Estou ficando velho demais

Todo fim de ano essa ideia me ocorre: estou ficando velho demais. Ontem era janeiro, quando fui ver, já é dezembro novamente.
E a estrada vai ficando mais curta. Até onde? Nem quero imaginar. A rotina e os estalos todas as vezes que me estico, andam me transformando num sujeito resmungão, enxergando defeito em tudo e simplesmente não suportando algumas conversas.
Tenho feito poucos amigos, a idade avança e a desconfiança caminha junto.
Deixei crescer um fiapo grisalho de fios na barba, bem na ponta do queixo, só para me ajudar quando resolvo pensar e então mergulho num coçar reflexivo.
Tenho controlado a saúde, mas a custo caro.
É muito triste reconhecer que açúcar e um veneno. Delicioso veneno.
Remédio bom é remédio amargo, diziam os antigos. Triste verdade. E o chocolate foi o primeiro a cair da prateleira.
Mantenho a custos o nível bom do colesterol, a bebida já não cai tão bem, a ressaca é certa e sinto a ausência dos antigos companheiros. Muitas vezes, a falta do cigarro me causa a angústia da saudade.
Mas a vida sem açúcar chega a ser cruel.
Um amigo me contou sobre alguns despistes, por exemplo – ele disse – existe chocolate sem açúcar.
“É um pouco amargo, mas muito gostoso”.
Resolvido o problema do açúcar, fiquei a imaginar a chateação das coisas repetitivas. Rotina é sinônimo de tédio, só perde para a solidão.
Acho que vou aprender a tocar Saxofone e abalar a quietude dessa rotina.
Minha mulher passa por perto, levando no colo o nosso neto Tom. Coço o fiapo da barba: quem diria, a menina linda dos cabelos longos, agora já é vovó. Eu também sou vovô! Preciso me acostumar com essa ideia.
O fiapo quase fala: é hora de planejar antigas viagens. Paris por causa dos museus, Amsterdam porque quero ver o esconderijo onde Anne Frank escreveu aquele livro maravilhoso; Inglaterra porque os Beatles nasceram lá e não posso morrer sem pisar no Cavern Club.
Embora nessa vida ligeira eu ainda não tenha aprendido a cantar, talvez, num ato extremo, “Here, there and everywhere’ escape da minha garganta.
Puxei o fiapo, imaginei a cena. Acho que me daria melhor tocando saxofone.
Talvez eu troque de carro, o atual, tão acostumado à minha rotina, já sabe todos os caminhos e se tornou um chato reclamão feito eu. O meu vizinho tem um opala. Eu sempre quis ter um opala, mas não consigo sentir inveja do vizinho. Ele passa por aqui, acelerando o motor, deixando a profunda impressão que só tem trinta anos e parece um velho.
Quanto será que custa um saxofone?
Minhas vistas andam cansadas, mas a mente ferve.
É tão claro agora o jovem estúpido que fui.  Ás vezes me recordo antigas atitudes e sinto vergonha. Se eu pudesse voltar no tempo… Puxo o fiapo: o jeito é perdoar aquele jovem besta, naqueles tempos eu não sabia o que hoje sei.
Tenho consulta logo mais. São tantos médicos: ortopedista, cardiologista, oftalmo, endócrino.
Ir ao médico se tornou outra rotina chata.
Já confundi os nomes, os rostos, as receitas, os conselhos.
Um deles me olha de um jeito estranho, ou então o estranho sou eu que sempre soube que ele também é geriatra.
Tenho uma leve bronca do endócrino: foi ele, o malvado, que cortou o açúcar.
Experimentei chocolate amargo e não vou repetir a dose. O gosto horrível permanece na minha boca, levando embora, num caminhão de pudim, a doçura da vida que passou.
Dane-se, mais tarde, vou comer pudim.
Remédio bom é remédio amargo. Mas cortar o açúcar beira à crueldade.
Embora resmungão e me sentindo velho demais, não pretendo fugir dos meus sonhos. Então não se assuste se brevemente me encontrar por ai, dirigindo um opala, ou num bar de esquina, tocando saxofone e cantando versos sorrateiros. Em meio à canção, direi, num tom melodioso, e talvez você perceba, como a vida passa ligeiro.

Para o meu neto Tom

Pequeno Tom, ao tocar suas mãos, descubro em você o arco-íris do meu sonho.
Trago-te versos profundos, minha alma e todo o amor desse mundo.
Queria começar falando dos passarinhos, mas eles voaram, apressados, ao ouvirem as batidas do meu coração.
Você é o meu passarinho, eu sou seu ninho, moramos numa árvore.
Permita que o meu primeiro beijo chorado, desengonçado, emocionado, banhe o seu rosto rosado. É que ainda não me acostumei por completo com a novidade de ser avô. O tempo passa, envelhecemos, mas uma criança travessa insiste permanecer dentro da gente, aos beliscões, gritando um resto de juventude.
Tento acelerar o tempo, ver você correndo de mim pelos cantos da casa, gritando a felicidade de criança correndo de um velho.
Ah, eu nem sou tão velho assim.
Mais do que seu avô, quero ser seu amigo de todas as horas, para lhe dar abrigo quando você precisar.
Não se esqueça: eu sou aquele da ponta da mesa, o contador de histórias. Aliás, vou lhe contar a primeira: quando sua mãe nasceu, inventei uma música para cantar com ela, era algo sobre uma massinha que cresceu dentro da barriga da mamãe.
Ela adorava.
Fiz o mesmo com seu tio Bruno, e quando o vento sopra em meus ouvidos a brisa de antes, faz surgir a imagem deles criança, tal qual você é agora, e então sinto essa mesma felicidade de árvore.
Sim, meu amado neto, a árvore sente felicidade, porque aquele imenso tronco, repleto de galhos e com folhas nas pontas, é segura no chão por uma raiz, e a raiz, mais do que tudo, sente o esplendor do amor despertado ao tocar a semente nascida do colo da própria flor.
Sua avó Grazy beijará o seu rosto todos os dias e será também sua eterna companheira.
Por falar nisso, andei medindo o meu coração e descobri que nele não cabe tanto amor que pretendo lhe dar.
Ao se sentir solitário, corra e me abrace.
Quando suas mãos se abrirem, me apanhe como a um livro; amassando, marcando, riscando trechos da nossa história que agora começa e que jamais terá fim.
Ao se sentir sozinho, olhe pare o lado, eu estarei sempre por perto. Brinque com as rugas no meu rosto, faça nelas um carinho e eu, em desalinho, sentirei suas mãos como um toque de Deus.
Não trago na memória nenhum exemplo de avô; não os tive, morreram antes ou sequer existiram, então, talvez eu me transforme num avô desajeitado.
Perdoe minha falta de jeito e também os meus defeitos: não fale comigo quando estou comendo, lendo, muito menos quando eu estiver escrevendo. Não me acorde bruscamente, não fale mal do Botafogo, não diga que não gosta de ler.
Quando você começar a gatinhar, farei o mesmo, fingirei não sentir dor nos joelhos e vamos apostar uma corrida até a porta. Quem vencer beija o outro.
Se precisar de carinho, me abrace. Posso ser o seu brinquedo preferido, um urso de pelúcia que anda e fala, o pião girando tentado se esconder, ou o policial nas aventuras contra todos os bandidos.
Ainda não tenho pronta a nossa música, precisava antes tocar suas mãos, olhar os seus olhos, beijar sua face.
Ah, meu querido Tom, seu pai vai te ensinar a caminhar, a andar de bicicleta, jogar no computador; sua mãe apanhará suas mãos e lhe dará conselhos, afagará seus cabelos com carinho e algumas broncas às vezes, mas não se espante ao perceber que eles são apenas duas crianças.
A bola vai rolar e você irá atrás dela naquele riso de cortar o ar e eu também correrei, não por cuidado contigo, mas porque sou tão criança quanto você.
Se o tempo caminha sem repouso, a velhice nada mais é que uma eterna infância.
Agora dorme seu sono sereno, outro dia logo vem e o futuro nos espera.
Se um dia distante, me leve no pensamento, e então no céu haverá de surgir o lume de luzes num círculo cortando toda a terra, o arco-íris do meu sonho, formando a sua imagem, o menino que nasceu para nos trazer paz e amor.
No fecho de todas as tardes, me aguarde, depois me guarde, reserve um pedacinho seu para mim, para nós, para sempre.

Um conto de bichos

De repente a floresta ardeu em chamas.
Os bichos, aturdidos, não sabiam o que fazer.
Em meio à áspera nuvem de fumaça, surgiu um belo passarinho carregando um pouco de água no bico. Corajosamente sobrevoou o foco do incêndio e lá atirou as gotas de água que conseguiu ajuntar.
O macaco sorriu, apontou para o passarinho: “sai daí bicho estúpido, você jamais conseguirá apagar o incêndio”.
O passarinho, que sabia falar a língua dos macacos, respondeu: “sei que não apagarei o incêndio, mas estou fazendo a minha parte”.
Os outros bichos se entreolharam, surpresos.
Deu-se um ameaçador silêncio, nem mesmo as hienas foram capazes de sorrir.
O rei Leão resolveu agir, fazer valer sua liderança, ordenou que o elefante enchesse a tromba de água e ajudasse o corajoso passarinho.
Um tanto contrariado, resmungando que outros poderiam ajudar de alguma forma, o elefante caminhou até o rio e encheu o quanto pode de água a tromba.
O leão pensou dar ordens ao jacaré, um pensamento corrido, talvez com uma boca tão grande, poderia enchê-la de água e ajudar o elefante e o corajoso passarinho.
Mas o jacaré fechou os olhos e mergulhou na água profunda. Ali estava livre do perigo das chamas e disso sabia muito bem.
O fogo aumentou, o passarinho continuou fazendo sua parte enquanto o elefante desistiu na terceira tentativa. Quando os bichos esperavam pelo pior, quando o calor das chamas já chamuscava todos os pelos, detrás do sol partiu uma imensa nuvem negra de chuva.
E o temporal desabou em poucos minutos, apagando o incêndio.
Depois de horas, o incêndio já não existia, apenas o cheiro de queimado insistia a pairar pelo ar.
Assim que tudo se acalmou, entre lágrimas incessantes, a raposa trouxe entre suas patas o corpo ainda fumegante do passarinho.
O leão se aproximou, fez um gesto de carinho na cabeça do passarinho e logo depois o devorou.
“Nunca confiei nas raposas.”
Disse entre dois arrotos com gosto de carne explodindo. Depois estalou os dedos:
– Não existe nada mais gostoso do que passarinho assado”.
E a vida voltou ao normal na floresta.

O admirável campo dos girassóis

A luz dos meus olhos falhos,  assoberbados pela tristeza, escala um resto da estrada desviada; pegadas marcantes, rastros nítidos, a cabeça baixa, contando o que sobrou.
A tempestade se formou bem antes, mas pensamos que sequer choveria.
Sobra a brisa quente do vento e o buraco oco no qual a água da chuva balança, como um tremor.
Sinto o bafo quente da melancolia e quase choro.
O meu ideal seria escrever sobre flores, mas qual flor se pode desenhar nesse momento tão amargo?
Pensei na rosa, mas a rosa é meiga, não traduz o lamento em forma de chama sem pavio.
Em momentos assim, permito a estranheza de perfumes me conduzir a lugares distantes.
Perto da grande cidade, existe um enorme campo de girassóis. Muitas pessoas já foram lá e eu, incorrigível preguiçoso, fui adiando a viagem.
Fecho os olhos e imagino o lugar…
Logo, dou de frente com o admirável campo dos girassóis, o verde e o amarelo espalhados a cada palmo de terra. Uma senhora do semblante faceiro acena para mim e devolvo o sorriso da cor dos seus cabelos de algodão.
Para onde o sol obriga que os olhos dos girassóis se encaminhem?
Após alguns passos, um homem do campo caminha carregando pela rédea o velho cavalo, passa por mim num aceno de puxar a ponta do chapéu.
Será que ele sabe a novidade?
Pressinto num respirar a resposta, ainda tenho boca para sentir e olhos para comer: o pasto por onde cavalgam os girassóis é admirável, é um novo lugar.
Vou tirar uma foto e ir embora depressa – penso – mas não me agrada a ideia de juntar minha imagem a uma flor,sou bruto, nada fotogênico, o rosto grande demais para caber engalfinhado às pétalas dos girassóis.
Aqui dentro terra batida, lá fora a febril oração: Nietzsche errou, a arca de Noé se move acelerada, mostrando a inquietante verdade: Deus está mais vivo do que nunca.
O sol ordena, o girassol nem se espanta, prossegue cego, singrando a terra, embora os calos nas mãos resmunguem que é preciso dar muito mais do que receber.
A página atual não tem cheiro, mas quando esmurrada, se transforma em perfume francês.
Um grupo de jovens passa por mim – eles não sabem o que eu sei –, os braços erguidos para cima, seus olhos de escuridão não percebem que a iracunda engrenagem, aos poucos, será tomada pela ferrugem do novo.
Numa visão turva, eu vi a fome em meio a plantação e larguei no ar um suspiro de lamento, serão quatro as estações ouvindo este prolongado eco do trovão.
O calor insuportável de fim de tarde me sufoca, enquanto os vitoriosos se afastam, sem perceber que os raios do sol podem matar.
Na fineza dos detalhes, observo – escondido em algumas pétalas amarelas – besouros dos chifres pontiagudos e um estranho brilho de seda nos cascos escuros.
Nesse calor insuportável, é preciso desatar o nó que não tem ponta. Abraço a esperança: se um dia lá atrás, resistimos sem medo, novamente assim haverá de ser.
No momento de abrir os olhos e ir embora, ouço com nitidez o resistente som das flores diferentes, elas me prendem um pouco mais, seguram firmes as minhas mãos, o verde musgo desprendendo do caule, envergando o pé da planta.
Sinto um sufoco de nó de gravata, o calor faz escorrer pela minha testa o suor quente, mesmo que eu ande descamisado e sem nenhuma gravata.
Tentando se achar, o dia se fecha no horizonte e um desejo final me ocorre: se o ar não nos sufocar, nascerão nesse mesmo chão, outros girassóis e deles desprenderão raízes que escalarão os muros, até dar com as vistas numa longa campina, desprezando a quentura do sol.
Abro os olhos e enfrento o início da escuridão, somente as flores diferentes na retina, aos poucos escalando o muro, desviando dos espinhos, seguindo o voar rouco dos inquietantes pirilampos a iluminar o caminho.

O grito, serendipia!

Nesses dias nebulosos, descobri que de tempos em tempos, quase inconscientemente, me apego a alguma palavra. O movimento do trânsito me enlouquece, ligo o rádio, música gospel, música sertaneja, notícias… Vou girando o botão na ânsia louca de sintonizar uma música suave. Um carro enorme passa ao lado, trás no vidro traseiro retratos de rostos incendiados, imaculados pelos incautos e dentro de mim o grito se forma. Para muitos, o bizarro é bonito. Sussurro a palavra do momento: serendipia. A colega cronista Lucilene Machado – curvo a cabeça, agradecido – desencavou essa palavra e a jogou diante dos meus olhos para nunca mais escapar. Assim, antes de gritar, eu digo para mim mesmo: serendipia. E tudo se acalma. É isso ou um ópio qualquer. Prefiro a doçura da palavra.  Meus dedos não necessitam dos olhos para girar o botão de sintonia do rádio, na sexta tentativa, enfim, me permito ser invadido pelo som mavioso da voz de Elis, “O bêbado e a equilibrista”, e sorrio num leve balançar de cabeça enquanto os versos da canção descortinam a história diante dos meus olhos. O bêbado representa os artistas, a equilibrista é a democracia, se equilibrando na corda bamba. Aldir Blanc, você é genial! Serendipia é uma palavra de origem espanhola, cujo significado remete a uma descoberta feita ao acaso. Na mente desfila a mensagem de um jovem nas redes sociais; é o ódio, o equívoco, a contradição. Serendipia! “Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”. Esse aforismo de Santayana provoca em mim um riso de certezas. Tenho o costume de sorrir, no contentamento e no espanto, mesmo o grito seco ainda preso na garganta. Quase sempre, gritar é libertador, eu sei, mas no abafo, no murmurar palavras, encontro a fórmula irresistível para acalmar meu desassossego. Ah, o grito… Já sentiu vontade de gritar, assim, do nada, em público, numa daquelas palestras chatas e intermináveis, ou quando algo completamente incompreensível acontece de repente? Prossegue o desfile das carruagens de fogo e ira. Prendo o desabafo na garganta e não é um grito qualquer, é a pintura de Munch, com as mãos presas entre os ouvidos, a boca bem aberta, caminhando enlouquecido pelo mesmo sinistro corredor presente na cena de “O iluminado”, até encontrar uma cortina aberta, assoprada pelo vento. O sorriso de um menino poeta surge na minha mente. Ali encontro o meu refúgio. Ainda assim, não fosse o som dos pingos da chuva no para-brisa, num ritmo suave formando a palavra serendipia, gritaria diante da tempestade que se mostra adiante. O menino poeta é o símbolo de um resto de esperança, um Carlitos oferecendo o chapéu, seduzindo tantos outros, atraídos pelas palavras que despencam de suas mãos. Que pena o contraponto, reconhecer entre os bêbados a cruel poesia, feito anátema, deslizando em longos fios de cabelos negros, espantosamente, chupando manchas torturadas. Chora o menino do sorriso lindo o mesmo pranto de Marias e Clarices. Serendipia, penso, respiro, me acalmo:  depois da tempestade, a esperança equilibrista haverá de voltar. Meu grito é o bêbado, serendipia é meu equilíbrio. No semáforo fechado as nuvens negras sobrevoam a cidade, o mata-borrão do céu agora é muito maior, permeado pelo cego fanatismo. Murmuro levemente: serendipia… Há um rosto atrás do grito – enquanto os carros passam – meus olhos tentam enxergar as curvas do caminho; talvez se percam na esquina e o desastre não aconteça. E a tarde cai novamente feito um viaduto, restando em mim o último sopro da utopia, a palavra desprendida da garganta, bem devagar, separada em saborosas sílabas da esperança equilibrista: serendipia! Grito novamente e sorrio. Na corda bamba de sombrinha, o grito precisa ecoar.

O beija-flor do mundo paralelo

E a cidade amanheceu coberta de névoa.

O dia para mim não começa antes do café da manhã, mas faltou manteiga para passar no pão e lá fui eu ao supermercado, enfrentando o trânsito e a névoa.

Há mistérios intrínsecos em cada palmo daquele lugar.

Ao descer do carro, um beija flor resolveu me acompanhar.

O bicho foi e voltou, na velocidade da luz e fiquei envolto a perguntas: Será que só eu estou vendo o passarinho? Por que uma ave tão bela não sabe cantar? Beija flor não tem cor definida, é um prisma, uma mistura de água e luz, um arco-íris voador, mas esse meu beija-flor, claramente, é preto.

Bem próximo da porta de entrada, o beija-flor sumiu como o diabo fugindo da cruz.

Dois passos após a risca de entrada, tal qual Alice ao cair no buraco, vou de encontro a um hospício repleto de loucos livres.

Um velhinho contando notas olha para mim num angelical riso de Quintana.

 Atrasei alguns passos diante do olhar seco do segurança, um homem de aspecto rude, parecido a um personagem de romance não identificado no momento.

Uma senhora dos cabelos curtos passa por mim, trás no colo uma sacola amarfanhada e os olhos cobertos numa aura de tristeza. Florbela agarrada a uma sacola de versos – imaginei.

Ouvi murmúrios da quase certeza de que estava diante do mundo paralelo.

A imensa fila do caixa fez aflorar os meus sentidos.

Um casal se posicionou ao meu lado.

Identifiquei-os em poucos segundos: Bukowski e Hilda Hilst.

Falavam mal da neblina e anotavam os defeitos dos vizinhos.

Imaginei um quadro diferente, bucólico, uma mesa de bar, Bukowski num canto, Hilda num outro, a fumaça do cigarro como se fosse o néctar das flores e o beija flor voando entre os dois. Logo entrariam em conflito, no exato instante no qual se dariam com a minha presença; e enquanto o velho Burka proferisse algum palavrão, Hilda lançaria sobre mim um olhar sepulcral, daqueles de tormentos, diria sem muito pensar: “por que você não manda embora esse velho beberrão?”

A imagem sumiu, restou o casal e os olhos arregalados para mim. Balancei a cabeça, ficaram sem graça no mundo paralelo, um Bukowski abstêmio e uma Hilda sem cigarros.

Devo ter falado alguma coisa.

Riram um riso sem graça, trocaram olhares, como se estivessem enxergando o diabo. Timóteo alguma coisa, disse a mulher. O homem concordou, sorriram novamente e depois me ignoraram para sempre.

Na outra fila, uma conversa de pai com filho, embora a figura, um careca de barba ao lado do rapaz loiro dos olhos verdes, evocava Verlaine e Rimbaud.

A fila andou um pouco e ainda restava em minha boca o solitário desejo por um gole de café.

Enfim a minha vez.

A moça do caixa se abriu num sorriso estranho, de segredos.

Um dia ela sonhou que seria psicóloga – imaginei.

Sempre acho que toda moça do caixa queria ser psicóloga quando criança.

“O senhor aceita participar do troco solidário?”

Sim, ok, respondo, e a custo contenho a vontade de lhe dizer que ainda há tempo para ser psicóloga.

E o velhinho ressurge, galopando o mesmo sorriso angelical, olha para mim e para a moça do caixa, nada diz, mas sei que pensa o complemento: “Cuidado, quando se vê passaram cinqüenta anos!”.

Caminho para a saída, dou de frente com o segurança, ele tem a cara do Heathcliff, descubro afinal e sinto até a poeira espalhada na capa do Morro dos ventos uivantes, guardado com carinho na minha estante. Nunca soube definir se Heathcliff é herói ou vilão.

Ao sair, o beija-flor estava lá fora, esperando por mim, rodeando meus ombros, sumindo às vezes, aparecendo mais à frente, e eu, feito um louco em devaneio, conversei com ele antes de bater a porta do carro: não sou flor que se cheire, vejo escritores mortos!

E o bicho sumiu de vez ao roncar do motor do carro, se perdendo entre a névoa.

Não olhei para trás. O mundo paralelo às vezes desaparece…

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