A sociedade secreta dos poetas amantes de filmes em preto e branco.

Pertenço a uma sociedade secreta que adora filmes em preto e branco.

Não vou os contar detalhes, como disse, é uma sociedade secreta. Mas posso dizer que quando a tarde ameaça ir embora, estico os ossos no sofá logo depois de esquentar uma caneca de leite com chocolate para ver na tevê filmes em preto e branco numa dessas plataformas de streaming.
As opções são tantas que fico um bom tempo zapeando com o controle remoto em busca de um daqueles filmes de neve caindo na aba do chapéu do mocinho, que pisca o olho, desviando a fumaça do cigarro que sobe, inibindo de vez a desavisada mocinha, tão linda e ingênua, o corpo magro e branco recolhido em meio ao peito num aperto de ombros.

Filme antigo é cativante até no título: O homem que matou o facínora, Como era verde o meu vale, Psicose, Cidadão Kane, A felicidade não se compra…

Tarde caindo, filme antigo, sono gostoso, leve cochilo, pensamentos desalinhados: minha barba podia cair abaixo do queixo, algo parecido com a barba de Hemingway, soberbamente grisalha. Num instante meus dedos tocam o controle remoto e busco o filme baseado no livro de Hemingway: Por quem os sinos dobram. Encontro, mas não gosto porque é colorido, deixo rodar um pouco, só para ver Ingrid Bergman. Pobre Gary Cooper, fica feio diante de tanta beleza.
Os ossos do corpo doem, pedem uma esticada, então deixo meus pés roçarem um vaso de flores num canto da sala, as cores aos poucos abandonando meus olhos, lançados ao preto e branco na tevê.

O copo de leite com chocolate esfria e um gato repousa mansamente entre meus dedos. Num click desavisado, apanho cenas de “E o vento levou”, o primeiro filme colorido, a minha mente se prende à beleza de Scarlett O’hara, mais precisamente aos olhos de Scarlett, verdes ou azuis, nunca soube ao certo.
Mais um click, outro filme em preto e branco surge diante dos meus olhos: O falcão maltês, um clássico noir com Humphrey Bogart.
E não tem jeito, Bogart me remete automaticamente a Casablanca e o fascínio toma conta de mim, como um lápis desenhando na parede o rosto perfeito de Ingrid Bergman.
Ah, aquela cena da despedida, a canção, “As Time Goes By”…
Casablanca é meu filme antigo preferido, mas não consigo deixar de imaginar para ele outros finais, algo bem mais feliz,  na última cena a câmera se aproximando aos poucos, registrando o beijo final, Ingrid entregue, os lábios oferecidos num olhar aberto, um dos braços envolvendo o pescoço de Bogart, o outro caído rumo ao chão, como quem desfalece, enquanto o avião avança solitário na noite fria.
Mas a cena final é aquela tristeza e o mocinho é de pedra. Bogart, puro Bogart.
Um pensamento bobo me assoma, será que ele vai apressar o beijo na ânsia de acender outro cigarro?

Fim do filme.

O preto e branco nos meus olhos vai dando lugar às cores do mundo real.

Ao desligar a tevê, um olhar através da janela, o silêncio da noite invadindo o final da tarde, abafado pelo latido longe de um cachorro, fazendo caminhar na minha mente uma frase de Fernando Pessoa: “ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta”.
Qual seria a reação de Fernando Pessoa se pudesse assistir Casablanca? Estupefação e encantamento, para logo depois imaginar outro final. E Hemingway? Certamente assistiu e detestou o final. Ernest teria embarcado o casal e explodido o avião. Mais tarde, depois de um breve cochilo, escreverei algo sobre os murmúrios dos poetas mortos, a ansiedade insana dos que ainda respiram (alguns membros daquela sociedade que falei no início dessa crônica) e a nossa vã tentativa de definir a cor da água através da escrita.
E o final nunca será o mesmo.
Por enquanto só consigo pensar num lápis pontiagudo riscando as páginas abertas na minha mente, bebendo o que resta de leite com chocolate, frio, feito os olhos de Bogart diante do avião sumindo entre as nuvens escuras.
Um ruído e começo a enxergar tons leves azulados nas bordas dos vãos da porta, deitando meus olhos no canto da sala, na qual repousa o vaso de flores das pétalas murchas, seco e sem cor, mas quase tão maravilhoso quanto um filme em preto e branco.

A flor das cobras

Eu queria escrever uma crônica (quem sabe um conto) sobre pessoas solitárias sobrevivendo às multidões.
Ou sobre uma moça com nome de flor, ingênua, bela, do sorriso meigo, mas que desconhece a própria dor, ignora o poder dos seus espinhos.
A flor das cobras, vive nelas.
Escreveria com prazer algo bom sobre a teimosia, ou um texto terrível lamentando as minhas desistências (foram muitas).
Num repente atrevido, pousaria os olhos sobre a cascata de lágrimas derramadas enquanto ouvia os Beatles na adolescência (tempo ruim) e daquela extinta e profunda tristeza, arrancaria a rima da canção que nunca fiz.
Eu queria escrever algo impactante, o som retumbante da carruagem de fogo ganhando asas, subindo ao céu, envolta no barulho das rodas girando sem apoio, até alcançar as nuvens e nelas formando raios mortais.  Queria escrever sobre a surpresa nos meus olhos cá abaixo imaginando, após a lua, até onde prosseguirá a carruagem? Se perderá na escuridão do universo? No céu só existe escuridão.
A carruagem atiça os meus dedos no teclado,  me convida a um passeio, e eu respondo: quem sabe num outro momento, agora tenho na mente a frase apanhada na internet – a flor das cobras –  que me despertou, me fez escutar novamente o badalar dos sinos no início da canção do John Lennon. Por quem os sinos dobram? Por mim, Ernest, por mim. Aquela música do Lennon era o abraço do amigo invisível, causava uma instantânea tristeza, mas logo se transformava em euforia, porque Lennon gritava e eu, mesmo quieto, por dentro, gritava também: mama don’t go, daddy come home!
A flor das cobras era a única a ouvir o meu lamento. Depois cruzava o quintal em zigue-zague, as pétalas se arrastando, até se perder nos cantos da mata.
A máscara sufoca o meu respirar, embaça os óculos, o pátio do condomínio é um desfile de mascarados. Vistos de longe, são todos crianças. Somos todos crianças: quando finalmente crescemos? Já passei dos cinquenta e não sei ainda, se sei, desconheço as letras e os caminhos. Um balançar de cabeça, a busca da realidade que sempre me escapa. Acontece muitas vezes, me confundo entre o mundo real e o imaginário, consigo correr, os cabelos de antes retornam, desarrumados pelo vento forte, cenas repetidas na retina embaçada, como da vez que subi até o topo de uma árvore, me arrastando entre os troncos, ignorando os perigos do balançar dos galhos, até encontrar um ninho de passarinhos vazio, mas ao descer, o rosto triunfante, disse a todos que os ovos eram azuis.
– Ovos não dão em árvore, você subiu para apanhar uma manga!
A voz do menino mais velho, um infante autoritário do qual eu sentia medo. Como explicar a sujeito tão chulo a beleza da existência dos ninhos dos passarinhos?
– Volte lá e pegue a manga! – Apontou os dedos na minha testa e saí correndo, sem lhe dar chances para me alcançar. Ah, eu corria como um lobo cinzento naqueles tempos, e era amigo das pedras, sabia me esconder entre elas e de lá ficar espreitando tudo em volta. O menino mais velho cuspiu palavrões, ao lado dele os outros meninos o encaravam, surpresos, exigindo atitudes do líder. Então ele mesmo subiu na árvore, apanhou diversas mangas, mas ao descer escorregou em algo e quebrou a perna. Nunca mais o vi, mas ainda escuto o barulho do tombo e o seu grito desesperado.
A flor das cobras reside entre os galhos das árvores.
Eu não queria mais escrever sobre o passado, mas guardo na memória o ladrar dos cachorros, aqueles que comiam junto da gente os restos, as sobras, o miolo do pão molhado no leite, os ossos, a carne envenenada da flor das cobras.
O baile dos mascarados prossegue pelas ruas da cidade. Até quando? O vírus é a flor das cobras e se eu tivesse poder, aqueceria o sol até derreter as rodas da carruagem de fogo, e ela cairia em milhões de pedaços incandescentes, até aniquilar o veneno para sempre.
E se penso, já acontece na minha mente, dentro de mim, vão nascendo imagens concretas, ouço o barulho do fim do tormento se confundindo com as rodas da carruagem de fogo crepitando os vazios do universo, aqui embaixo as máscaras caindo dos rostos, a explosão de gente sorrindo, finalmente sem medo.
E no meio da gritaria, o meu eu no silêncio, morto o menino, nascido o homem maduro, observando pela réstia da porta o que sobrou, envolto pela dúvida soberba de sempre: ficar quando todos se vão, ou ir quando todos ficam.

Cavalos correm pelos campos da colina chamuscada de chuva

Na sala do consultório, antes de ser chamado para a consulta com o oftalmologista, frases soltas percorrem o meu pensamento: os cavalos correm pelos campos da colina cor de cinza chamuscada de chuva.
À minha volta uma quantidade imensa de pessoas também aguarda a vez. Os olhos falham. Qual desespero maior do que a cegueira? Nem a certeza da morte é tão cruel. Eu escrevo, leio, vejo filmes. Se a luz dos meus olhos se forem, o som da boca irá junto, me calarei e mendigarei aos meus ouvidos para que não se fechem e ao menos eu possa ouvir o trotar dos cavalos correndo pelos campos da colina, guiado pelo tamborilar dos pingos da chuva, formando aos poucos chamuscos cinzas de quem apenas ouve e nada vê.
O frio de agosto me percorre enquanto a senhora de máscara cor de rosa ao meu lado pinga o colírio nos olhos sem pedir ajuda: ela mesma abre com as mãos as pálpebras e pinga uma gota em cada olho numa exatidão comovente. Depois sorri para mim, um riso convencido atrás da máscara.  Sinto por ela a mesma admiração que tenho pelos alpinistas, os paraquedistas e toda pessoa que desperdiça o domingo para lavar o carro ou ir à igreja.
O casal na outra ponta toma conta de uma única poltrona, vive num mundo apenas deles. Ela se deita no ombro do companheiro e parece que são uma só pessoa. Devem dormir de conchinha. Graziela cuida de mim, se encarregará de pingar o colírio. A moça se mexe no ombro do rapaz e ele alisa os seus cabelos. Cena linda que registro na mente, mesmo com os olhos um tanto embaçados. Qual deles está com problema nas vistas? E se um dos dois não enxergar mais? Os corpos se atrairão, certamente, e continuarão dormindo de conchinhas. Ouço ao longe o trotar dos cavalos. É nesse instante que consigo ouvir meu coração.
Peço socorro às imagens do passado, preciso fugir da realidade. Então se abre no meu pensamento a manhã de um domingo do passado, o mesmo sopro frio de agosto, vejo a minha mãe chegando da feira trazendo uma galinha embaixo do braço. Ouço nitidamente os cachorros latindo, “passa, passa” ela diz, tentando se desvencilhar, corro para ajuda-la e os olhos da galinha eram de fogo, sem piscar, o medo refletido, a percepção do fim. Meu padrasto surgiu de repente, um facão nas mãos, não disse nada, apanhou a galinha das mãos da minha mãe e lhe decepou a cabeça. Mesmo morto, o bicho pulou várias vezes, esparramando um filete de sangue pelo chão vermelho, imagem presa na minha mente para sempre, a criança de dez anos encarando os pequenos olhos da galinha morta, inerte, sem luz. Senti a crueldade humana e não conseguia olhar para minha mãe.
Durou até o almoço ficar pronto e a galinha era o prato principal:
– Eu quero a coxa! Disse e provavelmente os meus olhos brilharam, sem piscar.
A fome dói mais que a piedade.
Tempos depois, levei meus filhos pela primeira vez à uma churrascaria. O Bruno queria coração de frango e o garçom fez descer do espeto até o seu prato cinco ou seis pedaços de uma só vez. Ele comeu, adorou, pediu mais. Fiz um alerta:
– Coma tudo, não deixe nada, fique sabendo que cada coração desses era de um frango que morreu para você se alimentar. – Ele me olhou com olhos de surpresa e no instante seguinte seus olhos se transformaram numa cachoeira de lágrimas (nunca vi ninguém chorar tão bem quanto o meu filho Bruno) e soluçava, o rosto vermelho de tanto chorar, vez em quando lançava em minha direção um olhar de revolta misturado com piedade –.
– Você devia ter me falado antes, pai.
– Achei que você soubesse. De onde mais poderia sair o coração de frango se não do peito do bicho vivo? Achou que davam em árvores?
– Achei.
E não disse mais nada, comeu tudo e não falamos mais sobre o assunto.
A senhora do colírio me desperta, me traz de volta à realidade como num beliscão: retira a máscara cor de rosa do rosto por instantes, olha para mim como se me conhecesse há muito tempo, confidencia:
– Fico sufocada às vezes.
Eu sorrio de volta e meu gesto de mãos são palavras, tudo bem, acontece, mas seja rápida.
Ela tem a voz do passado, tal qual os pingos da chuva chamuscando os campos da colina até torna-la cinza.
Eu sempre parei para reparar as pessoas, as flores e as árvores. Deve ser esse o motivo de guardar tantas lembranças. E volto ao passado: nunca me fizeram um bolo de aniversário, jamais ouvi o cantar de parabéns em minha homenagem, mas a fumaça escapando no fio da vela do bolo tem o mesmo cheiro de velório. Fecho os olhos e sinto aquele cheiro. Coisa de aquariano.
Antes, quando diziam que a vida é passageira, eu ria, queria comer o bolo de aniversário dos outros, ver a vela se apagando até o cheiro da festa se confundir com o cheiro de velórios. Os bolos tinham gosto de manteiga e algumas bolinhas brilhosas de chumbo doíam os dentes, mas ninguém deixava restos no prato.
O casal enfim se mexe, ele atende o celular e aponta para a companheira o relógio na parede.
O carinho dá lugar à pressa.
As horas…Nunca acreditamos no relógio, mas os ponteiros andam, tic, tac, e os minutos se tornam horas, o dia é segunda, mas logo é domingo, a semana que vem é amanhã e já se passou tanto tempo desde aquela vez que vi minha mãe trazer a galinha embaixo dos braços, o corte na cabeça, o cheiro do assado, frio de agosto arrancando lágrimas de sopro de vento.
Coço os olhos ardentes, naquele tempo não precisava suspirar pelas luzes do dia, eu enxergava tudo, de perto e de longe.
A espera também me faz ouvir músicas na mente, vejo a batuta do maestro sem enxergar-lhe as mãos, a cortina ainda aberta, mas o pano já é opaco.
Enfim sou chamado, na frente do casal e da senhora da máscara rosa. Nunca saberei qual dos dois está com problemas na visão e a senhora da máscara rosa pode até ser um fantasma, porque de passagem, olhei para o casal  e vi uma vela de aniversário se apagando, mas quando olhei para a senhora da máscara cor de rosa, senti o cheiro de velório.
O médico me recebe num sorriso, já me conhece.
– Não é nada grave, não precisa fazer drama.
– Estava ardendo e tudo embaçado.
– Vou aumentar o grau.
– Mas você está dizendo que terei que usar colírio para o resto da vida.
– Sim, um simples colírio. Imagine a diferença para alguém que precisa implantar uma lente ou algo assim.
Sou descrente, mas nesses momentos, murmuro orações.
Ao sair, a senhora ainda aguarda a sua vez e me lança um sorriso atrás da máscara rosa.
Ela conhece o meu desespero, sabe que jamais conseguirei pingar sozinho o colírio nos olhos.
Será?
A vista anda fraca, mas o pensamento é feito a chama da vela do bolo de aniversário: tremula, mas ainda queima, segurando o sopro do tempo, tic, tac, tic, tac.
Tento, e consigo, uma gota certeira de colírio nos olhos bem abertos.
E então já posso ver os cavalos correndo pelos campos da colina, tudo verde, brilhante, sem nenhum tom de cinza.

A batalha entre o hipocampo e o canal, ao som de Maiara e Maraisa

Recentemente, numa reportagem, fiquei sabendo que guardamos a nossa memória na parte frontal do cérebro, uma região chamada hipocampo.

Gancho feito, entro no assunto dessa crônica.
Quem é capaz de fazer tratamento odontológico em plena pandemia?
No início do ano, resolvi fazer tratamento dentário em um desses consultórios especializados. Cada consulta, um dentista diferente. O lugar é extremamente limpo e organizado, mas sinto como se estivesse entrando no consultório do doutor Frankenstein.
A sala, além de toda a parafernália odontológica, possuía, de frente à cadeira do dentista, uma Tevê.
Achei estranho, mas não disse nada.
O dentista se mostra uma espécie de Deus, todo de branco, máscara cobrindo parte do rosto, cabelos grisalhos, um Richard Gere dos anos noventa.
A auxiliar sorriu ao me apontar a cadeira. Devolvi o sorriso e tentei me ajeitar.
– Fique tranqüilo, não vai doer nada – disse o dentista – abra a boca, por gentileza.
Sempre achei que uma dose de uísque antes de sentar naquela cadeira devia ser obrigatória.
– Vamos fazer o canal do molar inferior direito, ok?
– Sim, sem problemas. – Digo, tentando disfarçar o medo. O dente nem estava doendo, qual será o tal molar inferior direito? Precisa mesmo mexer em quem está quieto?
E no instante seguinte, entre o dente a ser tratado, doutor Gere ajeitou um punhado de algodão de cada lado.
E aí que entra o hipocampo e seu arsenal de recordações.
Faço uso dele para me desligar do sofrimento. Pensar em algo bom enquanto o mundo acaba.  Inicio um exercício, permito o silêncio me envolver, fecho os olhos e escuto uma música orquestrada. Música orquestrada me acalma desde menino e o pensamento se mistura a uma porção de questionamentos: o oboé é difícil de aprender? Algum violino se encaixa nos meus ombros caídos? Como é o nome daquela orquestra que desapareceu durante um voo em meio a uma tempestade?
O dentista se move ligeiro na cadeira. Uma sede danada me invade.
– Ummm, canal profundo. Vamos demorar um pouco para terminar.
Canal demorado… Significa que o cirurgião dentista irá extrair um nervo de dentro do meu dente e vai demorar a fazê-lo. Para isso ele vai usar anestesia, um tipo de injeção dentro da boca, dói bastante, embora o dentista vá dizer que será apenas uma “agulhadazinha” de nada.
Tento buscar a paz das orquestras. Glenn Miller, o nome do maestro desaparecido no desastre aéreo, surge na minha mente. Aviões caindo e tratamento de canal dentário, não é uma boa mistura. Reviro os olhos, jogo fora a tragédia do maestro.
– Vou anestesiar e você sentirá uma agulhadazinha de nada – ele diz, como se tivesse escutado o meu pensamento –.
A tal agulhadazinha dói uma barbaridade, mas não posso falar nada, a boca aberta, repleta de algodão, se transformando aos poucos num daqueles círculos do inferno de Dante.
– A anistia já fez efeito. Vamos começar… – diz o doutor bonitão e eu me lembro que Lúcifer também é bonito –.
Ele dá as costas para mim na cadeira giratória, começa a apanhar um monte de ferramentas, clesh, sclhesh, plesht.Num momento de total desatino, penso pegar nas mãos da moça auxiliar do bonitão, um gesto de pedido de ajuda, mas ela não nota o meu desespero, permanece impávida, o rosto sereno atrás de uma máscara bege.
Ele gira a cadeira num supetão e fica de frente para mim.
– Fica calmo, não vai doer nada – quando alguém diz isso, geralmente está mentindo –
E como não existe nada ruim que não possa ficar péssimo, a ajudante do dentista resolve ligar a tevê e nela surgem sons e imagens de um show ao vivo gravado em DVD.
Assombrado, percebo que é o de uma dupla sertaneja, Maiara e Marinara, algo assim.
Eu odeio música sertaneja. Ao vivo, então…
Pronto, o inferno está completo. A boca anestesiada parece uma coxinha de frango frito.
O dentista pega algo parecido a um anzol. Pernas tremem e ele nada percebe. Depois retira algo que imagino ser a tampa do dente. O tremor nas pernas aumenta, a voz da dupla sertaneja – eu realmente detesto música sertaneja – se funde ao barulho do motorzinho, ziiiiim, zim, ziiiiiiiim,  o punhado de algodão em cada lado da gengiva se transforma na frase de Brecht: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.
Um pedido de socorro na mente e o hipocampo, velho camarada, consegue novamente me trazer imagens das boas lembranças:
Eu tinha quinze anos quando isso aconteceu. Ah, quinze anos, um rapaz magro, dos olhos brilhantes, apaixonado pela colega japonesa da escola, pela filha da vizinha e também pela moça mais velha, garçonete do bar do português.
Eu amava as três ao mesmo tempo, sem lhes dizer palavras, amava com os olhos, com o sopro do silêncio fazendo bater o coração juvenil.
Como isso foi possível? Talvez o hipocampo tenha escondido algumas verdades que não desejo recordar.
Longe demais, hipocampo! Vamos aos meus vinte e poucos anos, barzinho com os amigos, muita cerveja e sem hora para ir embora.
Zim, zim, ziiiiim, romck, romck, o barulho na minha boca espanta os bons pensamentos, confundem o hipocampo, aciona lembranças ruins, os cabelos começaram a cair aos dezoito, precisamos reagir hipocampo! E a imagem boa logo vem, final de semana na casa de amigos, no som da vitrola Tetê e o lírio selvagem, Belchior, Djavan, a ideia repentina do amigo Ronaldo, inspirado por uma imensa lua cheia:  fazer serenata para a namora Amanda.  E lá fomos nós, o carinha de óculos, que esqueci o nome, dedilhando o violão, ao lado dele nossa amiga cantora, aquela sim, cantava tão bem, tinha a voz da Zizi Possi, onde será que ela foi morar? Minha função era carregar o abacaxi recheado de pinga e… zim ziiiiimmmm, ronck, ronck, estrondos na boca.Foco no luar, hipocampo, imploro e ele me obedece, fazendo surgir a cena mais bela: a namorada do amigo abre a janela e chora de emoção, mas o pai fica zangado, onde já se viu, incomodar a vizinhança numa hora dessas? Dona Maria, a madrasta da moça, passa o pano, se acalme Osvaldo, eles são jovens, você já fez serenata para mim? Não, claro que não, mas não ligo, talvez um dia, mas quero com harpa e sanfona, e todos rimos de um tanto, nem percebi o abacaxi escapando das minhas mãos…. zum, zim, romck, cuidado com a língua! Hipocampo atrapalhado novamente, me envia antigas notícias ruins, como vou fazer para passar em matemática, física e química? Lembranças boas, por favor, hipocampo! O fim de semana no Cachoeirão, trilhos nos levando rumo ao Pantanal, os amigos no restaurante do trem, cerveja gelada, bife a cavalo, a moça ligeiramente estrábica está olhando para mim ou é impressão?Mais um gole de cerveja, um risinho basta por enquanto, depois crio coragem para perguntar, será que ela vai descer na estação Cachoeirão?
Na tevê, o mundo despenca: “Sabe o que você tem? Tem sorte que cê beija bem” cantam Maiara e a irmã que nunca lembro o nome. De repente, o dentista finalmente resolve retirar o maldito punhado de algodão e esguichar água na minha boca.
– Cospe – ele diz.
Alívio, olhos lacrimejando, vontade louca de me levantar da maldita cadeira. Mas ainda não terminou, ele torna e encaixar algodão entre o dente:
– Coloque a língua para o outro lado – ordena. Obedeço e respiro fundo. Na tela da tevê, as irmãs sacolejam o corpo, é impressionante como elas são queridas pelo público.
 “O culpado de tudo é os Hômeeeeeee, nois mué temos razãoooooo!
Ò céus, lá vem o motorzinho…Socorro hipocampo!
Fecho os olhos novamente e vou lá para o dia do nosso casamento.
A Graziela estava linda, e eu…provavelmente também.
Padre Antônio faz um sermão belíssimo, que dure para sempre, disse ao final, num belo sorriso. Sinto vontade de voltar lá e lhe contar dos quase trinta anos passados, os detalhes das muitas lutas e conquistas, estamos juntos, temos dois filhos, um neto e eu virei escritor, mas será que o padre Antônio se lembra de nós?A auxiliar do dentista traz um objeto pelas mãos e o entrega ao doutor.
– Esse não serve, põe broca maior.
Broca maior? Medo, angústia. Maiara e Marinalva dançam e cantam:
“Se ele te beija gostoso, dá um amasso cabuloso, quem ensinou fui eu, quem ensinou fui eeeeeu”. Chico César, eu concordo contigo, odeio rodeio!Lembranças boas, hipocampo, vamos lá, você consegue, manda alguma recordação feliz, senão vou entortar a língua e jogar fora o maldito algodão.
O querido hipocampo se abre, me envia imagens de bichos, direto da janela do trem, passando Miranda, na curva da mata, um tamanduá abraçado a um monte de cupim.
Até os caramujos do Manoel me acenam, eles sabem do meu sofrimento, ziiiiim, zict, zonk, stronk. Enfim, Corumbá. Que cidade linda, meu Deus! O hipocampo se rebela, tenta me questionar: porque está falando em Deus se você é ateu? É o medo do dentista, o algodão, a língua que não quer parar no céu da boca, a dança e a voz da Maiara e da irmã?
Eu não sou ateu, sou deísta!
Ele não liga, prossegue me provocando: quem é Maiara, quem é Marinara? Ou será Marialva? Consegue me irritar com tantas perguntas, resolvo retrucar: você sabia que hipocampo significa cavalo do diabo?
Maiara e a irmã entram de sola na discussão:
“Cê ta roubando o tempo, cê tá ocupando o espaço dela, os planos do casório, do cachorro, do neném com a cara dela, libera ela, libera ela, libera elaaaaaa”.O dentista enfim para de cutucar o meu dente e ergue a cadeira.
– Pode cuspir.
Fim do suplício.
Durou quase quarenta minutos a tortura.
Não volto mais, dane-se se já paguei o tratamento.
A auxiliar do dentista sorri. Ele me encara.
– Deu um trabalhinho, viu? Estava feia a coisa. Vou marcar o retorno para semana que vem.
Paro e penso: tenho que aguentar. Falta só mais um canal. Sou forte e tenho ao meu lado as lembranças guardadas no hipocampo.
– Tudo bem, semana que vem. Mas posso fazer uma sugestão, doutor?
– Claro que sim.
– O senhor não teria o DVD do Ira ou alguma coisa dos Titãs?
Ele me encara de olhos bem abertos, espantado:
– Você não gosta da Maiara e Maraisa?
Enfim, descubro o nome correto da dupla.
– Nem um pouco.
Ele sorri, um tanto sem jeito.
– Era só falar, temos vários DVDs.  Tem muita gente que gosta delas e pensei que você fosse mais um fã da dupla.
– Não gosto, não. Se não fosse o meu hipocampo, teria desistido.
– Seu hipo o quê?
– Nada não, doutor, nada não.  Até semana que vem!
Abri a porta da saída e senti o alívio dos desamarrados, um daqueles respiros profundos, a brisa gostosa batendo no rosto, o sentimento do dever cumprido.Sou até capaz de ouvir novamente Maiara e Maraisa.
Desligo o hipocampo. Semana que vem tem mais.

As paredes da redoma

Às vezes, nesses tempos difíceis, ecoam na minha mente algumas palavras casadas – a tortura engolindo a arte, meu pescoço arde, o nó, o aperto. Acorda, a corda, pássaro preto. – Então desce do céu um zumbido de abelha, o barulho da cidade, tudo o mais, e as letras da crônica começam a dançar. Sossego meus passos diante do enorme edifício. Elevador de vidro, vista panorâmica, o meu destino é o vigésimo andar.  O copo de garapa só faz aumentar a minha sede, sede de água, um litro gelado, beber no gargalo, num gole só. Poeta bom é aquele que sofre e eu só sinto medo de cachorro, de dentista, de fardas e bandeiras, do homem fazendo gestos de armas com as mãos no lado direito da calçada, daqueles que não entenderam o sagrado significado da cruz, da violenta ignorância que mata uma criança em nome da paz. O elevador está no sétimo andar e não há ninguém ao meu lado. Sinto conforto, viajar sozinho não sufocará o meu grito. Como se fosse provocação, o elevador desce, a porta se abre e, no mesmo instante, ao meu lado se forma um grupo de nove pessoas.  Poeta bom é aquele que sofre, penso novamente e convoco a companhia de Belchior. Ele me encara, sorri. “medo, medo, medo” ele diz e de mim escapam palavras no pensamento, daquelas casadas, de papel passado – perto de mim há um teclado, mudo por enquanto, no tempo que observo as estrelas e espero a frase rimar. Perto de mim há uma garrafa de vinho, do álcool que não posso beber, reserva da vida que vejo passar. Perto de mim há vontades, sentimentos diversos, que exijo calar. Perto de mim há verdades de ninho e não consigo alcançar, perto de mim há um cálice… Eu venho, eu vinho. – Achei nos meus arquivos, será que escrevi isso? Sofro quando não descubro. O elevador chega, entro e me encaixo no aperto. Quem será que imaginou um elevador feito de vidros?  A senhora tímida, solitária, carrega uma bolsa enorme apertando os seios. Será o mesmo medo que o meu? Dois homens conversam sobre o sono, um não consegue dormir, o outro dorme demais. Olhei para eles num rosto carregado de respostas, domino o assunto, zolpidem é a solução, mas fiquei calado, o rosto ansioso refletido na parede de espelhos. A capa da morte é feita de vidro. Medo, medo, medo, cantamos, Belchior e eu. O casal troca olhares cúmplices, ele me cumprimenta num leve aceno de cabeça, ela usa cabelos coque e olha fixamente o piso do elevador. O brilho do relógio nos pulsos do senhor reflete as paredes da redoma e o abismo é ali também. Quem é que usa relógio de pulso nos tempos atuais? E se a luz apagar? Busco um desvio de pensamento, uma fraqueza boba – pensar forte faz acontecer. Duas pessoas descem no terceiro andar, mas outras duas entram no elevador. Preciso de algum assunto de asas – penso – e como se fosse combinado, um inseto pousa no lado de fora do vidro, se debatendo diante da visão falsa da liberdade. Bicho estúpido, basta virar para o lado e voar para longe, depois apanhar carona no vento até alcançar aquelas estranhas nuvens no céu. Belchior se apóia nos meus ombros, inverte a situação, ele sempre foi o meu apoio. O homem no canto se veste de forma elegante, usa gravata, o cabelo grudado de brilhantina, tem o rosto seguro, não se importa com a possibilidade do vidro arrebentar de repente e estragar o seu penteado.  Belchior resolve assoprar no meu ouvido uma canção: “meu coração cuidado é frágil, meu coração é como vidro”… E sorri enquanto me afasto até o canto. A fragilidade do vidro é como uma folha de livro ao vento.  O inseto já não insiste, quieto, absorto na languidez dos derrotados. Entorto os olhos, dou de frente com outro senhor, vestido de forma simples, calça jeans, camisa de algodão, o sapato de couro marrom, deve ter a minha idade, sinto uma alegria efêmera, como quem se alegra ao ver um companheiro de batalhas – éramos jovens nos anos oitenta – penso num sorriso e ele parece captar, num sorriso de retorno; conto na mente cada ruga do seu olhar e fico imaginando que pinta os cabelos, porque as bolsas inchadas abaixo dos olhos não combinam com o brilho negro dos fios esvoaçantes na cabeça murcha. Duas pessoas descem no quinto andar, a religiosa faz o sinal da cruz, o cabelo da moça da borboleta tatuada no braço deixa um rastro de lavanda. Todos descem quase ao mesmo tempo, restando Belchior e eu nos cinco ou seis andares que faltam.
Poeta bom é aquele que sofre – Na redoma de vidro, o poeta sofrido, o inseto, o dilacerante zumbido, meus medos, Belchior, no sopro bemol, engolindo o sustenido –
De repente, num bafejo do vento, o inseto encontra a liberdade, o vôo torto para longe, o final da angústia. Fecho os olhos, imagino a alegria das asas rumando em busca das nuvens ligeiras em formas de pombas no céu. Vigésimo andar, luz verde, alívio, vida.
Na volta, optarei pelas escadas, sairei à rua apressado, o medo jogado fora e arrancando do peito a dor do poeta que não sou. E que tudo mais vá para o céu, como já disse o poeta Belchior.

Estou ficando velho demais

Todo fim de ano essa ideia me ocorre: estou ficando velho demais. Ontem era janeiro, quando fui ver, já é dezembro novamente.
E a estrada vai ficando mais curta. Até onde? Nem quero imaginar. A rotina e os estalos todas as vezes que me estico, andam me transformando num sujeito resmungão, enxergando defeito em tudo e simplesmente não suportando algumas conversas.
Tenho feito poucos amigos, a idade avança e a desconfiança caminha junto.
Deixei crescer um fiapo grisalho de fios na barba, bem na ponta do queixo, só para me ajudar quando resolvo pensar e então mergulho num coçar reflexivo.
Tenho controlado a saúde, mas a custo caro.
É muito triste reconhecer que açúcar e um veneno. Delicioso veneno.
Remédio bom é remédio amargo, diziam os antigos. Triste verdade. E o chocolate foi o primeiro a cair da prateleira.
Mantenho a custos o nível bom do colesterol, a bebida já não cai tão bem, a ressaca é certa e sinto a ausência dos antigos companheiros. Muitas vezes, a falta do cigarro me causa a angústia da saudade.
Mas a vida sem açúcar chega a ser cruel.
Um amigo me contou sobre alguns despistes, por exemplo – ele disse – existe chocolate sem açúcar.
“É um pouco amargo, mas muito gostoso”.
Resolvido o problema do açúcar, fiquei a imaginar a chateação das coisas repetitivas. Rotina é sinônimo de tédio, só perde para a solidão.
Acho que vou aprender a tocar Saxofone e abalar a quietude dessa rotina.
Minha mulher passa por perto, levando no colo o nosso neto Tom. Coço o fiapo da barba: quem diria, a menina linda dos cabelos longos, agora já é vovó. Eu também sou vovô! Preciso me acostumar com essa ideia.
O fiapo quase fala: é hora de planejar antigas viagens. Paris por causa dos museus, Amsterdam porque quero ver o esconderijo onde Anne Frank escreveu aquele livro maravilhoso; Inglaterra porque os Beatles nasceram lá e não posso morrer sem pisar no Cavern Club.
Embora nessa vida ligeira eu ainda não tenha aprendido a cantar, talvez, num ato extremo, “Here, there and everywhere’ escape da minha garganta.
Puxei o fiapo, imaginei a cena. Acho que me daria melhor tocando saxofone.
Talvez eu troque de carro, o atual, tão acostumado à minha rotina, já sabe todos os caminhos e se tornou um chato reclamão feito eu. O meu vizinho tem um opala. Eu sempre quis ter um opala, mas não consigo sentir inveja do vizinho. Ele passa por aqui, acelerando o motor, deixando a profunda impressão que só tem trinta anos e parece um velho.
Quanto será que custa um saxofone?
Minhas vistas andam cansadas, mas a mente ferve.
É tão claro agora o jovem estúpido que fui.  Ás vezes me recordo antigas atitudes e sinto vergonha. Se eu pudesse voltar no tempo… Puxo o fiapo: o jeito é perdoar aquele jovem besta, naqueles tempos eu não sabia o que hoje sei.
Tenho consulta logo mais. São tantos médicos: ortopedista, cardiologista, oftalmo, endócrino.
Ir ao médico se tornou outra rotina chata.
Já confundi os nomes, os rostos, as receitas, os conselhos.
Um deles me olha de um jeito estranho, ou então o estranho sou eu que sempre soube que ele também é geriatra.
Tenho uma leve bronca do endócrino: foi ele, o malvado, que cortou o açúcar.
Experimentei chocolate amargo e não vou repetir a dose. O gosto horrível permanece na minha boca, levando embora, num caminhão de pudim, a doçura da vida que passou.
Dane-se, mais tarde, vou comer pudim.
Remédio bom é remédio amargo. Mas cortar o açúcar beira à crueldade.
Embora resmungão e me sentindo velho demais, não pretendo fugir dos meus sonhos. Então não se assuste se brevemente me encontrar por ai, dirigindo um opala, ou num bar de esquina, tocando saxofone e cantando versos sorrateiros. Em meio à canção, direi, num tom melodioso, e talvez você perceba, como a vida passa ligeiro.

Para o meu neto Tom

Pequeno Tom, ao tocar suas mãos, descubro em você o arco-íris do meu sonho.
Trago-te versos profundos, minha alma e todo o amor desse mundo.
Queria começar falando dos passarinhos, mas eles voaram, apressados, ao ouvirem as batidas do meu coração.
Você é o meu passarinho, eu sou seu ninho, moramos numa árvore.
Permita que o meu primeiro beijo chorado, desengonçado, emocionado, banhe o seu rosto rosado. É que ainda não me acostumei por completo com a novidade de ser avô. O tempo passa, envelhecemos, mas uma criança travessa insiste permanecer dentro da gente, aos beliscões, gritando um resto de juventude.
Tento acelerar o tempo, ver você correndo de mim pelos cantos da casa, gritando a felicidade de criança correndo de um velho.
Ah, eu nem sou tão velho assim.
Mais do que seu avô, quero ser seu amigo de todas as horas, para lhe dar abrigo quando você precisar.
Não se esqueça: eu sou aquele da ponta da mesa, o contador de histórias. Aliás, vou lhe contar a primeira: quando sua mãe nasceu, inventei uma música para cantar com ela, era algo sobre uma massinha que cresceu dentro da barriga da mamãe.
Ela adorava.
Fiz o mesmo com seu tio Bruno, e quando o vento sopra em meus ouvidos a brisa de antes, faz surgir a imagem deles criança, tal qual você é agora, e então sinto essa mesma felicidade de árvore.
Sim, meu amado neto, a árvore sente felicidade, porque aquele imenso tronco, repleto de galhos e com folhas nas pontas, é segura no chão por uma raiz, e a raiz, mais do que tudo, sente o esplendor do amor despertado ao tocar a semente nascida do colo da própria flor.
Sua avó Grazy beijará o seu rosto todos os dias e será também sua eterna companheira.
Por falar nisso, andei medindo o meu coração e descobri que nele não cabe tanto amor que pretendo lhe dar.
Ao se sentir solitário, corra e me abrace.
Quando suas mãos se abrirem, me apanhe como a um livro; amassando, marcando, riscando trechos da nossa história que agora começa e que jamais terá fim.
Ao se sentir sozinho, olhe pare o lado, eu estarei sempre por perto. Brinque com as rugas no meu rosto, faça nelas um carinho e eu, em desalinho, sentirei suas mãos como um toque de Deus.
Não trago na memória nenhum exemplo de avô; não os tive, morreram antes ou sequer existiram, então, talvez eu me transforme num avô desajeitado.
Perdoe minha falta de jeito e também os meus defeitos: não fale comigo quando estou comendo, lendo, muito menos quando eu estiver escrevendo. Não me acorde bruscamente, não fale mal do Botafogo, não diga que não gosta de ler.
Quando você começar a gatinhar, farei o mesmo, fingirei não sentir dor nos joelhos e vamos apostar uma corrida até a porta. Quem vencer beija o outro.
Se precisar de carinho, me abrace. Posso ser o seu brinquedo preferido, um urso de pelúcia que anda e fala, o pião girando tentado se esconder, ou o policial nas aventuras contra todos os bandidos.
Ainda não tenho pronta a nossa música, precisava antes tocar suas mãos, olhar os seus olhos, beijar sua face.
Ah, meu querido Tom, seu pai vai te ensinar a caminhar, a andar de bicicleta, jogar no computador; sua mãe apanhará suas mãos e lhe dará conselhos, afagará seus cabelos com carinho e algumas broncas às vezes, mas não se espante ao perceber que eles são apenas duas crianças.
A bola vai rolar e você irá atrás dela naquele riso de cortar o ar e eu também correrei, não por cuidado contigo, mas porque sou tão criança quanto você.
Se o tempo caminha sem repouso, a velhice nada mais é que uma eterna infância.
Agora dorme seu sono sereno, outro dia logo vem e o futuro nos espera.
Se um dia distante, me leve no pensamento, e então no céu haverá de surgir o lume de luzes num círculo cortando toda a terra, o arco-íris do meu sonho, formando a sua imagem, o menino que nasceu para nos trazer paz e amor.
No fecho de todas as tardes, me aguarde, depois me guarde, reserve um pedacinho seu para mim, para nós, para sempre.

O grito, serendipia!

Nesses dias nebulosos, descobri que de tempos em tempos, quase inconscientemente, me apego a alguma palavra. O movimento do trânsito me enlouquece, ligo o rádio, música gospel, música sertaneja, notícias… Vou girando o botão na ânsia louca de sintonizar uma música suave. Um carro enorme passa ao lado, trás no vidro traseiro retratos de rostos incendiados, imaculados pelos incautos e dentro de mim o grito se forma. Para muitos, o bizarro é bonito. Sussurro a palavra do momento: serendipia. A colega cronista Lucilene Machado – curvo a cabeça, agradecido – desencavou essa palavra e a jogou diante dos meus olhos para nunca mais escapar. Assim, antes de gritar, eu digo para mim mesmo: serendipia. E tudo se acalma. É isso ou um ópio qualquer. Prefiro a doçura da palavra.  Meus dedos não necessitam dos olhos para girar o botão de sintonia do rádio, na sexta tentativa, enfim, me permito ser invadido pelo som mavioso da voz de Elis, “O bêbado e a equilibrista”, e sorrio num leve balançar de cabeça enquanto os versos da canção descortinam a história diante dos meus olhos. O bêbado representa os artistas, a equilibrista é a democracia, se equilibrando na corda bamba. Aldir Blanc, você é genial! Serendipia é uma palavra de origem espanhola, cujo significado remete a uma descoberta feita ao acaso. Na mente desfila a mensagem de um jovem nas redes sociais; é o ódio, o equívoco, a contradição. Serendipia! “Quem não recorda o passado está condenado a repeti-lo”. Esse aforismo de Santayana provoca em mim um riso de certezas. Tenho o costume de sorrir, no contentamento e no espanto, mesmo o grito seco ainda preso na garganta. Quase sempre, gritar é libertador, eu sei, mas no abafo, no murmurar palavras, encontro a fórmula irresistível para acalmar meu desassossego. Ah, o grito… Já sentiu vontade de gritar, assim, do nada, em público, numa daquelas palestras chatas e intermináveis, ou quando algo completamente incompreensível acontece de repente? Prossegue o desfile das carruagens de fogo e ira. Prendo o desabafo na garganta e não é um grito qualquer, é a pintura de Munch, com as mãos presas entre os ouvidos, a boca bem aberta, caminhando enlouquecido pelo mesmo sinistro corredor presente na cena de “O iluminado”, até encontrar uma cortina aberta, assoprada pelo vento. O sorriso de um menino poeta surge na minha mente. Ali encontro o meu refúgio. Ainda assim, não fosse o som dos pingos da chuva no para-brisa, num ritmo suave formando a palavra serendipia, gritaria diante da tempestade que se mostra adiante. O menino poeta é o símbolo de um resto de esperança, um Carlitos oferecendo o chapéu, seduzindo tantos outros, atraídos pelas palavras que despencam de suas mãos. Que pena o contraponto, reconhecer entre os bêbados a cruel poesia, feito anátema, deslizando em longos fios de cabelos negros, espantosamente, chupando manchas torturadas. Chora o menino do sorriso lindo o mesmo pranto de Marias e Clarices. Serendipia, penso, respiro, me acalmo:  depois da tempestade, a esperança equilibrista haverá de voltar. Meu grito é o bêbado, serendipia é meu equilíbrio. No semáforo fechado as nuvens negras sobrevoam a cidade, o mata-borrão do céu agora é muito maior, permeado pelo cego fanatismo. Murmuro levemente: serendipia… Há um rosto atrás do grito – enquanto os carros passam – meus olhos tentam enxergar as curvas do caminho; talvez se percam na esquina e o desastre não aconteça. E a tarde cai novamente feito um viaduto, restando em mim o último sopro da utopia, a palavra desprendida da garganta, bem devagar, separada em saborosas sílabas da esperança equilibrista: serendipia! Grito novamente e sorrio. Na corda bamba de sombrinha, o grito precisa ecoar.

O beija-flor do mundo paralelo

E a cidade amanheceu coberta de névoa.

O dia para mim não começa antes do café da manhã, mas faltou manteiga para passar no pão e lá fui eu ao supermercado, enfrentando o trânsito e a névoa.

Há mistérios intrínsecos em cada palmo daquele lugar.

Ao descer do carro, um beija flor resolveu me acompanhar.

O bicho foi e voltou, na velocidade da luz e fiquei envolto a perguntas: Será que só eu estou vendo o passarinho? Por que uma ave tão bela não sabe cantar? Beija flor não tem cor definida, é um prisma, uma mistura de água e luz, um arco-íris voador, mas esse meu beija-flor, claramente, é preto.

Bem próximo da porta de entrada, o beija-flor sumiu como o diabo fugindo da cruz.

Dois passos após a risca de entrada, tal qual Alice ao cair no buraco, vou de encontro a um hospício repleto de loucos livres.

Um velhinho contando notas olha para mim num angelical riso de Quintana.

 Atrasei alguns passos diante do olhar seco do segurança, um homem de aspecto rude, parecido a um personagem de romance não identificado no momento.

Uma senhora dos cabelos curtos passa por mim, trás no colo uma sacola amarfanhada e os olhos cobertos numa aura de tristeza. Florbela agarrada a uma sacola de versos – imaginei.

Ouvi murmúrios da quase certeza de que estava diante do mundo paralelo.

A imensa fila do caixa fez aflorar os meus sentidos.

Um casal se posicionou ao meu lado.

Identifiquei-os em poucos segundos: Bukowski e Hilda Hilst.

Falavam mal da neblina e anotavam os defeitos dos vizinhos.

Imaginei um quadro diferente, bucólico, uma mesa de bar, Bukowski num canto, Hilda num outro, a fumaça do cigarro como se fosse o néctar das flores e o beija flor voando entre os dois. Logo entrariam em conflito, no exato instante no qual se dariam com a minha presença; e enquanto o velho Burka proferisse algum palavrão, Hilda lançaria sobre mim um olhar sepulcral, daqueles de tormentos, diria sem muito pensar: “por que você não manda embora esse velho beberrão?”

A imagem sumiu, restou o casal e os olhos arregalados para mim. Balancei a cabeça, ficaram sem graça no mundo paralelo, um Bukowski abstêmio e uma Hilda sem cigarros.

Devo ter falado alguma coisa.

Riram um riso sem graça, trocaram olhares, como se estivessem enxergando o diabo. Timóteo alguma coisa, disse a mulher. O homem concordou, sorriram novamente e depois me ignoraram para sempre.

Na outra fila, uma conversa de pai com filho, embora a figura, um careca de barba ao lado do rapaz loiro dos olhos verdes, evocava Verlaine e Rimbaud.

A fila andou um pouco e ainda restava em minha boca o solitário desejo por um gole de café.

Enfim a minha vez.

A moça do caixa se abriu num sorriso estranho, de segredos.

Um dia ela sonhou que seria psicóloga – imaginei.

Sempre acho que toda moça do caixa queria ser psicóloga quando criança.

“O senhor aceita participar do troco solidário?”

Sim, ok, respondo, e a custo contenho a vontade de lhe dizer que ainda há tempo para ser psicóloga.

E o velhinho ressurge, galopando o mesmo sorriso angelical, olha para mim e para a moça do caixa, nada diz, mas sei que pensa o complemento: “Cuidado, quando se vê passaram cinqüenta anos!”.

Caminho para a saída, dou de frente com o segurança, ele tem a cara do Heathcliff, descubro afinal e sinto até a poeira espalhada na capa do Morro dos ventos uivantes, guardado com carinho na minha estante. Nunca soube definir se Heathcliff é herói ou vilão.

Ao sair, o beija-flor estava lá fora, esperando por mim, rodeando meus ombros, sumindo às vezes, aparecendo mais à frente, e eu, feito um louco em devaneio, conversei com ele antes de bater a porta do carro: não sou flor que se cheire, vejo escritores mortos!

E o bicho sumiu de vez ao roncar do motor do carro, se perdendo entre a névoa.

Não olhei para trás. O mundo paralelo às vezes desaparece…

A flor que muda de cor

Existem em mim pequenas explosões pedindo mudanças. Essa crônica era para se chamar “Metamorfoses”, mas seria um nome óbvio demais. Ontem foi o dia do escritor, pensei então fazer uma junção, e o nome passou a ser “A metamorfose de um escritor em seu dia de casulo”. Ponderei, porém, escritor não tem dia, tem momentos, e o novo nome ficou mais complicado: “Metamorfose de momentos de um escritor no casulo”.
Resolvi decidir depois do fim.
Esses pensamentos duram um minuto, tempo que fico com a boca aberta, um sorriso permanente na cara, olhos fixos num local aleatório.
Ocorre então o estalo, retorno trazendo nos olhos a imagem enquanto pensava: uma flor pequena e frágil, exposta no canteiro do lado de fora da janela do meu escritório; feinha, mirradinha, do talo crespo e das folhas secas.
A flor forma um sorriso, acena o convite ao velho passeio, faz surgir um quadro guardado na memória,
 Saudade é aquela dor gostosa, um pontinho na testa, coça como casca de ferida secando e a gente cutuca, para não deixar nada se perder.
E lá estava minha avó, numa imagem de tapar os olhos, porque o sol ardia na rua sem asfalto, encharcando a testa de suor.
Depois do muro de balaústre existia o meu quintal e nele jazia num canto essa mesma flor, levemente diferente, com um casulo grudado no talo, guardando a lagarta, até um amanhã no qual emergiria a borboleta em seu primeiro vôo.
Metamorfoses sempre me atraíram; sou o cara do comercial na tevê, sou também o dono de uma empresa de ar condicionado e aquele senhor que fez a turba sorrir no teatro, se transformando numa senhora de poucas virtudes, num médico biruta ou teve crises na pele de um velho com sotaque italiano.
Metamorfose é febre.
Eu já fui tímido, calado, retraído, só depois dos quarenta o teatro entrou em mim e, desde então, consigo ouvir o murmurinho da inquietude antes escondida, depois a estranha sensação de efervescência, e de repente sou outro, nova casca, olhar noutra direção, o casulo jogado fora e um par de asas prontas para voar.
No meu rosto marcado por certezas, imagino outras metamorfoses, mas a terrível dor do medo não me permite enxergá-las com exatidão.
O quintal de antes surge novamente.
Minha avó tinha o nome ligado à natureza: Aurora. Ela também se transformava, era tomada pela febre, sabia benzer e escrevia orações escutadas dos espíritos.
Quando se aproximava e trazia a celha carregada, olhava para a flor, acariciava o casulo com uma mão, a outra grudada na testa: ‘será uma borboleta vermelha!’ Então sorria. Dias depois, asas vermelhas se abriam para o vento e restava o casulo oco arrastado pelo vento.
Lolinha sabia quando cairia a chuva só de olhar as plantas: “elas se encolhem, envergam em conchas, pedindo água” afirmava em tom austero e era dito e feito.
Sobretudo em dias sofridos, falava com a flor: “se aquieta, ainda não é momento de mudanças”. E a flor abraçava mais forte o casulo, pensativa, sem sorrir, mas se sentindo protegida das garras das abelhas.
Aurora assopre em meus ouvidos a cor da borboleta que virá depois da tempestade trazendo a bonança!
Ó Deus, se tu existes, um dia me conta onde foi que guardou a minha avó!
Novamente fixo os olhos na flor e não vejo mais o sorriso. Sente falta do casulo? Ou será receio pela descoberta de novas metamorfoses?
Se pudesse falar comigo, aquela flor, sensível como todas, rebateria minhas dúvidas, devolveria algumas certezas, mostraria o caminho à irrecusável metamorfose.
Aprecio metamorfoses, mas sinto o medo quase infantil de mudanças.
Então abate-se o atro escuro da pedra, abruptamente me transformo num senhor casmurro, penso na tarefa do dia, o dinheiro que preciso ganhar e recuso tudo o mais desprendido daquela flor.
Sei, no entanto, preciso saber onde ela guarda a semente, e assim, manter imorredoura todas as metamorfoses.
Um dia, quem sabe…
E a flor fita o chão sem sorrir, mas é coisa de momento.
Embora pairem sobre seus galhos algumas dúvidas, do lado de fora da janela, eu sei, suas pétalas mudam de cor.

Loja Virtual

Busca

Está com dificuldades para encontrar? Utilize os filtros abaixo para aprimorar a sua busca.

Categorias