase impactante que li nas redes sociais, dessas que não citam o nome do autor: “Às vezes se fica tanto tempo sozinho, que a solidão deixa de ser ausência e passa a ser companhia”.

Conheci uma senhora que para fugir da solidão, criava cachorros e gatos.

Senti vontade de acordar todos de casa, mas que culpa eles têm se não consigo pegar no sono e as paredes da casa me asfixiam?

Resolvi fazer um café, mas não sei absolutamente nada da nossa cozinha e a chaleira apita quando a água ferve.

Pelas frestas da porta e nos vãos da janela, o dia sequer ameaçava clarear e eu contava aflito o passar dos ponteiros do relógio, um minuto apenas, mas que demorou uma eternidade.

Perdido em tantos pensamentos, acho que cochilei um tantinho, tomado pela felicidade ao abrir os olhos, soprados pelo despertador, que finalmente tocou trazendo aos poucos os movimentos da rua, o latido do cachorro, o ronco de um avião cruzando os céus e logo meus olhos cansados se deram com os rostos da minha mulher e dos meus filhos desfilando à minha frente, tapando enfim o silêncio das paredes, anunciando um novo dia, desenhando no meu rosto riscos de felicidades.

Sou um alucinado escritor que abomina a solidão.

A montanha

Descobri dias desses que ainda guardo na memória o cheiro da infância, e que o tal cheiro é de grama molhada de orvalho misturada com bosta de vaca.

Lembrei-me disso assim que meu caminho cruzou com o de uma senhora dos cabelos brancos e do riso meigo.

Toda senhora dos cabelos brancos me remetem à minha avó.

Não sei precisar quando foi que os cabelos da Lolinha se tornaram brancos, acho sinceramente que ela sempre teve os cabelos brancos.

Eu sinto muito a falta da minha avó.

Feliz o sujeito criado com avó.

Lolinha dizia que a vida é uma montanha, que começa nas gramas que cerqueiam a campina e termina numa árvore no centro do topo da montanha.

Para alcançá-la é preciso saber viver.

Hoje consigo vislumbrar a montanha e até mesmo as folhas verdes da frondosa árvore no cume.

Minha avó dizia que quando acaba a campina, nos arrastarmos pelo sopé, até que surgem as primeiras pedras, que muitas vezes conseguimos triturar, noutras as colocamos de lado, evitando o peso, ou simplesmente damos a volta, com medo do tropeço.

Um rio atravessa a montanha; alguns trechos são de água cristalina, na qual os peixes borboleteiam em saltos espetaculares, depois é água barrenta, por onde não se navega sem ter em mãos remos firme.

Visto de perto é um rio por demais violento.

E surgem os bichos, de todos os tipos, cores e tamanhos, formando barreiras medonhas que precisamos ultrapassar.

Silenciosas metamorfoses acontecem no trecho entre o rio e a mata.

No meio do caminho aparecem as rosas e é necessário prestar muita atenção, evitar os espinhos, porque uma dessas rosas, um dia será sua inseparável companheira.

As árvores vão surgindo, de todos os tipos e cores, algumas de raízes podres, outras tão imensas, que simplesmente não conseguimos nelas nos agarrar.

Lá pelos quarenta e cinco anos, finalmente chegamos ao cume da montanha e tocamos a grande árvore.

É quando o tempo passa mais depressa e logo se faz necessário retornar.

No caminho de volta, que agora é descida, por isso mais fácil, revemos na outra margem tudo o que passou, estranhando ao se dar com caminhos mais fáceis, que evitamos, sem querer, percebendo, num riso pasmo, que nem tudo foi tão verde, mas o que antes fora cinza, olhando de perto, nem era tão escuro assim.

É quando se faz possível rever o rio e identificar as margens que o oprimem, cada lasca de barranco que cai é o sinal dos passos dados, ás vezes firmes, às vezes tortos.

E embora na descida a saudade nos desmonte, não é recomendável remexer os escombros dos velhos quintais, procurar nas rachaduras da montanha algo que se perdeu, pois tudo é nuvem, vento que sopra, passou, não volta mais.

Finalmente consigo entender o que a minha avó queria dizer quando afirmava que as folhas das árvores, que antes eram ásperas e duras, agora estão lisas e soltas, que é preciso manter os olhos bem abertos aos insondáveis mistérios da vida, (dominado) pelo fascínio que sopra da montanha e aos poucos me preenche.

E tudo termina, depois recomeça, naquela mesma grama cheirando a bosta de vaca.

Quase milionário

Estava sem nada a fazer na barbearia, esperando o Bruno cortar os cabelos.

Ao lado da barbearia existe uma casa lotérica. .

Não sou dado a apostas, para mim jogo de azar quer dizer exatamente isso: azar. .

Mas como o corte demorava a ficar pronto, resolvi esticar as canelas e quando vi já estava preenchendo uma cartela da lotofácil, que foi a que me pareceu mais fácil de ganhar e que os números já seriam sorteados no final daquele mesmo dia. .

“Ficou rico da noite para o dia”, li essa frase em algum lugar e agora ela se encaixa perfeitamente nesse texto. .

O prêmio era tão vultoso que faria coçar as mãos de certos políticos. .

Um pensamento insólito, tão forte, garantia que eu iria ganhar, já cheguei em casa arrotando licor.

Quando abri a internet e consultei o resultado, decepção.

Por míseros três números, que não foram sorteados, continuo liso na lida.

Entre os três números que não saíram, o 13 me chateou profundamente, justo meu número da sorte, me abandonou.

Pensando bem, o que eu faria com tanto dinheiro?

Num divagar silencioso, a primeira atitude seria mudar os horários; dormir tarde, acordar tarde, comer a comida que me traria até o beiral da cama o mordomo Alfredo – sim, porque mordomo que se preza se chama Alfredo – depois tomaria banho na banheira de hidromassagem, beberia uma taça de vinho raro, ignorando o fato que nunca gostei de vinho, sempre preferi a cerveja, mas agora, podre de rico, o que me importa é a safra do vinho.

Daí usaria uma sandália de veludo e cobriria o corpo com tecido de seda, por cima, claro, um pulôver João Dória amarrado sobre os ombros, já ansioso que logo à noite, durante o jantar, finalmente descobriria que diabos de gosto têm o tal caviar.

E as horas caminhariam devagar, no mesmo ritmo dos meus passos, aborrecido com Jarbas, o motorista – sim, porque todo motorista que se preza se chama Jarbas – que demora a tirar o Jaguar da garagem.

Num estalo de dedos perceberia a necessidade de ser um ricaço benevolente, então, mandaria dinheiro para as ONGs dos amigos mais chegados e distribuiria brinquedos às crianças carentes no natal.

Nas reuniões com o seleto grupo de amigos, todos ricos, é claro, entre taças de champagne e arrotos de caviar, discorreria elogios sobre a obra de Warren Buffett, embora nunca tenha lido uma mísera página de seus livros.

E no final da reunião, noutro estalar de dedos, pediria para que Alfredo servisse a sobremesa, um doce insosso, de nome estranho e comprido “brownie de chocolate negro com baunilha de Madagascar”, que custou os olhos da cara, embora me corroesse o desejo quase doentio de comer paçoca de amendoim.

E na solidão de depois da festa, entre suítes, quartos e banheiros, acalentaria o sonho de comprar o Operário e assim reviver os tempos bons de infância, que a gente formava filas que entupiam as avenidas, marchando à pé – valorosos pés da infância pobre – até chegar ao Morenão e das suas arquibancadas de concreto, sentir novamente aquela felicidade de criança, só de ver o time em preto e branco entrar em campo, sensação muito mais saborosa que caviares, vinhos e champagnes.

Depois dormiria pesado, porque ser rico é bom, mas cansa.

Putz, ainda bem que aqueles números não saíram.

De qualquer modo, só para garantir, amanhã vou fazer uma nova fezinha na loteria.

Dessa vez, não vou apostar no 13.

As Marias

Hoje, num corredor estreito do Mercadão Municipal, passei diante de um rosto antigo, que me remeteu a mais tenra idade.

Nos tempos que agora conto, o nome Maria era muito comum.

Enquanto o vulto foi desaparecendo entre as bancas de verduras, fiquei meditando: É uma das Marias de antigamente, mas não sabia exatamente qual.

Naqueles tempos, diferente dos dias atuais, que impera o politicamente correto, os apelidos proliferavam, sem qualquer tipo de preconceito ou coisa que o valha, era um costume.

E como as Marias eram tantas, sempre se dava um jeito de encaixar algum caso ao nome.

Maria Cabelinho, por exemplo, tinha esse apelido devido a uma mecha de cabelos, que ela mantinha jogada para o lado da testa, esticada até não dar mais, curtida em quina petróleo, que era o alisante da moda naquele começo de anos setenta.

Meu tio Lourival tinha uma vitrola portátil, que levava para os bailinhos nas casas vizinhas.

Num desses bailes, certa vez aconteceu confusão, alguém sacou de uma arma e deu um tiro, que pegou de raspão na perna de uma Maria.

Foi só um susto, que resultou na Maria Baleada, moça bonita da perna riscada a bala.

Certa vez, num outro baile, tio Zequinha fez um elogio qualquer a uma Maria e, desde então, ela deu de aparecer constantemente na nossa casa.

Na época, as rádios tocavam com freqüência uma canção, cujo refrão dizia “shalala”, que a tal Maria trazia grudada na boca, nem se dava ao trabalho de cumprimentos, já chegava cantarolando a música, acompanhada de um som esquisito de falha nos dentes, stic, stic, enquanto com os olhos rasos d’água procurava pelos cantos da casa o meu tio.

Minha mãe imita a Maria Shalala com perfeição até hoje, com direito ao tic lingüístico no final, só para nos arrancar risadas, “shalala, stic, stic”, ela diz.

De todas as Marias, a que mais me intrigava era a Maria Canelinha, porque não sabia ao certo o motivo daquele apelido.

Recentemente, minha mãe esclareceu, naquele brilho nos olhos que só dona Dalva tem quando conta travessuras: “É porque ela usava uns vestidos curtos e vinha nos visitar com o sol batendo nas canelas finas, que brilhavam de longe”.

Muitas daquelas Marias não precisaram de apelidos, eram santas Fátima, Das Dores, Das Graças, De Lourdes, Aparecida.

E não poderia escrever de tantas Marias sem revelar que tenho duas tias, que são gêmeas, Maria Marta e Marta Maria, que nós as chamamos de Marta e Martinha, e disso elas nunca reclamaram, até porque as outras irmãs se chamam Vidalvina e Eurinda Alvina.

E são tantas as Marias que viviam naquela época e que agora povoam o meu pensar, que exclamo em voz alta, assustando um transeunte: Ave, Maria!

O rosto que passou por mim aos poucos foi se apagando.

Maria Cabelinho, Maria Baleada, Maria Shalala, Maria Canelinha, apesar de tantos anos passados, tenho certeza que era uma delas.

Detesto quando não consigo desvendar minhas dúvidas.

Voltei para casa ruminando ao invés de falar, as mãos pensas, o pensamento na estrada do tempo, trazendo novamente aquela canção aos ouvidos, shalala stic, stic.

O homem nu

Era um homem honrado.

Trabalhou com afinco, estudou até se formar.

Só então se casou, na paz dos homens de bem.

Os pilequinhos de fins de semana faziam seu corpo arrepiar ao perceber que era o orgulho dos pais, modelo para os amigos, exemplo para os filhos.

Em todas as discussões, era o último a falar, ponderado.

Afirmava, envolto numa aura de bondade, que seus conselhos eram simples e fáceis de ser seguidos.

Apegado à religião, tinha sempre pronta uma frase bíblica para exemplificar o seu pensar.

Temia a Deus e acreditava na justiça dos homens.

Mas esse homem bom, esse brasileiro repleto de virtudes, trazia escondido alguns defeitos.

De repente danou a versar sobre política, afirmando que precisava dar a sua parcela de contribuição.

Quando preencheu a ficha de filiação ao partido político, um risco de arrepio tomou conta do seu corpo, mas foi adiante.

Vestido de candidato caminhou pela cidade, os sapatos ficaram gastos, a pele ressecou, o bigode e as pontas dos poucos cabelos precisaram de tinta.

De repente, já não rezava antes de dormir.

Comprou dois pares de terno, vestia um a cada dia, desconsiderando o desconforto, se acostumando aos poucos com a distância da antiga bermuda, a camisa folgada, o par de chinelos.

E foram tantos os apertos de mãos que logo o gesto se tornou costume.

Não percebeu quando passou a olhar o frentista nos olhos, nem notou que o vizinho era solitário, mas sentiu prazer ao perceber que aquele tio, distante e velho, dele se lembrava com riqueza de detalhes.

Logo seu riso começou a tornar-se falso.

Não sabia que tinha tantos parentes, nem mesmo que os amigos lhe eram gratos pelo passado de hombridade.

A foto no santinho não tinha rugas, o brilho mascarado, azul ao fundo, obscura pelos pensamentos.

Foi eleito raspando, graças aos votos de outro candidato, um ser desprezível que tinha dinheiro.

Quando deu por si já possuía dezoito pares de ternos, fez implante nos cabelos e raspou o bigode.

Tentou ser um político honesto, mas foi ligeiramente tragado pelo sistema.

Alguém lá atrás avisou sobre o sistema.

Rasgou sem pudor o que antes chamava de ideologia, ao povo deu bananas, se importava apenas em cumprir as ordens do grande chefe.

Era outro homem, quase rico, quase dono de todas as coisas que sempre almejou.

Quando a primeira nota de jornal denunciou as falcatruas, não recuou, pensou sinceramente que era um ataque da oposição, que havia feito um trabalho bom o suficiente para tentar a reeleição.

E afrouxou os botões da camisa.

Não conseguia mais encarar o rosto da mulher, a companheira já não era cúmplice, mas uma estranha que lhe cobrava com olhares muito mais que palavras.

As denuncias cresceram e logo as algemas tomaram lugar da pulseira de ouro.

No dia que saiu da prisão, conseguiu reunir todos os filhos.

Quando abriu a porta do restaurante, foi saudado por olhares inquisidores, a fogueira que ardia em cada canto do lugar.

Só então se sentiu despido.

Estava nu e todos os olhos apontavam suas partes pudendas, que em vão tentava esconder.

Saiu sem se despedir, se juntando aos outros que limpavam o ranho das crianças pobres, ciente que não estava só.

Pelas ruas da cidade, as calçadas estão repletas de homens nus.

O lado oculto da lua

Ontem, ao cair da tarde, percebi que a lua sorria no céu.


Lua não combina com o dia, é amiga da noite, fica estranha quando aparece durante o dia.

Diante da surpresa ao contemplar a inesperada aparição da lua naquele horário, várias luas surgiram no meu pensamento.

Nunca usei drogas, mas adoro olhar o universo em noites de lua cheia e com ela me entorpecer.

A lua é a minha cocaína.

Certa vez, um velho índio me contou que Tupã criou Jaci para iluminar a escuridão enquanto Guaraci dormia, mas não contava fazer algo tão belo, de um tanto que acabou ele mesmo se apaixonando pela própria criação.

Acontece, porém, que Jaci se deixou fascinar pelos encantos de Guaraci.

Com medo de causar ira a Tupã, refugiou-se na noite e de lá só sai em dia como o de ontem, num passeio de lua nova, efêmero e na forma de um belo sorriso, tão cativante que a todos causa encantos.

Em mim, provoca o irresistível desejo de uivar.

Penso isso e um riso interior me invade, um riso pra dentro, daqueles que só nós entendemos, ao lembrar que quando era novo, costumava uivar para a lua.

Fazia isso quando a festa acabava e as luzes da rua aos poucos se confundiam com o raiar de um novo dia, mas ela ainda estava lá, pairando acima das nossas cabeças juvenis e então eu uivava, nem sei o porquê, talvez para divertir os amigos, porque uivar para a lua era a única coisa que um jovem estranho como eu poderia ousar fazer antes de dormir ou então, simplesmente, era o começo da loucura.

E agora lá estava ela, sorrindo para a terra, do lado direito, aos poucos se aproximando do sol.

Num instante lúdico, imaginei Jaci flertando novamente com Guaraci, e tive pena de Tupã.

É que além de fases, a lua tem seu lado oculto.

E é exatamente esse lado oculto, repleto de segredos, que me atrai.

Adoro desvendar mistérios.

Já mostraram o lado oculto da lua em fotos, mas não acredito naquelas fotos, prefiro a fantasia de um lugar inóspito, inexplorado e repleto de segredos.

O que será que existe por lá?

Gente, deuses, quem sabe um jardim secreto, de cujas árvores despenquem frutos proibidos.

Que tolice a minha, imaginar um jardim secreto num lugar que não bate o sol.

De certo não há crateras no lado oculto da lua, há vazios, mares desertos e coisas que nem sabemos o nome, porque estão acima do nosso poder de compreensão.

Encarei novamente a lua e o vento soprou forte e frio, como se fosse um lamento, enquanto ela prosseguia em busca do sol, se encaixando aos poucos entre duas nuvens que caiam na serenidade do horizonte.

Jaci, Guaraci, pobre Tupã.

Compreendi afinal que somente diante daquele lunar sorriso que consigo ouvir o sopro do vento, que logo se transforma numa canção antiga, tão antiga que nem me lembrava mais, mas que agora me invade, sugerindo frases e mais frases, que vou juntando até formar algumas estrofes, que não rimam, mas se abraçam.

E de novo sinto vontade de soltar um uivo, tresloucado e oblíquo, grito de um lobo insano, que tenta em vão buscar o lado oculto da lua.

A estátua viva

E de repente vejo um anjo, em pleno calçadão da Avenida Barão do Rio Branco, reluzente, de pé num pedestal rústico.

É uma artista de rua na performance de estátua viva.

Toda arte me atrai como que por encanto, assim, quando dei por mim, estava bem perto dela; uma moça morena, da pele fina, o nariz arrebitado e dos cabelos negros, da mesma cor que imaginei que seriam seus olhos fechados, calados, rijos feito rocha.

Uma estátua de anjo.

Para chegar perto sem levantar suspeitas, comprei um churros do doceiro ao lado, que fingi comer, queria mesmo era admirar a artista.

Ela não se mexia, não piscava e tive a sensação que não respirava, apenas existia, sob o fardo do silêncio, indiferente ao movimento de carros e pessoas.

O churros escorreu pelos meus dedos quando um sonho delirante atravessou minha mente: E se eu fosse aquela estátua viva?

Não pude evitar. No instante seguinte me peguei fechando os olhos, incorporando aos poucos a estátua, dominado pelo silêncio, permitindo ao corpo levitar.

Já tive desses delírios, sonhei que era um pássaro, das asas de Ícaro, que derreteu num dia que nem tinha sol.

Respiro lento enquanto a lembrança de uma brincadeira de criança me invade, vaca amarela pulou a janela, quem falar primeiro comeu a bosta dela, e fico quieto, num completo silêncio que nunca enfrentei, nem mesmo os passos nas calçadas escuto mais, os carros que passam são imagens amorfas, o meu sangue esfria, consigo sentir a pele congelar.

Um cachorro vadio caminha por perto, meus olhos estão fechados, mas sinto seu cheiro de cachorro molhado e me invade uma vontade imensa de espirrar, que a custos consigo controlar.

Duas moças se aproximam fazendo algazarra, uma quer se mostrar mais feliz que a outra, apontam na minha direção, sorriem da plenitude de meu rosto de pedra.

A moça mais alta tenta tocar em mim, mas desiste no instante final, levada pelo medo da minha reação.

Elas se distraem com a capa de uma revista, suspiro num alívio que logo termina; um menino magrelo surge de repente, escapando das mãos da mãe descuidada.

Do restinho de visão que entra pela fresta dos meus olhos, percebi que era um moleque travesso.

Ameaçou chutar minha canela.

Regurgitei todos os meus medos, pensei, vaca amarela…

Num movimento brusco, a mãe puxa as mãos do menino e o leva para longe.

Não tenho tempo para alívios, uma coceira me atinge embaixo da axila, logo ali, que agora tenho asas, a vontade de mexer e me coçar é tanta que…

Vaca amarela pulou a janela, quem coçar primeiro comeu a bosta dela…

O doceiro pergunta se quero outro churros e me retira daquele devaneio.

O céu já não é cinza, a luz caminha aos poucos na escuridão.

Encarei a artista com olhos carregados de aplausos e depositei cinco reais aos seus pés.

Ela então se movimenta, muda de posição e sorri de leve, um riso puro, repleto de enigmas.

Atravessei a rua enquanto os raios do sol rasgavam os edifícios e os solavancos da cidade mostravam o concreto pulsante, a vida aos poucos voltando ao normal.

No entanto, há o lírico sorriso da estátua viva, tão enigmático que chego a pensar que era mesmo o sorriso de um anjo.

NO INSPIRATION

Na manhã fria desse sábado de junho, por vários minutos tentei tocar algum tema no teclado, sem sucesso.


Surgiram idéias, que me escaparam entre os dedos.

O frio me deixa sem inspiração.

Affonso Romano de Sant’Anna diz que o cronista é um escritor crônico, e como tal, atravessa o tempo em busca do seu “eu”.

Acontece comigo que o tempo simplesmente para quando está frio.

Tudo o que eu quero em dias assim é deitar confortavelmente numa cama e assistir filmes, até cair no cochilo, acordar de repente, quando o filme já caminhou vários minutos, tentar entender a história e, sem sentir, dormir novamente.

Tai um bom assunto, que vou deixar para outra crônica, porque acabo de descobrir que não sentir inspiração é uma ótima inspiração.

Volto a encarar o monitor, quieto, calado, quase uma estátua de gelo.

Recentemente ouvi alguém dizer “fumos fidalgos”, em referência ao Dom Casmurro de Machado de Assis.

Fui buscar o significado e descobri que é quando alguém se envaidece com o título de nobreza.

Eu, barão? Acho que não levo jeito.

Num repente, senti vontade de falar daquilo que não dou a mínima, como a fórmula de bhaskara, que sofri feito um pobre diabo para entendê-la nos meus tempos de estudante, mas que nunca a usei para absolutamente nada.

Ou então versar sobre silêncios, noites, anotar o inexprimível, fixar vertigens e só lá no fim contar que é de autoria de Rimbaud.

Apanho no ar perguntas tolas, o que é mais antigo, aveia Quaker ou emulsão de Scott? Qual o nome do cantor de nuvem passageira? Será que Torquemada sentia frio quando acendia a fogueira?

Nada faz sentido.

Até o título dessa crônica troquei diversas vezes e no final acabei optando por este em inglês.

Sem querer, acabo imitando John Lennon quando compôs “I Am The Walrus”, que ele tinha três canções em mente, não conseguia terminar nenhuma, juntou todas numa só e conseguiu a melodia perfeita, embora a letra seja totalmente sem sentido.

Uiva o vento frio e penso apanhar alguma coisa no azul, minha cor predileta, que me provoca inspirações, nela já me apanhei contemplando o céu e desenhando bichos nas nuvens, também já a tive na roupa dependurada no varal e num enorme navio que só conheço em pensamentos, tudo azul, que foram suficientes para me permitir envolver pelo ruído do teclado, escrevendo frases soltas no meu cérebro, um encaixe, um personagem, a bola que atravessa a rua e faz o carro parar, com medo que uma criança atravesse, provocando espanto logo depois, ao perceber que é a figura de um adulto que corre atrás da bola azul.

E agora me deu vontade de comer polenta.

Passou rápido, porque lembrei que na geladeira tem um pedaço de pudim de ontem, vou lá pegar, antes, porém, preciso mudar a faixa do youtube, que me deixou incomodado essa música do Roberto Carlos, “se outro cabeludo aparecer na sua rua…”, que nada tem a ver comigo.

Na volta desprezarei o frio e fixarei meus olhos no ponto final, sem fumos fidalgos, apenas o aperto brusco do desligar das tomadas.

Arroz com rapa

No atropelo do dia que caminha para a metade, entre carros apressados e motos atabalhoadas, eis que de repente, do restaurante da esquina, sinto escapar o inconfundível cheiro de alho fritando no óleo, atingindo em cheio o meu nariz, fazendo meu rosto erguer para cima, de olhos fechados, tentando a todo custo pegar nas mãos aquele cheiro delicioso, como se sólido fosse.

A pessoa do carro ao lado olha para mim de um jeito estranho, mas não ligo.

No deslumbre daquele instante, visualizei na mente a fumaça subindo da panela de arroz, quentinho e saboroso.

Adoro arroz.

É sabido que tenho várias idades, e que muitas vezes, no assombro causado por algum detalhe, como esse cheiro de agora, me remeto em pensamento a outros tempos, a outros lugares.

Assim, abriu-se novamente aquele súbito espelho do passado, fui lá atrás, na mocidade, nas asas daquele cheiro que muito se assemelha ao que saía da velha panela de ferro na qual minha mãe cozinhava.

Imaginei que no fundo da panela tinha rapa e cheguei a sentir o gosto, porque o arroz da minha mãe tem esse ingrediente especial, lá no fundo, bastando remexer a colher, trazer para cima o que está no fundo e com leves batidas levar ao prato a rapa do arroz.

Ah…salivo, mastigo em pensamentos…

E dona Dalva jogava por cima do arroz ovo frito, tomate com alface, misturados com pedaços de carne frita.

Não existe comida melhor que aquela.

Comidinha de mãe é sem igual, já reparei que quando a Graziela consegue tempo pra cozinhar, nossas crianças comem feitos ursos quando despertam da hibernação.

Recentemente tive problemas com o diabetes e descobri, incrédulo, que arroz produz açúcar e, portanto, só poderia comer no máximo duas colheres de arroz.

Mas nunca fui apegado a regras, continuo comendo a porção que meu apetite pede, depois faço caminhada e compenso, com sacrifício, o exagero.

E sempre exagero no arroz.

Não me canso de contar que o prato mais saboroso que experimentei na vida foi um arroz carreteiro, feito na hora, pelo ponteiro da comitiva, numa fazenda na região da ponte do grego, depois de um dia cruzando a estrada, imaginando que a fazenda fosse perto, mas que a viagem durou mais horas que o antes imaginado.

Tinha rapa e charque e só o cheiro quase me fez chorar.

Cheguei a engasgar, tirando risos dos rostos pantaneiros ao meu lado.

Foi um tantinho melhor do que aquele dos tempos da faculdade, que varei o dia estudando para uma prova e nada comi o dia todo.

Quando cheguei em casa, encontrei o arroz da minha mãe, ainda quente, enegrecido pela rapa, que juntei a um ovo frito e comi como se fosse a última refeição, na própria panela, que raspei, raspei e raspei até ficar com o fundo brilhando.

Eu sei que minha mãe faz arroz com rapa todos os dias, mas estou sempre correndo contra o relógio, sem tempo para essas coisas raras e belas que a vida me concede e delas me desfaço com singelas desculpas.

Talvez domingo… – penso breve –

E logo volto a atenção para o volante do carro, enquanto o cheiro vai se esvaindo pela rua na qual atravessa o povo apressado de sempre, e eu , pobre de mim, só queria mesmo um prato de arroz, esfumaçante, saboroso e com rapa, daquele jeito que só a minha mãe sabe fazer.

Filme em preto e branco

Pertenço a uma sociedade secreta que adora filmes em preto e branco.

Não vou contar detalhes, como disse, é uma sociedade secreta.

Mas posso dizer que quando chove, estico os ossos no sofá logo depois de esquentar uma caneca de leite com chocolate para ver na TV filmes em preto e branco que tenho gravado.

As opções são tantas que fico um bom tempo zapeando com o controle remoto, em busca de um daqueles de neve caindo na aba do chapéu do mocinho, que pisca o olho, desviando a fumaça do cigarro que sobe, inibindo de vez a desavisada mocinha, que tão ingênua e recatada (que palavra horrível!), recolhe o corpo num aperto de ombros.

Filme antigo é cativante até no título: O homem que matou o facínora, Como era verde o meu vale, Psicose, Cidadão Kane, A felicidade não se compra…

Não assisto mais TV aberta, cansei, dei um basta.

E isso já tem um bom tempo.

Dias desses vi a Tássia Camargo numa manifestação política e custei a reconhecê-la.

O tempo passa e nem percebemos.

Ainda ontem (na verdade, muitos anos atrás) Tássia era uma das estrelas das novelas, linda, meiga e recatada (de novo essa palavra horrível!).

Sinal que envelhecemos.

Chuva, filme antigo, sono…

Deixo meus pés roçarem um vaso de flores num canto da sala, o reflexo é de cores que aos poucos se mistura em meus olhos ao preto e branco da TV.

O copo de leite com chocolate esfria e repousa mansamente entre meus dedos, à espera que o sol volte, mas sem nenhuma pressa, os olhos presos na beleza de Scarlett O’hara, mais precisamente nos olhos de Scarlett, verdes ou azuis, nunca soube ao certo, muito embora esse seja um filme colorido.
E num leve click, outro filme em preto e branco surge diante dos meus olhos, O falcão maltes, um clássico noir com Humphrey Bogart.
E não tem jeito, Bogart me remete quase automaticamente para Casablanca, e o fascínio toma conta de mim diante do rosto perfeito de Ingrid Bergman.
Ah, aquela cena da despedida, a canção, “As Time Goes By”…
Lágrimas de fogo em meu rosto.
Sempre imaginei que esse filme merecia um final feliz,  na última cena a câmera se aproximando aos poucos, registrando o beijo final, a dama entregue, os lábios oferecidos e um dos braços caído rumo ao chão, como quem desfalece.
O mocinho é de uma postura de pedra. Bogart, puro Bogart.
Um pensamento bobo me assoma, será que ele vai apressar o beijo na ânsia de acender outro cigarro?

Fim de filme.

O preto e branco nos meus olhos vai dando lugar às cores do mundo real.

Ao desligar a TV, dou de cara com os pingos da chuva batendo na janela.

Ninguém lá fora, só o vento, a escuridão e a água que cai.

A cena escancara na minha mente uma frase do Fernando Pessoa: “ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta”.

Pessoa me remete a livros, mais ainda, à vontade de ler, e saio procurando um romance que comprei tempos atrás e não terminei de ler, que nem sei mais o título, mas sei que na capa tem flores e ventos.

Que chato procurar um livro e não encontrá-lo, fica aquele sentimento estranho de perda, amparado pela dúvida, será que emprestei e não me foi devolvido? Não sei.

A chuva insiste, prendendo-me quieto num canto, bebendo o que resta de leite com chocolate, frio, quase gelado, contemplando o silêncio, os olhos pousados no vaso de flores das pétalas murchas pelo tempo, que já não exala perfumes, mas é quase tão maravilhoso quanto um filme em preto e branco.

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